Música

Os Diretores de Clipes Recebem uma Remuneração Justa?

Nós todos lembramos da primeira vez que um clipe deixou uma marca em nossas versões adolescentes, tão impressionáveis. Comigo, foi Big City Nights, de Spike Jonze, peça de acompanhamento de “Da Funk”, do Daft Punk. Fiquei imediatamente impressionado com o pobre Charles – um cachorro antropomórfico com a perna quebrada – enquanto ele vagava pelas ruas caóticas de Manhattan após o anoitecer, indefeso diante do bumbo ensurdecedor de “Da Funk” estourando no seu som portátil. Havia algo estranhamente cativante em ver um hino do house, feito por produtores franceses à época desconhecidos, sendo usado como pano de fundo para um mini-filme sobre um cachorro excluído e seus sofrimentos na cidade. Quem era esse misterioso Daft Punk? Por que os nova-iorquinos eram tão rudes com esse afável meio-cão, meio-humano? E por que Charles simplesmente não deixou o som pra lá e embarcou no ônibus com sua amiga? Tantas perguntas que continuam sem resposta, quase duas décadas depois.

Diz-se que os anos 90 foram a era dourada do clipe, com gente como Spike Jonze e Michel Gondry dando seus primeiros passos, fazendo experimentações insanas com o formato, estimulados por músicos que gostavam de correr riscos, como Daft Punk, Björk e Beck. Embora a época dos “orçamentos de mais de US$100.000 para um clipe básico pronto para rodar” já tenha há muito passado, eu diria que os rumores sobre a morte do clipe são bastante exagerados. A cena está, na verdade, cheia até a tampa de jovens e inspirados criadores de imagens. Foi isso o que aprendi com a primeira edição do MUVIs, ou Montreal Music Video Festival, realizado como parte do evento da indústria M for Montreal, no final de novembro. Desde dançarinos surdos se movendo de acordo com as intangíveis vibrações sintéticas de “Sleep Sound”, de Jamie xx (direção: Sofia Mattioli), e uma exploração astuta e zapeante de “Like a Rolling Stone”, de Bob Dylan (direção: Vania Heymann – Melhor Vídeo Interativo), até um retrato inflexível de um connoisseur de música confinado a um hospício, no “Hers”, de Tommy Kruise (direção: Martin Pariseau – Melhor Roteiro & Conceito / Prêmio do Grande Júri), havia um suprimento aparentemente infinito de obras extravagantes, comoventes e verdadeiramente sublimes.

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Trabalhando com uma simples fração dos orçamentos que eram concedidos aos seus antepassados, os diretores de clipes da atualidade ainda assim inventam maneiras sempre criativas de desafiar os espectadores e subverter as expectativas. Um bom exemplo seria o cineasta francês Vincent Moon, membro do júri do MUVI deste ano, cujos Take Away Shows em La Blogothèque deram nova vida aos clipes para YouTube, com cenários improvisados e em plano-sequência. Moon e o seu bando da Blogothèque passaram anos filmando bandas indie em ambientes excêntricos e intimistas, desde o Arcade Fire tocando “Neon Bible” em um elevador de carga até Zack Condon, do Beirut, berrando a fantasmagórica “Nantes” em uma escadaria cheia de ecos. “A gente queria contar histórias relacionadas à música que fossem além de simplesmente reproduzir as canções”, Moon observou quando consegui falar com ele no Brasil, onde atualmente está filmando um longa-metragem. “Mesmo eu tendo crescido admirando uma certa estética de vídeo própria dos anos 90, com Gondry, Cunningham e Jonze, rapidamente passei a buscar maneiras de ir além dela para criar um diálogo improvisado entre filme e música, que transcendesse o vídeo com finalidades publicitárias. Eu queria muito destruir essa ideia de ‘garoto propaganda’, e igualar as condições entre os amantes da música e os criadores de música”.

