Em sua nova coluna para a VICE, o autor de sci-fi & fantasia afro-americana e pesquisador Ale Santos traz os contextos das causas raciais em questões culturais, políticas e até do entretenimento de nosso país. Esta coluna é um esforço de compartilhamento de conhecimento numa época em que o negacionismo cresce e influencia diretamente o imaginário das pessoas. Bem vindo ao Guia Historicamente Correto do Brasil.
Dizem que a memória do brasileiro é curta. Não estou falando sobre a memória do que você viveu nos últimos anos, estou me referindo à memória coletiva, a que deveria carregar todos os maiores e mais trágicos eventos da nossa história.
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A falta de memória histórica é uma vantagem para uma pequena parcela da sociedade, a elite que enriqueceu nos séculos passados através da exploração de corpos de africanos e seus descendentes no país. Sem ninguém para contar sobre o passado as famílias de outrora perpetuam seu poder nas instituições e ainda conseguem construir um recorte de narrativa contando sobre a sua “vida difícil”.
Essa é, por exemplo, a história do ex-prefeito de São Paulo João Doria. Ele vendeu a imagem de que era coisa nova na política, mas esconde um passado de uma família escravocrata e de políticos, militares e médicos no Nordeste. Juntei alguns indícios para vocês conhecerem o tamanho do legado escravagista
Não significa que a vida dele não foi complexa durante a ditadura, muitas pessoas sofreram naquela época, porém, sua família tinha mais recursos para se defender, sair do país e voltar depois com a influência que seu nome mantinha.
A origem de sua família vem do começo do Brasil colônia e um dos nomes famosos daquela época era Antônio de Sá Doria, que aparece como vereador em Salvador em 1649, e como juiz ordinário eleito em 1663. Os registros estão no Arquivo Histórico da Misericórdia, Salvador.
O Antônio de Sá Doria, aliás, era casado com sua prima em 1625 – um costume da família (talvez para manter a linhagem). Era um dos homens mais ricos de Salvador. Um dos seus engenhos em Itaparica mantinha 40 escravos e contabilizava centenas de escravos em todos os outros.
Em 1794 nasceu outro herdeiro desses engenhos, Antonio Marcelino da Costa Doria. Quando faleceu em 1851, declarou–se solteiro, tenente reformado da artilharia de linha do exército. Deixou vários filhos ilegítimos com mulheres negras – e que não foram documentados. Mulheres e crianças que estavam vivendo em pobreza.
Vale ressaltar que na lei de terras assinada em 1850, pessoas negras eram impedidas de ter propriedades em seu nome, da mesma forma negros não eram considerados herdeiros legítimos de qualquer fazendeiro ou senhor de engenho. Também sabemos que não existia romance com escravas naquela época, o que havia era muito assédio e estupro, quando a elite brasileira usava negros para satisfazer seus desejos sexuais.
E ainda tinham a cara de pau de jogar a culpa das agressões sexuais nas escravas. O livro de Gilberto Freyre tem uma passagem totalmente asquerosa sobre esse pensamento: “Diz-se geralmente que a negra corrompeu a vida sexual da sociedade brasileira, iniciando precocemente no amor físico os filhos-família. Mas essa corrupção não foi pela negra que se realizou, mas pela escrava. Onde não se realizou através da africana, realizou-se através da escrava índia”.
É um exercício básico e sem nenhum esforço de lógica entender que quase todos os homens e mulheres brancos eram escravagistas antes de 1900 (alguns continuaram escravagistas, ao menos com a ideologia por muitas décadas depois). Mas como muitos registros se perderam, as pessoas tendem a duvidar dessa história.
Mas encontrei em uma edição do Correio Mercantil de 1839, relatos do aluguel e a penhora de escravos por parte de José Ignácio de Menezes Doria. Saque o registro histórico.
Em outro registro, também no Correio Mercantil e no mesmo ano, conhecemos o nome de um dos engenhos da família, Natiba. Outros engenhos atribuídos a família são o Caberi, Palmeira, São Cosme e Boa União.
A extensão dos engenhos dessa família se distribuía por Salvador, S. Francisco do Conde, Sergipe e Itaparica. Era muito escravo sendo chicoteado para gerar riqueza para esses escravagistas.
Seu bisavô cresceu no engenho Caberi, do pai, no Recôncavo baiano. Nasceu (1850) e viveu no regime escravista. Se formou médico pela Faculdade de Medicina da Bahia em 17 de dezembro de 1877 e foi vereador em Salvador entre 1891 e 1895. Aqui podemos entender que o impacto do passado escravagista na história contemporânea não é tão distante assim. Vou usar a minha história pessoal e sugiro que tente resgatar a sua para entender.
Enquanto esse senhor era médico, mantinha uma propriedade no nome da família (que já era herança antiga) e ainda acumulava mais riqueza em vida, meu bisavô, que não tenho ideia de sua história, provavelmente era escravo. (Por parte de mãe, minha bisavó morava em uma reserva indígena em Pernambuco, segundo poucos relatos de minha avó que hoje tem Alzheimer).
Hoje em dia, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, uma família pobre demora nove gerações para sair da pobreza. Só que ainda encontramos famílias que estão há cerca de três, quatro ou cinco gerações da escravidão brasileira.
Quando a Princesa Isabel assinou a fajuta lei Áurea, era interessante para essas famílias escravocratas esquecer seu passado de crueldade. A avó do Doria, Maria Carolina Barbosa de Oliveira, era prima do escritor Ruy Barbosa, o mesmo que em 1890 ordenou que todos os registros da escravidão fossem queimados. Dessa forma, foram apagadas a maioria das provas de crimes cometidos contra a humanidade. Essa passagem da nossa história é muito controversa. Claro que muitos autores que minimizam a escravidão e seus impactos saem em defesa de Ruy Barbosa, alegando que isso teria acontecido para evitar que um grupo de escravocratas pedisse indenização, mas vários autores, como Américo Jacobina Lacombe, consideram esse fato um escândalo histórico, acabando com a possibilidade de se conectar com a realidade histórica da época.
Mas além do dinheiro, da reputação e influência, o que teria sido herdado pela família do candidato Doria? Bem, ano passado o agora candidato a governo de SP João Doria apoiou uma alteração numa portaria que abre brechas e dificulta a fiscalização que impedia o trabalho escravo em nosso país, evitando que o nome dos empresários fossem divulgados facilmente.
Relevando esse fato com as suas políticas de limpeza da cidade de São Paulo, que beiravam a “higienização” da época da eugenia brasileira, são indícios de uma reminiscência da ideologia racista. Só que ninguém quer discutir o racismo brasileiro, nem lembrar dele. Apenas negar, ignorar e, assim como Freire, colocar um discurso de miscigenação, como uma afirmação falaciosa de que tudo está resolvido – pretos sabem que não.
Para conhecer a história de toda árvore genealógica da família de Doria, vale a pena esse estudo desenvolvido pelo genealogista brasileiro Francisco Antônio Doria.
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