Foto: Prefeitura Municipal de Itanhaém/ Flickr
De dezembro para janeiro deste ano, quase 200 mil pessoas deixaram de pagar seus planos de saúde. Os dados, fornecidos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regulamenta os planos no país, mostram que, em tempos de crise financeira e com a estimativa de que 23 milhões de brasileiros estejam desempregados, é preciso protelar tal investimento particular para conseguir arcar com gastos básicos, como alimentação e transporte.
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Diante de um sistema público de saúde vagaroso, cada um cuida das suas patologias como pode. Seja optando por consultas particulares mais baratas, esperando nas longas filas de atendimento do SUS (Sistema Único de Saúde) ou recorrendo às medicações disponibilizadas gratuitamente. Doenças crônicas ou que exigem um tratamento caro e longo, porém, complicam a vida de muita gente. Nem todos os remédios são distribuídos de graça e, muita vezes, não dá pra esperar semanas a fios, meses ou até mesmo anos para um tratamento adequado ou consulta com especialista.
Quando a demissão inesperada bateu à porta do produtor audiovisual Pedro*, 31, a ansiedade, diagnosticada por psiquiatras anos antes, aumentou. “Eu não tinha dinheiro pra pagar consulta particular. Já estava melhor das crises, mas aí começou a noia de que ia entrar na noia de qualquer coisa e ter crise de ansiedade”, relembra.
Deficiente visual, Laura*, 46, teve de largar a profissão de terapeuta holística ao ser diagnosticada com uma síndrome rara e anafilaxia, uma reação alérgica grave que pode levar à morte súbita. Há seis meses de cama, ela depende de uma medicação caríssima: a dose mensal custa, aproximadamente, R$ 9 mil. Acabou conseguindo na Justiça o direito de obter o remédio gratuitamente. “Embora o governo seja obrigado judicialmente a me fornecer, não o fazem com regularidade”, relata a aposentada. Essa demora faz com que sua doença se agrave e novos sintomas apareçam.
Diante de situações como as citadas anteriormente, a VICE perguntou a alguns brasileiros: “o que você faz quando está sem dinheiro para bancar seu tratamento médico ou seus medicamentos?”. Leia os depoimentos abaixo.
TENTEI ME MATAR
Camila*, 25, jornalista
“Em 2015 eu parei de evitar o inevitável e fui pela primeira vez ao psicólogo depois de um episódio de luto que me deixou um lixo. Fazia um tempo que eu tinha percebido que a minha ansiedade não era normal. Depois de algumas sessões, a psicóloga me indicou um psiquiatra, que oficialmente diagnosticou minha depressão e ansiedade. Ele me receitou três remédios: um antidepressivo e um ansiolítico, ambos tarja vermelha, e um antidepressivo tarja preta pra usar só em casos extremos. O problema é que eu fazia (e ainda faço) o tratamento escondida do meu pai porque ele é extremamente conservador e acha que depressão e ansiedade não existem. Além disso, um mês depois de começar a tomar os remédios eu fui demitida. Tive que parar com a medicação porque ela é bem cara e, como desgraça pouca é bobagem, no final daquele ano eu perdi meu convênio médico, então parei de ir à psicóloga e ao psiquiatra também. Pra completar, 2016 foi, até agora, o pior ano da minha vida: me afastei de quase todos os amigos, não conseguia me formar na faculdade, não conseguia arrumar emprego e os poucos freelas que eu tinha proposto simplesmente não saíam do papel, tudo porque a depressão e a ansiedade pioraram muito e eu não tinha condições ou vontade de fazer absolutamente nada. A ansiedade se transformou em ataques de pânico frequentes e a depressão resultou numa tentativa de suicídio no meio do ano passado que só minha mãe e meu irmão sabem, porque foram eles que me impediram. Eu só aguentei até agora porque passei a usar aquele remédio tarja preta de emergência pra me segurar quando sentia que não ia aguentar viver. Recentemente tive condições de voltar a me tratar e voltei pros remédios no início do mês. Espero que dessa vez dê certo.”
