O Legado Problemático do Programa de Fumigação Aérea das Plantações de Coca na Colômbia

Depois de 30 anos de resultados duvidosos e muitos protestos, um dos marcos da guerra contra os fornecedores de drogas nas Américas finalmente foi derrubado – temporariamente.

No mês passado, agindo sob recomendação do presidente Juan Manuel Santos, o Conselho Nacional de Entorpecentes (CNE) da Colômbia aprovou por 7 votos contra 1 a suspensão por tempo indefinido da fumigação aérea das plantações de coca, a planta de onde se extrai a cocaína. A Colômbia era o único país produtor de drogas do mundo onde o programa de fumigação apoiado pelos EUA ainda operava, e a ação representa o primeiro passo concreto da administração de Santos para uma reforma progressista na questão das drogas. Segundo o editorial do New York Times, o fim da fumigação pode significar uma guinada da América Latina para longe da linha-dura antidrogas do Tio Sam.

Videos by VICE

Porém, se a suspensão da fumigação vai fazer uma diferença real, isso tem de ser reconhecido pelo que é: não só uma ideia ruim que foi piorando com os anos, mas uma peça central de uma guerra global contra as drogas que continua por teimosia de seus defensores e desprezo pelas consequências para as pessoas e o meio ambiente.

Em outras palavras, por que isso demorou tanto para acontecer?

A fumigação das plantações de coca foi implementada na Colômbia em 1994 a mando dos EUA e com dinheiro norte-americano. Custando cerca de US$ 2 bilhões, o programa de fumigação polêmico e secreto visava a espalhar herbicida sobre 4,3 milhões de acres de território colombiano, incluindo parques nacionais, rios e a Floresta Amazônica.

O dano ambiental inerente à estratégia é real e desconcertante. Fora a perda direta de vida vegetal e animal, os fazendeiros cujas plantações secam pela fumigação são forçados a adentrar ainda mais na floresta, desmatando e queimando pelo caminho. Voando por Puerto Asis, o centro do plantio de coca do Estado de Putumayo, os lotes marrons de plantações abandonadas ou queimadas pontuam os planos amazônicos como cicatrizes de acne.

“Mesmo se glifosato fosse seguro como xampu infantil ou água de nascente, espalhar isso de modo aéreo ainda seria uma política cruel e ineficiente.” – Adam Isacson

No entanto, o governo enquadrou sua decisão em termos do impacto que a fumigação teve nas pessoas, não na vida selvagem. O presidente Santos e o Ministério da Saúde colombiano apontaram uma descoberta recente da Organização Mundial de Saúde (OMS) como razão para a recomendação ao Conselho de Entorpecentes. Depois de uma revisão detalhada da literatura existente sobre o assunto, a OMS concluiu que o glifosato, o principal agente químico usado na fumigação de coca, é “provavelmente cancerígeno para humanos”.

Os produtores de coca, como este homem no povoado de Alto Amarradero, no sul do Estado colombiano de Putumayo, são pobres, não os narcomafiosos que os legisladores norte- americanos tentam pintar. Todas as fotos por Miguel Winograd.

Mas sérias acusações de saúde não são novidade no debate da fumigação, mesmo que a preocupação do governo com isso seja mínima. As comunidades afetadas vêm denunciando os efeitos da fumigação desde o começo do programa. Na verdade, o receio do Ministério da Saúde existe desde o curto e desastroso experimento com a fumigação de plantações de maconha no meio dos anos 80. Desde então, pesquisas independentes têm ligado a fumigação a problemas que vão de doenças de pele a abortos espontâneos.

O governo colombiano reconheceu a legitimidade desses riscos quase dois anos antes de decidir suspender a fumigação dentro de seu território. Em 2013, a Colômbia chegou a um acordo com o Equador para evitar uma decisão do Tribunal Internacional. Depois de reconhecer os efeitos prejudiciais da fumigação no país vizinho, a Colômbia concordou em pagar US$ 15 milhões em indenização e interromper a fumigação na fronteira entre os países.

E, mesmo assim, oficiais norte-americanos continuam a descartar preocupações de saúde. Na semana anterior à votação, Kevin Whitaker, o embaixador norte-americano na Colômbia, e William Brownfield, secretário-assistente da Bureau de Assuntos Internacionais de Narcóticos e Aplicação da Lei, fizeram lobby publicamente contra a suspensão da fumigação. (O Departamento de Estado norte-americano e o DEA não quiseram se pronunciar sobre o assunto. Os oficiais de imprensa não responderam aos vários pedidos de comentário.)

