Assassinatos da máfia não são mais como costumavam ser. Pergunte a Sylvester Zottola, a figura criminosa da Família Bonanno que foi morto no Bronx em outubro de 2018, na fila do drive-thru de um McDonald’s. Tipo, o que a gente deveria achar dessa… McMensagem Siciliana? Zottola foi dormir com os McFishes.
Lá se foram os dias de glória dos assassinatos da máfia, uma era recriada fielmente no novo épico gângster de Martin Scorsese O Irlandês, passando na Netflix e estrelando Robert De Niro como o parrudo e estoico Frank “O Irlandês” Sheeran. Para os fãs da máfia, o filme é uma grande compilação de ataques, o retorno a uma época em executores faziam seu trabalho um certo charme.
Videos by VICE
Vamos analisar uma cena em O Irlandês onde o chefão da máfia Albert Anastasia, interpretado por Gerry Pastore, relaxa na cadeira pneumática para fazer a barba e cortar o cabelo na barbearia do Park Sheraton Hotel, no centro de Manhattan, na manhã de 25 de outubro de 1957.
Anastasia praticamente escreveu a cartilha dos assassinatos da máfia como o “Executor Supremo” da Murder Inc., um infame empreendimento de assassinatos usado pela Máfia para sumir com quem causava problemas. Quando um líder trabalhista intrometido precisava aprender uma lição, Anastasia simplesmente o estrangulou numa cabana na beira de um rio no Brooklyn, depois o plantou num galinheiro na frente da casa do cunhado de Dirty Face Jimmy em Nova Jersey.
A Murder Inc. eliminava suas vítimas com eficiência, sem barulho, para evitar qualquer sensacionalismo que pudesse atrair atenção indesejada. Por isso Anastasia provavelmente teria odiado o jeito como morreu, baleado numa cadeira de barbeiro em plena luz do dia um pouco antes da hora do rush.
Sem dúvida o ataque mais infame do mundo mafioso americano, o assassinato foi parar na primeira página dos tabloides com a imagem do corpo de Anastasia enrolado em toalhas da barbearia, deitado numa poça de sangue e pós-barba de rum de louro. Feito sob medida para Hollywood, o ataque agora ganhou seu lugar nas telas graças a Scorsese, que nos oferece outro personagem que encontra uma final igualmente marcante em O Irlandês.
Vindo de Red Hook, Brooklyn (e apresentado na música “Joey” de Bob Dylan), Crazy Joe Gallo – interpretado pelo comediante Sebastian Maniscalco – era um bandido menor que estava pouco se fodendo para o estilo de Anastasia. Para Joey, se você queria ser um gângster, você tinha que ser como aqueles dos filmes – anti-heróis de ternos zoot extravagantes armados, como Jimmy Cagney, que se foi nas chamas da glória. Obcecado por filmes de gângster, Joey baseou sua persona “louco” no assassino psicopata risonho do filme noir O Beijo da Morte, imaginando corretamente que uma mistura aterrorizante de piadas e ameaça – como o Coringa – assustaria pra caralho suas vítimas de extorsão.
Então quando aconteceu o assassinato cinematográfico de Anastasia, Joey decidiu deixar o submundo acreditar que ele era o autor do trabalho muito bem executado, perpetrado por cinco homens de chapéu fedora, bandanas no rosto e óculos verdes. Très chic. Sentado com quatro amigos numa mesa do Clube Playboy em Manhattan, um antro de fofocas do submundo, Joey anunciou com todo seu talento dramático: “Você pode chamar nós cinco de o Quinteto da Barbearia!” Ainda é debatido se ele realizou ou não o ataque a Anastasia, mas assumindo o crime com tato, Joey se lançou no estrelato da máfia.
