Ainda não tinha experimentado o medo numa manif e parece-me que a maior parte dos que ali estavam também não. Para mim, o dia começou às 13h, quando me reuni no Cais de Sodré com o MSE – Movimento Sem Emprego e o sindicato dos estivadores. Como se sabe, estes últimos gostam de petardos, por isso a viagem até ao Rossio foi barulhenta. Até nos juntarmos à CGTP houve uma ou outra confusão com a polícia, mas nada de importante. Já depois do Chiado, a manifestação partiu. Os estivadores decidiram seguir por outra rua e eu fui com os alternativos. Não me arrependi porque cheguei lá mais depressa.
Chegados à AR, lá estava a caravana da CGTP para nos receber. O Arménio Carlos começou a discursar e eu aproveitei para fazer outras coisas (neste caso para lanchar). Depois do discurso não foi preciso muito para as grades voarem. Ainda tentei fazer um vídeo decente, mas foi impossível. Mal caíram as grades, começaram a voar garrafas por cima da minha cabeça. Tentei sair do meio da malta fodida e uma garrafa bateu na parede mesmo ao lado da minha cara. Senti os estilhaços. Se garrafas a voarem por cima da minha cabeça é o grau zero da violência em manifs, estilhaços na cara é uma descida aos infernos.
Relaxei, tirei umas fotos ao pessoal e pus-me em cima da carrinha do MAS para fotografar tudo com alguma segurança extra. O que vi foi uma chuva de calhaus, litronas de cerveja, petardos, balões com tintas para manchar as fardas, etc. Nota de destaque para uma malta que roubou um escudo gigante a um polícia e que grafitou “POVO” a preto para depois o devolverem quando lhes apeteceu.
Os polícias estiveram cerca de uma hora a receber com pedregulhos em cima, por isso decidi fazer outra pausa. Fui beber uma cerveja ao minimercado de um indiano e carregar a bateria da câmara no talho em frente.
Passada uma meia-hora, quando voltei à AR, o ambiente era exactamente o mesmo. Zero cargas, mil pedras no ar. Eu estava no meio da barafunda quando um polícia disse uma merda qualquer imperceptível no megafone (sei agora que era uma ordem para dispersar). Os manifestantes mandaram-no foder e a carga começou. Lançaram uns foguetes para o ar (acho que se chamam borboletas) que nos deixavam atordoados e encheram o pátio de fumo. Perdi-me no meio da confusão. A velocidade dos acontecimentos foi impressionante. Vi ao longe pessoas a safarem-se como podiam.
Fiquei esmagado entre pessoas e a minha sorte foi o azar de outros. Tinha um escudo humano à minha frente. Os polícias, enquanto carregavam, gritavam “não digam que não foram avisados”. Batiam sem pedir licença e fugimos por onde pudemos.
A polícia continuou a avançar e barriquei-me num prédio qualquer. Fiquei lá fechado com mais pessoas. A polícia estava mesmo à porta e eu conseguia ouvir as balas de borracha. Deixei de ouvir os disparos e decidi sair para tirar mais umas fotos. Saí do refúgio como um ladrão que acabou de assaltar um banco, de braços no ar para não me dispararem. Irónico não é?
Continuei perdido e segui o trajecto da destruição. Parece-me que o pessoal se dividiu e começou a queimar cenas em sítios muito variados. Partiram também a montra de uma Caixa Geral de Depósitos. Muitas das avenidas principais tinham caixotes enormes em chamas que impediam a circulação. Ouvi disparos no Cais de Sodré e ainda apanhei dois fulanos a serem revistados e detidos pela polícia. Quando tentei tirar fotos disseram-me “vai-te foder e baza já daqui”.
Foi o que fiz quando já só restavam as fogueiras.