Após o assustador massacre de domingo em uma boate gay de Orlando, nos EUA, é compreensível que envolvidos na comunidade LGBT queiram fazer o que puderem para ajudar as vítimas. O problema é que muitos homens bissexuais e homossexuais da região estão impedidos de participar de uma das formas mais importantes de se ajudar: doando sangue.
O atentado reacendeu um antigo debate sobre a proibição generalizada imposta pela FDA (Food and Drug Administration, o órgão de fiscalização norte-americano) quanto à doação de sangue por parte de homens que fazem sexo com homens. Por mais que a proibição vitalícia, que entrou em vigor no ano de 1983, tenha sido reduzida em 2015 para “um ano do ato sexual com uma pessoa do mesmo sexo”, muitos argumentam que tal política não tenha base na ciência moderna e que é motivada ainda por medo e preconceito. (No Brasil, a mesma política é adotada. Segundo a Portaria n°2712/2013 do Ministério da Saúde, homens que fizeram sexo com outros homens devem esperar 12 meses parar doar sangue. Em nota enviada por email, o Ministério afirma que o grupo é “inapto” temporariamente para doação e que o critério considera essa população vulnerável, ou seja, mais propensa a contrair DSTs.)
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Analisando os fatos, percebe-se que não há base científica sólida para impedir todo e qualquer homem que tenha feito sexo com outro homem no decorrer do último ano de doar sangue. A prática parece mais uma sobra do preconceito que discrimina um grupo com base na sua sexualidade do que a redução de riscos.
A proibição tem como objetivo impedir que uma pessoa infectada por HIV doe sangue. Não querer sangue soropositivo em meio às doações é compreensível, o que serve de base para demais proibições – usuários de drogas intravenosas, com risco maior de infecção pelo vírus HIV, também são impedidos de doarem sangue. Também é fato que homens que mantêm relação sexual com pessoas do mesmo sexo têm maior predominância de infecção pelo vírus do que a população em geral: o Centro de Controle de Doenças (CDC) calcula que 18% destes homens são soropositivos, um contraste entre o menos que 1% da população em geral.
“A prática, mesmo que revisada, segue discriminatória.”
Mas este grupo não é o único que contrai HIV. Todo o sangue doado é testado para doenças infecciosas, incluindo o próprio HIV. Desde o surgimento do vírus, medidas preventivas reduziram as chances de contraí-lo por meio de doações de sangue para cerca de uma em 2 milhões. Então qual que é a desse intervalo de um ano – demora mesmo tudo isso para o HIV aparecer no seu sangue?
“Cientistas e bancos de sangue tem empreendido grandes esforços para tornar os exames cada vez mais eficazes, sendo capazes de identificar infecções com poucos dias”, comentou o Dr. Paul Volberding, diretor do Instituto de Pesquisa da AIDS da Universidade da Califórnia em San Francisco, nos EUA. “Então uma proibição de 12 meses não faz o menor sentido.”
Volberding disse que o intervalo de tempo entre a exposição ao HIV e sua detecção em exames é bem curto. Ele sugeriu ainda que a proibição poderia ser encurtada para qualquer homem que tenha transado com outro na última semana e tudo continuaria tão seguro quanto as restrições atuais.
Nos últimos anos, exames rápidos se tornaram mais eficazes. Podem detectar até mesmo níveis baixos de anticorpos, permitindo um diagnóstico mais rápido e diminuindo drasticamente o número de falsos negativos. Mesmo as estimativas mais conservadoras para este intervalo entre exposição e infecção são muito menores que um ano: 98% das pessoas têm anticorpos o suficiente para dar positivo num teste de HIV em até três meses de exposição, de acordo com a San Francisco AIDS Foundation.
Volberding também destacou que a maioria dos norte-americanos soropositivos estão cientes de sua condição e estariam impedidos de doar por causa disso. O CDC calcula que 88% dos americanos soropositivos saibam de seu estado, e Volberding disse que em certas regiões – caso de San Francisco – até 95% dos indivíduos soropositivo sabem de sua condição.
“Então você pode dizer ‘não doe sangue se sabe que está infectado’ e isso reduzirá o risco substancialmente e, caso você use as técnicas mais modernas em exames de sangue, pode encontrar pessoas infectadas que ainda não sabem que tem o vírus”, afirmou Volberding.
Ao anunciar a proibição de um ano, a FDA disse que a decisão havia sido tomada com base na ciência mais atualizada, mas as autoridades não deram detalhes específicos sobre como o prazo havia sido determinado, além de citar que outros países empregavam práticas semelhantes. Grupos de defesa, tais como o Gay Blood Drive, afirmam que a diferença entre o tempo necessário para se realizar exames e o tempo imposto pela FDA tem como base a estimagtização.
“A prática, mesmo que revisada, segue discriminatória”, declarou o grupo em nota na época. Ontem, ele encorajou no Twitter quem poderia doar agora, mas comentou: “Nos vemos diante de uma situação em que as vítimas afetadas diretamente por esta tragédia e que precisam de sangue, que pode salvar vidas, são impedidas de doá-lo.”
No lugar de uma proibição de semanas ou meses, o Gay Blood Drive defende uma política de avaliação de riscos individualizada em que o extenso questionário já aplicado no ato da doação possa ajudar a reduzir quaisquer riscos de infecção por HIV. Em 2001, a Itália fez exatamente isso: permitiu que homossexuais doassem sangue como qualquer outra pessoa, avaliando os riscos por meio de questionário pessoal, e pelo menos um estudo provou que esta mudança não alterou em nada a prevalência de sangue infectado em meio às doações.
A boa nova é que não falta gente disposta a doar em Orlando – os bancos de sangue da região estão lotados após a escassez inicial e até mesmo pedindo para que as pessoas voltem em outra ocasião. Porém, para muitos na comunidade, a proibição segue como uma ferida aberta em um período de sofrimento.
Tradução: Thiago “Índio” Silva