FIQUEI EM COMA POR QUATRO DIAS
Laura*, 46, aposentada
“Tenho Síndrome Látex Alimentos (SLA), uma alergia ao látex, e anafilaxia, uma reação alérgica grave que envolve todos os sistemas: digestivo, respiratório, vascular e também a pele. Ela pode levar à morte imediata ou provocar sequelas caso a adrenalina injetável não seja aplicada a tempo. Além de tudo, sou deficiente visual. Nunca tive condições de comprar adrenalina auto-injetável e, por um tempo, cheguei a ter quatro a cinco anafilaxias por mês, dependendo da sorte de ter alguém comigo que soubesse dosar e aplicar adrenalina com seringa. Atualmente, uso medicação especial que consegui na Justiça e estou mais estável, mas vivo restrita à minha casa e, ainda assim, tenho anafilaxia pelo menos uma vez ao mês. No Brasil, a adrenalina auto-injetável sequer é vendida. Tem de ser importada. Duas ‘canetas’ juntas custam US$ 250. Em crise, eu preciso dessas duas doses. No último ano, tive grande piora com graves complicações vasculares devido ao não fornecimento pelo Estado da medicação especial, cuja dose mensal custa perto de R$ 9 mil. Embora o governo seja obrigado judicialmente a me fornecer, não o fazem com regularidade. Sou terapeuta holística, mas parei de atender pois tudo se agravou por conta dos atrasos da medicação. Agora, tenho também vasculite e hemorragias. Estou de cama há seis meses.
Já estive em coma por quatro dias em uma das crises. Isso é só uma parte. Só posso consumir apenas 10 alimentos e preciso me manter isolada de muitas coisas.”
PRA ECONOMIZAR, EU CHEIRO MEU REMÉDIO
Nina*, 30, publicitária
“Eu sempre tive ansiedade, mas depois que trampei num lugar muito cagado, fiquei emocionalmente abalada, tive uns ataques de pânico e, pra piorar, uma bursite que imobilizou meu braço direito por três meses. A dor, frustração e tudo mais me jogou no bueiro. Aí, fui procurar meu psiquiatra de sempre, que me conhecia desde mais nova, mas descobri que ele tinha morrido de câncer. Minha terapeuta recomendou uma psiquiatra que me atendeu de graça. Como o antidepressivo mais barato acaba com a libido, ela me passou um remédio carão que foi incrível, melhorou 100% minha vida. Mas eu me mudei pra Alemanha com o meu marido, fiquei desempregada e aí não estava dando pra comprar o remédio. Aqui, o tratamento de depressão é diferente. Não tem remédio gratuito. Geralmente, as pessoas ficam internadas fazendo umas atividades. Remédio é usado só em casos mais graves. O medicamento que eu uso não é disponibilizado pelo governo, nem pelo SUS no Brasil. E ele também não tem genérico. Tive que dar meus pulos. Acabei procurando no mercado ilegal, em fóruns da internet, porque aqui o medicamento é mais caro ainda e minha médica não consegue amostra grátis. Falei com pessoas que tomavam o mesmo medicamento que eu e tiveram de parar ou trocar de remédio, aí comprei as sobras. Primeiro, comprei de uma mina que ficou grávida e não podia mais tomar. Depois, o cara da farmácia meteu o louco e me vendeu de R$ 150 por R$ 120, e assim vou sobrevivendo. O foda é que, nesse esquema, as doses variam e eu tenho que regular manualmente, o que é meio cagado. Agora eu maceto o remédio e cheiro. Nunca recomendaram, mas eu testei e rolou. Minha dose ideal é 50 mg, mas consegui comprar três caixas de 100 mg. O problema é que ele esfarela muito quando eu corto e eu nunca consegui equilibrar a dosagem, por isso, quando maceto e ele vira pó, tenho de cheirar. Quando eu não tomo ou tomo uma quantidade mais baixa, tenho enxaqueca. É meio deprimente fazer isso. Me sinto o Elliot, do Mr. Robot.”