“Na história do programa, não há uma única reclamação de problemas de saúde na qual uma conexão direta com a fumigação de glifosato fosse provada”, o embaixador Whitaker escreveu no El Tiempo, o maior jornal da Colômbia. Browfield, que também já foi embaixador na Colômbia, não foi menos categórico. “Não há um único exemplo de pessoa que sofreu danos pelo uso de glifosato”, ele afirmou à mídia colombiana.

O glifosato, seguindo esse argumento, é permitido para uso doméstico e agrícola em 160 países, incluindo os EUA. Se isso é tão tóxico quanto os opositores afirmam, por que não se ouviu falar de problemas em outros lugares?

O jornalista investigativo Garry Leech relatou que, para acabar com um arbusto de coca, o glifosato usado corresponde a uma dose cinco vezes maior que a normal, além de isso ser misturado a compostos que garantem que o veneno grude nas folhas. Como os aviões de fumigação frequentemente sobrevoam território das FARC, os pilotos voam mais de 30 metros acima dos alvos, dez vezes mais alto que o limite dado pelo fabricante do herbicida, a Monsanto.

Se isso eleva o risco de, digamos, doenças respiratórias ou não, a deriva de partículas resultante é o suficiente para dissipar a fantasia da fumigação como a ferramenta precisa que alguns políticos insistem que isso é.

Assista a nosso documentário sobre os esgotos de Bogotá.

A fazenda de Leonaldo Obando, no sopé dos Andes no sul da Colômbia, não é maior que um hectare (2,47 acres). Arbustos de coca se alinham no campo onde seus filhos brincam, assim como pés de mandioca, plátanos e milho. A produção de coca fornece apenas o suficiente para as necessidades básicas.

De acordo com o economista da Universidade dos Andes Daniel Mejia, o fazendeiro médio de coca da Colômbia ganha US$ 2 mil por ano por hectare. Atacar o comércio de drogas no estágio da plantação não afeta “narcomáfias”, como Whitaker sugere em seu artigo; ao contrário, apenas pune os pobres das zonas rurais por sua exclusão sistêmica. O racismo é um pilar desse sistema, o que faz as dificuldades infligidas pela fumigação caírem desproporcionalmente sobre afro-colombianos como Obando e povos indígenas como os cofáns, que vivem nas proximidades.

Não há governo colombiano aqui, apenas os aviões que passam e envenenam o único meio de vida disponível.

“A fumigação aérea é uma cura pior que a doença: isso tende a ser algo indiscriminado, afetando a segurança alimentar já tão frágil dos habitantes locais, além de destruir plantas medicinais que têm significado cultural profundo”, me explicou Carlos Salinas, ex-diretor da Anistia Internacional que trabalha com os povos cofáns desde 2004.

Para Jule Anzueta, organizador comunitário da região de Putumayo, a coca, uma planta de fácil cultivo que cresce rapidamente, não é uma doença, mas a cura para um mal crônico e muito mais pernicioso. “A planta de coca não é o problema. O problema são as condições econômicas e sociais que o governo não está interessado em resolver”, ele me falou.

A Colômbia tem uma das distribuições de terra mais desiguais do mundo, tanto causa como efeito de seu conflito armado que já dura 50 anos. A pobreza é de 65% na zona rural – a pobreza extrema, de 33%. Depois de 30 anos de terror paramilitar sancionado oficialmente, a população deslocada internamente na Colômbia (cerca de 6 milhões de pessoas) perde em número apenas para a da Síria.

De acordo com Alberto Yepes, líder da defesa dos direitos humanos no país, é exatamente essa combinação de degradação econômica e violência que leva à produção de coca na Colômbia.

Putumayo, por exemplo, é um ponto focal dos esforços de fumigação. A população de Putumayo mais que triplicou desde a explosão da coca na Colômbia, com colonos chegando para fugir do terror paramilitar, da crise econômica ou dos dois. A coca é o sangue da economia, ilícita ou não, na maior parte do Estado, onde o boom de petróleo e outras commodities trouxeram pouca riqueza ou desenvolvimento residual.

O Rio Putumayo é um dos maiores da Colômbia e flui até a Bacia Amazônica, junto com qualquer herbicida espalhado pelos rios da região.

Não há estradas para trazer ou levar os bens do povoado na floresta de Leonaldo Obando. Nenhuma escola para educar seus filhos, nenhum estabelecimento médico ou treinamento técnico para melhorar suas plantações lícitas, nenhum seguro agrícola para proteger suas perdas, subsídios ou crédito disponíveis para ajudar a competir com os fazendeiros dos EUA, cujos produtos alimentícios industrializados têm inundado o mercado colombiano.

Para todas as intenções e propósitos, não há governo colombiano aqui, apenas os aviões que passam e envenenam o único meio de vida disponível. (A fumigação deve parar apenas em outubro.)

“O que o governo tem feito é estigmatizar e criminalizar os fazendeiros pobres”, atestou Anzueta, organizador comunitário.