Martin Pariseau está na vanguarda de uma nova geração de diretores de Montreal que estão entrando nesse mesmo espírito de luta contra o status quo. O vídeo dele para “One For Me”, de Ryan Hemsworth, concebido como o vídeo mais entediante de todos os tempos, destruiu mitos a respeito do glamouroso trabalho de DJ ao mostrar a realidade trivial (e a solidão) da vida na estrada. No MUVIs, Pariseau venceu os prêmios de Melhor Roteiro e Conceito e o Prêmio do Grande Júri pelo clipe de “Hers”, de Tommy Kruise. Este é um retrato comovente do amigo Bogdan Chiochiu, um cara com um conhecimento enciclopédico de música confinado a um instituto para doentes mentais por sofrer da síndrome de Asperger. “Ele é uma das pessoas mais inspiradoras que já conheci, e os sofrimentos pelos quais ele passa só mostram como a nossa sociedade não abre espaço para os que sofrem de Asperger”, diz Pariseau.

As coisas ficam um pouco mais desanimadoras, contudo, quando eu levanto a questão da remuneração. Quando pergunto a Pariseau sobre o assunto, ele sabe que estamos entrando num terreno polêmico. “A gente fez o ‘Hers’ com US$ 3.000, então, depois que você aluga a câmera, não sobra muita coisa”. Quando menciono que muitos dos melhores criadores de vídeos deste lado do oceano Atlântico não recebem nem um centavo pelo seu trabalho, Pariseau não se surpreende. “Eu também não, na verdade não fui pago pelos meus vídeos. O único pelo qual recebi um salário de verdade foi “Snow In Newark” [de Ryan Hemsworth]. As pessoas com as quais eu fico pilhado para trabalhar simplesmente não têm os meios ou a estrutura… Pessoas como o Tommy Kruise não têm acesso a [patrocínios canadenses como] MuchFACT ou MaxFACT. A nova realidade é que não há dinheiro disponível para os jovens, e acho que isso se aplica ao mundo da arte em geral. Criar arte virou um negócio tão acessível para todos que não há meios financeiros ao nosso alcance. É uma época muito estranha”.

Enquanto Pariseau faz sua mágica em vídeos para artistas iniciantes como Dead Obies, Kaytranada e Solids, sua colega canadense, Emily Kai Bock, que participou do júri do MUVI deste ano, cria maravilhosos mises-en-scène para astros do mundo indie como Grimes, Arcade Fire e, mais recentemente, Lorde. No New York Film Festival, mês passado, Paul Thomas Anderson – talvez o mais reverenciado entre os cineastas contemporâneos dos EUA – mencionou seu vídeo fantasmagórico “Oblivion”, para a Grimes, como inspiração para seu próximo filme, Vício Inerente. Com certeza ela recebe pelo trabalho, correto? Não. Todos trabalhos são pro bono, com exceção de “Yet Again”, do Grizzly Bear. “E isso porque [o pessoal do Grizzly Bear] bateu o pé e disse: ‘você vai ser paga, Emily’. Acho que recebi US$2.000. Essa foi a única exceção”, ela explica. “Até investi do meu próprio bolso em alguns deles, embora isso provavelmente seja culpa minha, porque para mim é impossível não me dedicar até o fim a um projeto. Eu filmo em 35mm, e se preciso de mais filme, ou de um segundo dia de filmagem, ou de uma locação adicional, o meu pagamento como diretora (se houver) vai ser a primeira coisa a ir embora”.

Nos casos tanto de Emily quanto de Martin, as bandas não chegam batendo na porta trazendo ideias completas e detalhadas; esses vídeos são criações deles, do início ao fim. O que torna ainda mais inquietante a prática de não pagarem um centavo pelo trabalho. “Eu meio que fui expulsa do jogo, porque você tem que fazer a coisa porque a ama”, diz Kai Bock. “Mas depois de fazer 15 clipes e nunca receber nada, você começa a entender como funciona a indústria: os músicos e as gravadoras com certeza lucram com os clipes, mas esse lucro nunca volta para o diretor”, ela argumenta, fazendo eco ao discurso no UK Music Video Awards deste ano, após vencer o prêmio de Melhor Vídeo Alternativo Internacional por “Afterliffe”, do Arcade Fire. “E isso vale para muitos dos meus colegas, que têm a mesma opinião sobre o assunto. Tipo: ‘caralho, não sei por quanto tempo posso continuar fazendo isso, porque não consigo pagar o aluguel’. A indústria precisa mudar”.