PREFIRO DEIXAR DE PAGAR O ALUGUEL DO QUE FICAR SEM ME TRATAR
Caio*, 26, vendedor
“Lá pelos 21 anos recebi o diagnóstico de um transtorno depressivo meio hard. Até então nenhuma surpresa, uma vez que desde o dia que passei a me entender como ser humano sabia que não conseguia estar em um patamar aceitável de bem estar perante qualquer situação cotidiana. O caso era um pouco mais específico pois se tratava de um transtorno endógeno, ou seja, por algum tipo de disposição hereditária. Meu próprio corpo não conseguia produzir determinados hormônios que geralmente deixam as pessoas felizes. Nem mesmo com estímulos externos eu tinha bons resultados (como atividades físicas, sexo, drogas estimulantes e afins). Passei, então, a receber doses controladas de hormônios básicos para um jovem do gênero masculino estabilizar questões de seu corpo. Barba, pelos e até a libido só apareceram na minha vida a partir daí. Com o tempo, passei a tomar uma dosagem alta de antidepressivos para poder jogar as substâncias da felicidade lá em cima, e com o tempo diminuir até que se estabilizasse. A treta é: quando você começa um tratamento desse, até a medicação e dosagem certas se ajustarem ao seu corpo você acaba perdendo um pouco o controle de várias outras coisas. Muitos sintomas depressivos até pioram, e no meu caso não foi diferente. Excesso de tristeza e ira incontroláveis me fizeram perder o bom senso ao ponto de mandar chefes irem tomar no cu. O resultado, claro, foi que não consegui me manter em nenhum trampo, e fiquei desempregado apenas com o dinheiro de rescisão. A primeira coisa que eu faria seria pedir ajuda, mas quando tu acaba de sair da adolescência, não tem família próxima e divide casa com gente desconhecida você ainda não desenvolveu o senso de humildade para isso. Sabendo que, além de um remédio que mensalmente exige um investimento de três dígitos, sessões psiquiátricas que chegam a quase o dobro, e que o sistema público de saúde não é capaz de oferecer esse auxílio — mesmo alegando ter profissionais e recursos dessas especialidades —, não tive outra opção senão cortar este gasto para garantir teto e cesta básica. Com a interrupção da medicação, passei por diárias crises de pensamentos suicidas. O corpo entrou em crises de abstinência da medicação, então ou eu passava umas 16 horas por dia dormindo pra não ter que ficar na bad, ou ficava em estados de tremores, suores e desesperos que não me deixavam fazer muita coisa. Algumas vezes tudo parecia que ficava bem, e, às vezes, tudo voltava ao ponto de eu parar o que estivesse fazendo, deitar no chão e esperar aquilo passar. Fiquei quase três meses tentando levar o que dava, apenas tendo interações com seres humanos pelo Facebook para evitar qualquer tipo de abalo, e até faltando em entrevistas de emprego por impossibilidade de sair da cama. Quando chegou em um estado bem crítico que eu não queria mais nem comer, aí eu pedi ajuda para pessoas da família que eu não tinha interação, usando um argumento de estar em um tratamento respiratório qualquer. Voltando com a medicação, parece que você está injetando uma seringa cheia de glicose depois de dar PT na balada. Aí sim as coisas começam a clarear, e você entende que aquilo nada mais é do que um problema médico como alguém que tem asma e não pode ficar sem bombinha, ou alguém com pressão alta e não pode comer sal. Aos poucos, os sintomas desapareceram e eu pude voltar com a minha vida mais ou menos como era antes. Com o passar dos anos, alguns valores mudaram: hoje é muito mais fácil eu preferir ficar sem pagar aluguel a ter que deixar as consultas e medicações de lado. Ainda não sei se dá pra dizer que se eu parasse tudo de novo hoje eu conseguiria segurar um pouco mais, já que o tratamento ao longo do tempo ajudou bastante. Mas prefiro não tentar descobrir. Ah sim, desde então nunca mais mandei algum chefe tomar no cu. Não em voz alta.”