Num acordo antidrogas preliminar, assinado como parte das negociações de paz com os rebeldes das FARC, o governo reconhece que “condições de pobreza, marginalização e pouca presença institucional” são fatores-chave por trás da transformação da Colômbia no maior produtor de coca do mundo. Essa distinção já tinha sido concedida ao Peru, que, diferentemente da Colômbia, tem tradições culturais mais fortes ligadas ao uso da coca. Mas, quando se trata de implementar políticas, a posição do governo diante dos produtores não tem sido tão matizada.

“É lamentável, porque… a produção de coca fornece uma renda melhor para certas pessoas, que conseguem cuidar melhor de suas famílias, mas isso ainda é ilegal”, me disse Todd Howland, representante da Comissão de Direitos Humanos da ONU na Colômbia. A produção de coca, ele explicou, tem sido taxada e regulamentada pelos rebeldes das FARC, que têm mais autoridade nas regiões de produção do país do que o governo. Então, um fazendeiro pobre que conta com a coca não é apenas um criminoso – o Estado entende que “ele se torna parte da insurgência”.

Como a proibição da droga está integrada à cruzada anticomunista de décadas da Colômbia, “As massas pobres são vistas como inimigas do Estado, assim como aliadas da guerrilha”, explicou Yepes.

Os 12 democratas da câmara norte-americana que escreveram uma carta apoiando a suspensão da fumigação aérea argumentaram de maneira semelhante. “Fumigação geralmente tem o efeito de prejudicar a credibilidade do governo numa área onde ele tem pouca presença.”

Alguns levam o argumento ainda mais longe. “Tem duas coisas que você sempre ouve aqui”, me disse Adam Isacson, especialista sênior na Colômbia do Washington Office on Latin America (WOLA). “‘Eles nos envenenam porque acham que somos baratas’ e ‘Eles nos envenenam porque querem nos tirar daqui e tirar tudo que temos’. Seja verdade ou não, o fato de isso ser considerado um problema para a Colômbia… é como uma contrainsurgência ao contrário.”

“Não existe planta ilegal”, é um slogan entre os produtores de coca do sul da Colômbia.

O trabalho de Isacson sugere que intenções maliciosas explicam a fumigação mais coerentemente do que um interesse real em livrar a Colômbia das drogas. Citando um de seus artigos mais recentes sobre o tema, “Mesmo se glifosato fosse seguro como xampu infantil ou água de nascente, a fumigação aérea disso ainda seria uma política cruel e ineficiente”.

Afinal de contas, o papel das FARC no comércio de drogas colombiano – e, por extensão, no papel da produção de coca em geral – tem sido altamente superestimado, especialmente quando comparado aos esquadrões da morte de direita que controlam o processamento de cocaína e a distribuição internacional. Mais importante: como Isacson aponta, não há evidência de que a fumigação tenha causado qualquer redução na produção de coca na Colômbia e muito menos afastado o produto das ruas dos EUA. Na verdade, a produção de coca aumentou durante o auge da fumigação. Quedas recentes, ele escreveu, devem ser atribuídas à erradicação manual, uma política similar mais efetiva, porém mais perigosa que a fumigação.

De acordo com um estudo de 2013 do Brookings Institute, a fumigação atinge 32 hectares de terra para cada hectare de coca que consegue erradicar. Isso dá US$ 57.150 por hectare de coca versus os US$ 450 que as folhas valem por si. Logo, a fumigação de plantações na Colômbia custa US$ 240 mil para cada quilo de cocaína que isso impede de chegar aos EUA.

Peru e Bolívia, os outros dois maiores produtores de coca do mundo, descartaram a fumigação décadas atrás pelas mesmas muitas razões que Isacson e os outros vêm apontando para o governo colombiano há pelo menos 15 anos. Em 1994, o ano em que os EUA começaram a financiar a fumigação de coca na Colômbia, a RAND Corporation conduziu um estudo para o Exército Americano que descobriu que o tratamento doméstico é 23 vezes mais eficiente por dólar gasto que a guerra contra os fornecedores no exterior.

Enfrentando críticas pesadas em casa e pressão diplomática de Washington, o governo colombiano já começou a testar herbicidas alternativos para substituir o glifosato, de acordo com a imprensa colombiana. Chegando a um acordo de paz final com as FARC ou não, o governo já se reservou o direito de continuar a fumigação das plantações de coca.

“É um programa zumbi”, critica Isacson, “um fruto irracional de uma guerra sem sentido”.

Então, mesmo que isso tenha caído, o programa de fumigação não está realmente morto.

Steven Cohen é um jornalista freelance que trabalha na Colômbia e ex-editor do Colombia Reports. Siga-o no Twitter.

Tradução: Marina Schnoor