Donato da Paz se aproxima de sua pequena banca de fibra de vidro, destrava um cadeado e descerra uma portinhola convertida em proteção contra o sol das 9 da manhã. Dentro da estrutura estão uma cadeira feita com o mesmo material da banquinha, sacos com bolas murchas e ferramentas. O homem de 62 anos pega uma das bolas e, em pé, infla com bomba manual. Coloca a pelota de canto e repete o ritual com outra. Para reforçar a proteção, abre um guarda-sol. Pega agulha, linha e se senta. Seu dia de trabalho já vai começar.
Com o par de óculos na ponta do nariz, bermuda jeans, chinelos de dedo e uma camisa azul desproporcionalmente grande, o baiano de Vitória da Conquista conta que migrou para Guarulhos, na Grande São Paulo, quando tinha 17 anos. Nunca mais saiu da cidade — nem para passear. “Vim atrás de oportunidades. Na Bahia, trabalhei na colheita de cacau desde que tinha nove anos. Mas quando fiz 17, vim pra São Paulo tentar a sorte”, conta. Foi também na infância que ganhou queloide ostentada no centro do tórax. “Rasguei meu peito no arame farpado. Conforme fui crescendo, a cicatriz cresceu junto comigo”, explicou.
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Enquanto costura uma bola murcha conta que, até os 35 anos, trabalhou como pôde em diversas funções. Quando virou frentista em um posto de combustíveis, conheceu a profissão que o acompanha até hoje. “Um amigo meu costurava bolas de futebol e estava com muito trabalho. Perguntou se eu queria ajudar e eu topei”. Em trinta minutos, da Paz aprendeu o ofício que exerce há 27 anos no centro de Guarulhos, no calçadão da rua Dom Pedro II, principal centro comercial da cidade. Em sua banquinha, a mesma onde começou seu ofício em 1991, é informado que ali se “conserta bolas” e também se “engraxa sapatos”. Na região onde trabalha, ele é conhecido pela discrição e timidez.
O futebol na vida do baiano/guarulhense não se resume a remendar bolas. Ele também é conhecido como “Pelé”, e não por causa do que faz em campo. Trabalhou durante três anos em um time do futebol de várzea de Guarulhos, o União dos Servidores, composto basicamente por funcionários públicos. Mais uma vez, da Paz trocou os pés pelas mãos, com as quais fazia massagens nos atletas da equipe. “Mas eu também levava água no campo, remédio pra dor e spray pra no caso de algum jogador se lesionar”. O trabalho era voluntário e da Paz não falou em quais anos foi exercido.
Costurando bolas, da Paz comprou a casa própria, além de criar dois filhos e duas filhas. “Mas se fosse nos dias de hoje, acho que não ia conseguir isso tudo”, admitiu. Atualmente, ele ganha R$ 600 por mês, conquistados com turnos de trabalho das 9h30 às 16h30, de segunda a sábado. Ele demora, em média, trinta minutos para deixar uma bola em condições de jogo, cobrando entre R$ 15 e R$ 20 pelo serviço, dependendo da dificuldade. Ou seja, durante os 90 minutos de uma partida de futebol, ele pode faturar até R$ 60. A título de comparação, Neymar Júnior ganha, em três minutos, R$ 633 – mais do que o costurador conquista em um mês. Por coincidência, da Paz torce para o Santos, time que revelou o craque e atual destaque do Paris Saint-Germain.
O idoso ajuda a compor as estatísticas de pessoas acima de 60 anos que se mantém no mercado de trabalho, formal ou informalmente. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnadc), referente a 2012 e 2017, indica que o contingente de trabalhadores ocupados com mais de 60 anos aumentou em 26,3% no Brasil.
E se depender da satisfação dos clientes, da Paz deve continuar muito tempo na função. Um de seus clientes mais assíduos é o auxiliar técnico das categorias de base do Clube Atlético Guarulhense, Paulo Marcos Fernandes de Oliveira, 38 anos. Ele usufrui dos serviços do costurador desde os oito anos de idade. “Eu ia no começo acompanhando o meu pai, para consertar as bolas. Fui crescendo e, sempre que furava ou rasgava alguma bola, ia direto pra barraquinha do seu Donato.”
Aos 14 anos, Oliveira se tornou roupeiro nas categorias da Associação Desportiva Guarulhos, que disputa atualmente a segunda divisão do Campeonato Paulista. “Sempre que furava uma bola, o pessoal falava pra levar pro tio do centro. Alguns nem sabiam o nome dele, mas a qualidade do serviço fez ele virar uma referência.”
O auxiliar técnico garante que uma pelota consertada por da Paz dura até mais tempo do que uma nova. “Geralmente, uma bola nova dura de seis meses a um ano, depende. Mas depois que o Donato costura, eles costumam aguentar até dois anos.” Profissionais e amadores não têm dúvidas a quem procurar quando suas redondas murcham, por qualquer motivo que seja.
Quando questionado sobre a qualidade de seu serviço, da Paz prefere o silêncio. Arredio, parece não gostar de qualquer conversa. Em um jogo rápido, ele demonstrou que o negócio dele com o futebol é mesmo dar apoio. Admitiu não acompanhar partidas e, mesmo em tempo de Copa do Mundo, alegou que o tempo disponível será usado para fazer “coisas mais importantes”. Dentre essas coisas, está, claro, a costura de bolas.
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