Versalhes entrou para a História como sede do opulento palácio do rei Luís XVI e da rainha Maria Antonieta, guilhotinados pela Revolução Francesa. Não foi por acaso, então, que cientistas do mundo todo se reuniram nesta sexta-feira em um auditório na mesma cidade da antiga morada real. O episódio histórico também lançou as bases para o Sistema Internacional de Medidas, uma série de padrões usados no mundo para medições de todo o tipo e que hoje passa por uma revolução: a redefinição do quilo.
A nova definição prevê que o quilo deixará de ser a última grande unidade de medida definida por um artefato. Desde 1995 o quilo oficial é representado por um cilindro de platina e irídio guardado a chaves na sede do BIPM (Escritório Internacional de Pesos e Medidas) na França. Por esse peso de papel estar sujeito a intempéries, roubos e disputas, será substituído por um método de medição muito mais preciso a partir de 20 de maio de 2019.
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“O quilo, legalmente, não muda, mas os protótipos de medição perdem gramas com o tempo”, explica William Phillips, Nobel de Física de 1997 e um dos cientistas cujos trabalhos foram importantes para a nova forma de medição. “Precisávamos encontrar uma solução para esse problema.” O tempo, por exemplo, tem a unidade de segundo definida por propriedades de radiação do átomo de césio. Já o metro é definido pela relação entre velocidade da luz e distância no vácuo. Só faltava mesmo o quilo.
A resolução do problema veio com uma intrincada relação matemática que, em linhas gerais, une a equação de massa-energia de Albert Einstein (E = mc2) à equação fundamental da constante de Planck (E = hf). Nem tão pop quanto o seu conterrâneo alemão, Max Planck é um dos principais cientistas do século XX porque foi pioneiro nos estudos da teoria quântica. Suas pesquisas o conduziram à descoberta da constante que leva seu nome.
Isso não significa que o seu peso vai mudar ou que o frete pode ficar mais caro. O quilo continua sendo o quilo: o que muda é a maneira de aferir o valor da unidade. Isso tem impactos na complexa malha de relações entre países. (A mudança foi ratificada por unanimidade por sessenta países membros do BIPM.) A medição passa a ser feita a partir de uma constante da natureza, elemento que independe da soberania de um único estado sobre um referencial. Além disso, uma maior precisão tem reflexos em indústria, comércio e ciência. Dosagens de um remédio, por exemplo, podem ser mais precisas.
Mas como o novo método é mais preciso? São dois motivos principais: 1) não depende mais de um objeto que pode perder massa com o tempo ou ganhar massa se alguém, por exemplo, encostar nele; 2) o uso de uma balança elétrica que faz medição no nível atômico e pode finalmente medir a constante de planck com um nível de incerteza muito baixo: 1.8×10^-8 (da ordem do 100.000.000).
Philips explica que houve uma boa razão para que essa mudança fosse realizada quase cem anos após a descoberta de Planck. Além de toda a discussão da comunidade científica em cima dos tratados do cientista alemão, era preciso comprovar empiricamente que a tal constante era, afinal, constante. Isso só foi possível nos últimos 15 anos graças à invenção da balança de Watt (ou balança de Kibble, em homenagem a seu inventor, o britânico Bryan Kibble). Esse instrumento pode finalmente confirmar a descoberta de Planck com uma margem de erro ínfima.
A importância do avanço científico podia ser medida pelo clima de festa da cúpula. Pesquisadores discursavam para diretores de órgão de metrologia já convencidos dos benefício do “novo quilo”. Norte-americanos e franceses se revezavam cordialmente no palco — os primeiros fazendo piadas com os últimos — e havia espaço para chineses darem suas palavras. Chamados a voto, representantes indianos, paquistaneses, israelenses, sauditas, russos, todos votaram pela mudança. Canapés com logotipos comestíveis do SI foram servidos logo depois do pleito.
Foi durante pausa para regabofe e debates sobre pesquisas ou restrições orçamentárias para ciência que um dos homens de terno e gravata causou certo burburinho. John Pratt, cientista-chefe do departamento de física quântica do NIST (National Institute of Standards and Technology, o equivalente norte-americano do Inmetro) arregaçou as mangas e mostrou sua tatuagem no antebraço esquerdo: a constante de Planck estampada junto do medalhão que marca a adoção do sistema métrico na França durante a revolução francesa.
Revoluções e redefinições
Em fins de 1789, Luís XVI e Maria Antonieta mudaram-se de Versalhes a Paris numa tentativa de acalmar os ânimos da França à beira da revolução. Não deu certo. A monarquia caiu, a república foi instaurada e os ideais iluministas do movimento se espraiaram das artes às ciências. Logo no ano seguinte, a Assembleia Nacional Constituinte encomendou a cientistas franceses um sistema métrico que auxiliasse a regulação do comércio e garantisse assim os direitos iguais evocados pela burguesia.
Medidas como o pé (do rei) tiveram seu fim. No lugar delas, surgem o metro, o quilo, o segundo. As unidades já eram aventadas por cientistas europeus desde o século XVII porque levavam em consideração padrões amplos, naturais e baseados no sistema decimal. É o caso da massa de um metro cúbico de água para o quilo ou um trecho do meridiano da Terra para o metro. Em 1875, no espírito da Revolução Industrial europeia, realiza-se em Paris a primeira cúpula internacional de debate de medidas, a Convenção do Metro, que dá origem ao BIPM e formaliza o Sistema Internacional de Unidades.
A 26ª cúpula, que decidiu pela redefinição do quilo, é o grande marco histórico desde então. A mudança significa também que os países membros do BIPM terão de se adequar às novas regras. Carlos Augusto de Azevedo, presidente do Inmetro e representante do Brasil na cúpula, vê essa necessidade sem maiores delongas. “Tem de fazer os investimentos que tem de fazer sob pena de ficar fora do Sistema Internacional”, diz ele. “Não tem ideologia, não tem discussão.”
Os investimentos passam pela instalação de uma balança de Watt na sede do Inmetro, no Rio de Janeiro. Tido como um dos experimentos mais difíceis de serem realizados, o dispositivo representa a redefinição do quilo e também avanços rumo ao futuro da ciência. “Um esforço milenar chega a um fim hoje”, lembrou o cientista alemão Joachim Ullrich durante seu painel. “Esse processo começou há milhares de anos e agora chegamos às constantes, algo que vai dar as bases para a próxima revolução quântica.”
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