Os músicos também são pessoas e não vivem do ar

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Há uma ideia de que o artista profissional português é subsídio-dependente, que vive num glamour diário, como se fosse uma estrela do Instagram com patrocínios ilimitados, rodeado de rosas e champanhe. Pode existir uma minoria que vive desafogadamente, mas o resto está longe disso e muitos têm um segundo emprego. E quando digo o “resto” incluo as equipas com quem trabalha (agentes, assessores de comunicação, produtores, etc.).

Na realidade, pode aplicar-se uma das verdades da clausura 2020 em que “não é o mesmo passá-la em mansões de luxo com jardim do que em apartamentos minúsculos”, como foi descrito num artigo da VICE Espanha. Entre nós e do outro lado da fronteira, no Reino Unido e em muitas partes do planeta, as desigualdades agudizam-se com a força invisível que aterrou no quotidiano.

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Passe algum exagero na comparação, a nossa indústria musical é como o Futebol das duas principais Ligas em termos de salários. Há meia dúzia que consegue facilmente dar a volta à crise do Coronavírus, mas os outros nem por isso. Se a quarentena se prolongar por mais semanas/meses (a todo ou a meio gás), as dificuldades serão colossais.

O timing do TV Fest criado pelo Ministério da Cultura pode não ter sido o melhor, mas quando é que o vai ser? Deve o Estado a partir deste exemplo, que sucumbiu perante uma petição e opinion makers dissonantes, abster-se de apoiar as Artes na crise pandémica? Como é sabido, a maior parte da gente ligada à Cultura é precária e faz parte da galeria dos que se aguentam a recibos verdes. Não tem propriamente morada na zona da Comporta ou na Torre Vasco da Gama.

Onde está o respeito pela humanidade de quem nos entretém e dá cor à existência?

As críticas decisivas ao malogrado TV Fest passam pelo aparente alinhamento elitista e, particularmente, pelo eventual desperdício de dinheiro quando a carência na Saúde é evidente. Neste último aspecto, o combate não passa somente pela questão financeira mas pela coordenação leal e competente entre as diversas entidades (estatais e privadas), que devem funcionar num todo e não de forma isolada para controlar a propagação da Covid-19.

Relativamente aos fundos que iriam ser gastos (um milhão de euros), interpreto como uma espécie de apoio de emergência. Agora os músicos, depois – acredito – outras iniciativas se seguiriam para amparar intérpretes de outras áreas. Ou eles não são pessoas, com contas para pagar e famílias para sustentar? Se há interesse em ajudar trabalhadores de outras classes, esta não conta? Acresce ainda que as centenas de espectáculos organizados pelas autarquias, onde se inclui a programação dos cine-teatros, são na sua maioria possíveis com o erário público. Com a óbvia anulação dos mesmos, que tipo de compensação deve ser assegurada?

Somos um país pequeno e não há mecenas para tudo. Os sucessivos governos têm contribuído com uma ninharia para a Cultura – há quem pense que salvar infinitamente a banca é mais útil – e, quando há espaço para aumentar os recursos ou dar auxílios excepcionais, têm o dever de evitar que a sociedade embruteça. Sob outra perspectiva, faltam-nos estruturas com arcaboiço para minorar a gravidade da actual situação. Seja na Música (em contraponto ao que acontece nos EUA) ou noutros géneros performativos.

As crises fazem com que nos reinventemos. Nesse sentido, é de assinalar o modelo seguido por parte da editora nortenha Lovers & Lollipops que disponibiliza uma plataforma online com preços especiais para conteúdos do seu catálogo (como concertos, documentários ou mixtapes). Nos próximos tempos, devem aparecer projectos semelhantes para que o ano não seja totalmente perdido.

Quanto ao suposto manto burguês do TV Fest (onde seriam abrangidos 160 músicos, mais de 600 técnicos, contabilizadas 120 gravações caseiras, quatro por dia, durante um mês na RTP), constato que sobressaiu a mesquinhez de quem julga que os músicos vivem do ar e, como noutra curadoria qualquer, a escolha é limitada. Estranho é não ser criada uma petição a apontar o layoff suspeito desta ou daquela empresa estável que, no meio do caos, aproveitam para despedir e mandar a factura aos contribuintes.

Em declarações à Lusa, a ministra da Cultura, Graça Fonseca, sublinha que o TV Fest vai ser “repensado e reavaliado”. Tenho uma dúvida. Algumas das vozes que se opuseram à iniciativa vão aplaudir a mesma (ou outra de âmbito estatal) quando forem incluídas? A ver até que ponto se estica a neura invejosa…

Cada um de nós já sentiu que há canções, filmes, séries, peças de teatro, instalações, livros, pinturas, esculturas ou peças de dança contemporânea que nos salvaram a vida. É a vez de deixarmos a petulância de lado e respeitarmos a humanidade de quem nos entretém e dá cor à existência (vê acima o vídeo do filósofo e escritor suíço, Alain de Botton, via The School of Life).

A vida continua e a Arte faz parte dela.


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