Quando menciono essa prática pro bono para Juliette Devert, a cofundadora dos MUVIs, ela parece igualmente perplexa. “Emily é uma pessoa muito influente na indústria dos clipes. Durante o nosso evento, muitos dos que vieram disseram que achavam maravilhoso que ela estivesse no nosso júri. O fato de que ela não recebe remuneração, mesmo trabalhando com artistas de grande porte, é um exemplo perfeito do atual paradoxo dos clipes. Esses clipes são de importância crucial para a campanha promocional de um artista. Nas mídias sociais e na internet, se um artista não tem um clipe, fica faltando uma peça gigante do quebra-cabeças. Mas já que o impacto econômico deles não é facilmente mensurável, os clipes são sistematicamente subvalorizados em termos de orçamento”.

Junto com Félix Brochier, Devert lançou o MUVIs deste ano para criar visibilidade para talentos locais da direção de clipes, estimulados por iniciativas semelhantes de premiação em Berlim e em Paris. Com mais de 200 inscritos de cerca de 22 países em sua edição inaugural, fica claro que a indústria de clipes continua a ser um ímã para talentos criativos de primeira linha. Mas, de acordo com Brochier, um ex-gerente de gravadora na Indica, os orçamentos com que os diretores ingleses ou franceses trabalham são muito mais generosos do que aqueles com que os criadores nativos têm que labutar. “A nossa realidade é bem diferente da dos mercados maiores, como França ou Inglaterra, onde os orçamentos para clipes de um artista contratado por uma grande gravadora chegam fácil ao nível de US$50.000. Em Quebec, quando você tem US$15.000, está trabalhando numa produção de orçamento gordo”.

Emily Kai Bock acredita que parte disso se deve a como as gravadoras interpretam as informações a respeito de qual é a fonte de seus rendimentos. “[As Gravadoras] dizem que hoje ganham dinheiro com os shows ao vivo. Bom, sim, com certeza, mas e quem está fazendo arte tendo os artistas delas como tema, de modo que as pessoas tenham vontade de ir vê-los ao vivo? Os clipes com certeza ajudam a vender ingressos. Na verdade, na Europa, eles até os chamam de ‘promos’, então de fato é tudo uma questão de perspectiva”.

Não é preciso dizer que uma identidade visual que chame atenção tem um grande poder para consolidar a atratividade de um artista. Desde o capacete onipresente de Deadmau5, com suas orelhas gigantescas, até a colcha de retalhos fluorescente de imagens políticas de M.I.A, a nossa cultura se ajoelha perante o altar sagrado da imagem. “Hoje em dia você mais vê do que escuta música, por causa do YouTube”, observa Kai Bock. “A Beyoncé acabou de lançar o disco mais recente com clipes, então, então se você for tocar no seu celular, os vídeos vão tocar também”.

Pariseau, por seu lado, compreendeu bastante cedo como um único clipe pode disparar uma carreira, quando ele lançou “Tony Hawk” para o supergrupo de rap bilíngue Dead Obies. “Foi o meu primeiro vídeo. Depois que a gente o soltou, o Dead Obies fechou contrato com a Bonsound na semana seguinte, e eu me juntei ao rol de diretores da Roméo & Fils naquela mesma semana”.

Em nossa era pós-Madonna e Michael Jackson, os clipes são considerados ferramentas publicitárias obrigatórias. O poder e relevância deles não são mais discutíveis. Eles geram conversas e alimentam imaginações. Mas, no momento, não têm alimentado os criadores. “É preciso se conformar com não receber crédito ou dinheiro algum, e fazer a coisa por amor”, diz Kai Bock. “É um lugar lindo de se estar: sentir orgulho do seu trabalho, e curtir o processo. É mesmo uma forma pura de fazer arte”.

O meio forneceu a muitas gerações de aspirantes a cineasta uma tela em branco, na qual podiam experimentar sem amarras. Spike Jonze e Michel Gondry partiram de arranjar robôs e nadadores sincronizados andando em círculos (“Around the World”, de Daft Punk) e uma coreografia estilo guerrilha do lado de fora de um cinema (“Praise You”, de Fatboy Slim) para se tornarem dois dos mais influentes contadores de história do nosso tempo. Então que tal dar a essa geração uma chance na luta? O próximo Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças ou Ela podem estar esperando nas coxias.

Michael-Oliver Harding é um escritor especializado em cultura que mora em Montreal. Siga Michael-Oliver Harding no Twitter.

Este texto foi publicado originalmente no Noisey Canadá.

Tradução: Marcio Stockler