Em 1953, Henry Molaison, portador de epilepsia, submeteu-se a uma cirurgia cerebral que, simultaneamente, prejudicou e salvou a sua vida. Apesar da remoção de algumas partes do cérebro (o hipocampo e pedaços da amígdala) ter acabado por curá-lo, o processo deixou-o amnésico. Não se tratava, contudo, de uma amnésia vulgar. A neurociência nunca tinha visto um caso igual ao seu: a cada 30 segundos a sua memória era completamente apagada. Henry Molaison tornou-se no primeiro mártir a ser sacrificado pelo estudo da memória humana. Embora tenha sido responsável por 60 anos de avanço na neurociência, Henry foi reduzido a alguém que tentava agarrar os factos desconexos que giravam em torno da sua consciência. Depois de o seu próprio pai ter falecido, Henry mantinha sempre consigo uma nota que dizia: “O meu pai está morto.”
Suzanne Corkin conheceu Henry em 1962, quando era apenas uma médica recém-licenciada. Tendo o doente sido a sua principal matéria de investigação desde 1982, a doutora dedicou os 46 anos seguintes da sua vida a trabalhar com ele. Decidi ligar à Suzanne para entender como é não se ser capaz de reter na memória a morte dos próprios pais.
VICE: Olá, Suzanne. No teu livro, Permanent Present Tense, fizeste uma analogia que resume de forma sublime a condição do Henry. Escreveste: “A informação consegue chegar à entrada do hotel, que neste caso é o cérebro do paciente, mas não consegue aceder a cada um dos quartos”. Podes desenvolver esta afirmação?
Suzanne Corkin: Foi o que inspirou o título do meu livro e signfica que o Henry conseguia apenas viver no presente. Não te conseguia dizer, por exemplo, o que tinha feito de manhã, nem no dia anterior, nem no mês passado. Se o distraísses, ele já não se lembrava do conteúdo da conversa, sequer. Vou tentar fazer a minha própria analogia. A experiência mais próxima da amnésia do Henry seria entrarmos numa sala e esquecermos o porquê de lá estarmos.
Ele vivia em constante frustração?
Bem, habituou-se a isso. Ele permaneceu num ambiente bastante familiar após a operação. Vivia com os pais e passava bastante tempo em casa. Habituou-se, portanto, a andar de um compartimento para o outro sem saber o motivo disso. Se tivesse de ir à casa de banho, saberia, provavelmente, a razão disso. Mas não se lembrava do local das coisas: tratava do jardim, por exemplo, mas nunca sabia onde estavam guardadas as ferramentas.
O Henry via os mesmos filmes vezes sem conta?
Sim, claro. Lia também as mesmas revistas vezes infindavelmente.
E quanto à música? Algumas canções em particular que ficassem retidas na cabeça do Henry?
Sim. Cheguei a testar isso mesmo. Entrei numa biblioteca e encontrei os maiores êxitos de todos os anos a partir de 1926 (o ano em que ele. nasceu) e gravei-as. Quando as reproduzi para o Henry poder ouvir, ele reconheceu algumas delas. Não foi um desastre total.
Conseguia acertar nas coisas?
Em certas ocasiões, sim. Conseguia acertar em algumas coisas. Quando lhe perguntei com quem é que os Estados Unidos lutaram na guerra do Golfo, ele respondeu-me: ” México e Cuba.” Tinha na memória o Golfo errado, mas fez o intelecto voltar atrás. Tinha palpites inteligentes, não inventava respostas.
Mentiu-te alguma vez?
Não que eu saiba. Foi operado às cataratas e, desde então, deixou de usar óculos. Perguntámos-lhe uma vez onde estavam e ele disse: “Alguém deve tê-los roubado.” Não era uma mentira, porque não sabia. Tudo o que sabia era que usava óculos e, se já não os tinha, arranjou uma explicação para tal.
Como é que ele se manteve consciente da morte dos pais?
Não tinha essa consciência. Foi o hábito de não os ver durante um longo período de tempo que o fez entender que tinham falecido.
Como era a relação do Henry com as raparigas?
Ele era bastante educado. Chegava a ser um verdadeiro cavalheiro, até. Tenho imensas fotografias dele com um rapariga de nome Maude, o que é bastante curioso. Numa estão na praia, abraçados. Tenho outra em que a Maude está numa posição mais provocante e por trás está escrito: “Para o Henry, com todo o amor, Maude.” Também tenho cartas de duas amigas dele que prestaram serviço durante a Segunda Guerra Mundial. Falavam de bebés, de casamento, de saídas e de tudo isso. Estes assuntos faziam parte da sua vida.
Ele voltou a falar de raparigas depois da operação?
Não. Fizemos-lhe perguntas sobre as namoradas, mas o Henry nunca mencionou a Maude, o que é bastante interessante. Parece um estado espiritual a que muitas religiões aspiram: esquecermos o passado e não nos preocuparmos com o futuro.
