O que é preciso para resolver o problema da Cracolândia?

Na manhã de 21 de maio, João Doria (PSDB), prefeito de São Paulo, afirmou que a Cracolândia tinha acabado. “Não vai voltar mais“, assegurou, convicto, em frente às câmeras. A certeza do gestor se originava na operação da Polícia Militar que buscava extinguir de uma vez por todas a conhecida área da região central da cidade dominada pelo consumo e a venda de crack. Assim como um de seus antecessores, o ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD), que também acreditou ser capaz de exterminar o local, Doria falhou na missão.

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Há pelo menos 15 anos o quadrilátero paulistano do crack sobrevive gestão após gestão, programa após programa, ação da PM após ação da PM. Em tese, parece simples resolver o problema. Bastaria acabar com o tráfico de drogas e retirar os viciados dali. Bastaria, então, “recolocar” a Cracolândia no mapa de São Paulo. Por que, afinal, é tão difícil resolver esse problema?

Existem diversos exemplos de cidades pelo mundo que conseguiram extinguir suas versões internacionais da Cracolândias. Bogotá, na Colômbia, é um exemplo sempre citado. Nova York, nos EUA, virou referência quando se fala em crack. O que falta, então, para que a capital paulista tenha sucesso?

Para Robert Stutman, ex-diretor da DEA (Drug Enforcement Administration, agência responsável por combater o tráfico de drogas) no estado de Nova York, a estratégia da prefeitura e do governo de São Paulo está equivocada. “Temos uma área na cidade de Nova York chamada Alphabet City, no Lower East Side, que foi a Cracolândia de vocês. Nós enchemos a área de polícia, mas tudo o que fizemos foi deslocar os viciados. Não fizemos absolutamente nada a não ser mudar o problema de lugar. Você tem que resolver os problemas subjacentes para lidar com a questão”, disse ao Motherboard.

“Tem que haver uma preocupação com o espaço, mas temos que ver qual é a política de assistência e cuidado com essas pessoas. Isso é de longo prazo, não é fácil, é demorado.”

Stutman comandou o DEA nova-iorquino a partir de 1985, época em que a cidade viu a criminalidade chegar a níveis alarmantes, em parte por conta da epidemia de crack que atingiu a cidade. Hoje palestrante e consultor em segurança pública, Stutman crê que reprimir quem está na rua não é eficaz. “Você não pode se concentrar nos traficantes que ficam na rua”, diz. “Para cada um que você prende, existem outros seis para tomar o lugar. Nessas áreas, muitas vezes, essa é a única maneira que eles têm de ganhar dinheiro. Torna-se um modo de vida.” O correto, afirma, é ir atrás dos peixes grandes: “Você tem que pegar os grandes traficantes, que fornecem o grosso da cocaína. Lembre-se: os grandes são traficantes de cocaína”.

Antes de conseguir acabar com a concentração de usuários em Alphabet City, as autoridades de Nova York haviam tentado resolver o problema de maneira semelhante à tática de João Dória em 2017. O resultado, explica Stutman, foi apenas deslocar os usuários para outro lugar. Algo semelhante ocorreu em São Paulo; depois da ação policial do dia 21 de maio, os usuários passaram a se concentrar na Praça Princesa Isabel, perto da Cracolândia “original”.

Outro erro, aponta o ex-agente do DEA, é não ter uma estratégia que articule as diferentes autoridades responsáveis pela questão, como assistentes sociais e agentes de saúde. Maurício Fiore, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, pesquisador e diretor administrativo do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), concorda com o diagnóstico. “O que aconteceu foi a invasão puramente policial; não havia nenhum tipo de política vinculada àquela ação”, disse ao Motherboard. “Na sequência, a Prefeitura alegou que ofereceu tratamento e recebeu as pessoas, mas isso não é uma política articulada; na verdade, você só opta pelo combate ao tráfico, mas que, na verdade, a gente sabe que não acaba com o tráfico. Teve efeito momentâneo. Expulsou os usuários para que aquele lugar deixe de ser a Cracolândia, mas eles foram para outros lugares.”

Crédito: Rovena Rosa/ABr

Para Fiore, os exemplos do exterior mostram que “dificilmente você consegue fazer com que todas as pessoas larguem o crack ou consigam mudar de vida”. As Cracolândias, não importa em que lugar estejam, são fruto de “uma complexa relação entre crack, miséria urbana e população de rua”, afirma. “São zonas que se degradaram ao longo do tempo e o crack teve uma afinidade eletiva, vamos dizer assim, com aquela situação.”

E por que, mesmo com tantas intervenções, prisões e repressão, os usuários acabam sempre criando e recriando a Cracolândia? “A Cracolândia é uma rede de proteção dos usuários; eles passaram a estar mais protegidos ali do que se estivessem sozinhos. Eles têm uma rede de afetos, relações sociais, mas também comercial; você troca e vende de tudo. Criou-se de fato uma unidade social que tem o uso do crack como um centro. Se você olhar apenas o crack, você vai errar”, afirma Fiore.

Dar um fim à Cracolândia, se é que é possível, demanda paciência. “Tem que haver uma preocupação com o espaço, mas temos que ver qual é a política de assistência e cuidado com essas pessoas. Isso é de longo prazo, não é fácil, é demorado.” Para Stutman, um elemento essencial nessa “guerra” é a capacidade da polícia estabelecer uma relação com a comunidade. Em Nova York, conta, “a polícia não estava lá para prender as pessoas, mas para dar uma sensação de segurança a quem não estava envolvido com drogas. “Assim que as pessoas se sentirem seguras, elas voltam àquela área”, diz.

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