ODIAVA QUE AS PESSOAS ME VISSEM DAQUELE JEITO
Emília*, 23 anos, estudante
“Os primeiros sintomas de rosácea aconteceram quando eu tinha uns 19 anos.A doença se manifestou em um pico de estresse muito forte. Na época, achei que era alguma alergia. Depois de uma semana com o rosto todo empipocado, vermelho e inchado, uma amiga deduziu que poderia ser rosácea, uma doença crônica que atinge principalmente pessoas com pele clara e são muito coradas (com muitos vasos na região facial). O maior problema da doença é que eu nunca sabia quando ela ia aparecer. Vários fatores poderiam agravá-la, como comidas apimentadas, bebidas quentes, álcool, exercício de alta intensidade, mudanças bruscas de temperatura… Então, comecei a evitar tudo isso. Deixei de ir em festas, em rolês. Odiava que as pessoas me vissem daquele jeito. O primeiro dermatologista do plano de saúde que fui me indicou vários cremes de marcas caríssimas, e quando estivesse no pico dos sintomas teria que tomar um antibiótico a longo prazo. Segui todos os tratamentos e os cremes nunca adiantavam. Os sintomas só desapareciam quando tomava o antibiótico, mas sabia que ficar a base deles não seria benéfico para a minha saúde. Após vários médicos, muitos cremes, muito dinheiro gasto e nenhum resultado, me indicaram uma dermatologista, só que dessa vez particular. Ela indicou cremes manipulados e várias recomendações, e quando o pico da doença tivesse desaparecido teria que fazer um laser no rosto para secar os vasos, que seria realmente o tratamento mais efetivo. Os remédios manipulados, que são muito mais baratos do que os vendidos em farmácia, realmente diminuíram em 70% os sintomas e utilizo-os até hoje, mas por conta do preço da consulta e do laser, não consegui dar continuidade no tratamento. Além das questões estéticas, os sintomas eram extremamente incômodos. Eu sentia a minha pele queimando e inchando 24 horas por dia, como se fosse queimadura de sol. Sentia muita vergonha de sair em público.”
A NOIA DE TER NOIAS
Pedro*, 31 anos, produtor audiovisual
“Comecei a terapia pra aprender lidar melhor com problemas familiares e meu comportamento meio escroto, como bebida demais, droga demais, insegurança demais. Depois de um tempo, parei [a terapia] porque estava melhor. Passei a ter crises de ansiedade por causa do trabalho. Cheguei a ir em psiquiatra, tomar remédio e tudo mais. Quando fui demitido de onde trabalhava, perdi o plano de saúde e não tinha dinheiro pra pagar consulta particular. Já estava melhor das crises, mas aí começou a noia de que ia entrar na noia de qualquer coisa e ter crise de ansiedade. Uma vez ou outra falei com a psicóloga por telefone ou e-mail e fui levando assim. Fora as vezes que estava meio cagado de bronquite (que tenho desde que nasci) e me auto mediquei em casa na esperança de não dar nada pior. Quando sinto qualquer sintoma de bronquite, acho que estou em uma situação muito pior do que estou. Às vezes, uma inalação resolve, mas, pelo fato de não ter plano de saúde, fico imaginando que vai ser uma crise pior do que realmente é. Bate uma ansiedade nesse sentido. Fiz um plano de saúde recentemente. Simples, mas fiz. Então, as noias no sentido de ‘ai, meu Deus, vou ter uma doença horrível e vou gastar todo meu dinheiro no hospital’ passaram.”
*Os nomes foram trocados para proteger a identidade dos entrevistados