Ensinam-nos que viver no presente pode trazer um certo tipo de elucidação, um sentimento de paz interior. Achas que o Henry, sem o querer, conseguiu isso?
Não consigo dizer se ele tinha os seus momentos zen. Muitas pessoas descrevem-no como uma pessoa extremante gentil. Acho que era assim antes da operação. O pai também era uma pessoa bastante descontraída, portanto não sei dizer se esse lado da personalidade dele era genético ou um resultado directo da operação. A remoção das amígdalas também era procedimento aplicado aos prisioneiros para acalmá-los. Quando chegou ao Centro de Investigação Clínica, ele fazia as suas refeições, testávamo-lo, mas quando não tinha nada de especial para fazer, as enfermeiras punham a cadeira dele na entrada. Dessa forma, as pessoas que passavam podiam dizer: “Olá, Henry.” Ele gostava desse encorajamento extra. Ficava extremanete feliz em estar ali sentado. Limitava-se a apreciar o ambiente e a ver as pessoas que passavam por ele. É difícil determinar se isso tinha alguma coisa a ver com a memória. Era uma pessoa feliz, não demonstrava sinais de tristeza.
Como é que o Henry te observava?
Passados 20 anos desde o primeiro dia em que nos vimos, passou a reconhecer-me.
Podes dizer o quanto é que o Henry contribuiu para o estudo da memória humana?
O caso do Henry provocou uma autêntica epifania na ciência da memória. Em primeiro lugar, era a lenda viva de que se pode ser inteligente sem se ter uma boa memória. O QI do Henry estava consideravelmente acima da média. Isto diz-nos que a memória é processada por circuítos cerebrais especializados — que a memória é compartimentalizada. O Henry também nos demonstrou que a capacidade para se armazenar novas memórias está localizada numa parte específica do cérebro: os lóbulos temporais. Antes do Henry, não compreendíamos que o hipocampo e o cortex circundante são essenciais para o estabelecimento da memória a longo prazo. A terceira contribuição prende-se com a descoberta de que os diferentes tipos de memória estão alojados no cérebro.
Não deixaram uma pequena parte do hipocampo em que pequenos flashes de memória funcionam como um fantasma da própria memória?
A área do cérebro responsável por fornecer informação ao hipocampo foi toda removida. Foram apenas deixados pequenos pedaços para trás. Para efeitos práticos, na base do dia-a-dia, o Henry não se lembrava de nada. Podia ter, de vez em quando, pequenas lembranças de nos fazer cair da cadeira, mas no dia-a-dia não se lembrava de nada.
A memória é responsável pelo passado de uma pessoa, pela sua identidade. O Henry perdeu isso após a operação?
É uma pergunta complicada. Como sabes, filósofos e neurocientistas têm defendido que a falta de memória de um indivíduo leva ao desaparecimento da sua identidade.
Mas será que o Henry tinha a consciência de si próprio?
A resposta é sim, tinha. Não era, apenas, tão elaborada como a minha ou a tua. A noção que temos de nós próprios é composta por memórias do passado, do presente e pelos nossos planos para o futuro. Quando analisamos como é que o Henry acedia a esses períodos de tempo, descobrimos que era de forma irregular. Ele conseguia dizer, desde o seu nascimento até à operação, o que fazia para se divertir: andar de patins em linha, tocar banjo e praticar tiro ao alvo. Essas memórias ficaram, no entanto, comprometidas, porque ele não as sabia enquadrar. Não se conseguia lembrar de nada que tivesse acontecido numa determinada altura ou local local. Anos depois da operação ele já conseguia ter memórias selectivas e fragmentos de informação, portanto tinha uma certa noção de identidade. O Henry sabia que tinha tido uma operação, que esse procedimento tinha sido aplicado a pouquíssimas pessoas antes dele e que algo correu mal. Sabia disso e era capaz de exprimir e articular esse conhecimento, mas acima de tudo sabia que tinha má memória.
Conseguia formular uma imagem do futuro?
Não. Era incapaz de construir para si uma agenda. Mas tinha uma particularidade interessante. Construia pequenos monólogos e num deles dizia que queria ser neurocirurgião.
A sério?
Mas pensava que não podia porque usava óculos. Achava que se iam sujar e assim já podia ver bem. Falava das coisas que poderia fazer aos seus pacientes se tal acontecesse. Ele tinha consciência e não queria fazer nada de mal às outras pessoas. O interessante é que não tinha um plano b. Ele não tinha, na realidade, planos nenhuns. Quando lhe perguntávamos o que iria fazer amanhã, respodia: “O que me for benéfico, ponto final.” Não conseguia construir um futuro, nem lutar pelos seus sonhos — porque não tinha nenhuns.