Ele logo teve seu grande momento, quando foi chamado diante do Comitê de Extorsão do Senado com o cara-a-cara do submundo, como vemos em O Irlandês, onde Joey fez sua estreia na televisão fazendo piadas na frente do CES e usando óculos escuros enquanto testemunhava. Não é a primeira vez que Scorsese apresenta Crazy Joe. Lembra aquele lamento nostálgico em Os Bons Companheiros na voz de Henry Hill de Ray Liotta? “Foi uma época gloriosa… antes de Crazy Joe decidir atacar um chefão e começar uma guerra.”
Escondendo-se com os irmãos num prédio no Brooklyn em 1961, Joey travou uma guerrilha contra sua família do crime, que não estava dando aos irmãos Gallo sua parte. O golpe a golpe da guerra dos Gallo entreteve leitores de tabloides pela década, transformando Joey num radical que ousou desafiar o establishment da máfia nos anos 60. Como Bob Dylan diz sobre Joey: “Nunca o considerei um gângster. Sempre pensei nele como um tipo de herói. Um oprimido lutando contra os elementos”. Mandado para a prisão por uma acusação de extorsão, Joey teve a distinção dúbia de tentar tornar a máfia um empregador de oportunidades iguais, forjando alianças com traficantes de heroína afro-americanos como o futuro chefão do Harlem Nicky Barnes.
Quando a década de 1970 chegou, o novo chefe mafioso de Joey, Joe Colombo – interpretado em O Irlandês por John Polce – finalmente se atualizou com o espírito dos anos 60 criando uma liga de direitos civis. Em retrospecto, tem uma certa ironia nessa história de origem, quando a Liga de Direitos Civis Ítalo-americana era uma força, fazendo piquete no FBI contra a representação de todos os ítalo-americanos como gângsters, realizando um show beneficente com Frank Sinatra no Felt Forum em Nova York, e exigindo concessões dos produtores de O Poderoso Chefão de que a palavra “máfia” fosse removida do roteiro (apesar dela nunca ter estado lá pra começo de conversa).
O principal evento de Colombo foi o Unity Day Rally no Columbus Circle em Manhattan, que prometia reunir centenas de milhares de simpatizando usando bottons “Numero Uno” – uma demonstração do poder político dos ítalo-americanos. Fora da prisão, Joey deixou seus sentimentos sobre a questão claros quando os capos de Colombo vieram para Red Hook com cartazes do evento. Joey rasgou os cartazes, expulsou os capos de seu território e disse para sua gangue “lubrificar as pistolas”.
Em O Irlandês, vemos o que acontece com o comício de Joe Colombo quando, em 28 de junho de 1971, o sicário afro-americano Jerome Johnson deu três tiros na cabeça de Colombo. Antes que alguém pudesse questionar Johnson, alguém chegou e deu um tiro na cabeça dele. Todos os olhos da Família Colombo se voltaram para Crazy Joe, já que ele recrutava afro-americanos para sua gangue. Se Joey era louco mesmo para ter feito o trabalho de Anastasia, ele era louco o suficiente para mandar um sicário do Harlem matar Colombo em plena luz do dia, no meio de um comício. Considerado culpado in absentia no tribunal da máfia, a cabeça de Crazy Joe foi colocada a prêmio no submundo.
Essa era a situação na boate Copacabana em 6 de abril de 1972, mostrada em O Irlandês enquanto Joey comemora seu aniversário de 43 anos. Depois de fazer um espetáculo e distrair a atenção do comediante Don Rickles (Jim Norton) no palco, Joey insulta o chefão da Máfia Russ Bufalino, interpretado por Joe Pesci, por usar um botton Numero Uno. Em resposta, Bufalino manda seu sicário pessoal, Frank “O Irlandês” Sheeran, para matar Crazy Joe algumas horas depois em Little Italy.
No restaurante Umberto’s Clam House, às 5h23 – “Crazy Joe” Gallo, 43 anos, num terno listrado azul, está jantando tarde com a família – salada scungilli e camarão – quando balas começam a voar de uma porta lateral. Garrafas de ketchup e molho de pimenta se despedaçam enquanto Joey joga a mesa na frente da esposa e enteada para protegê-las. Balas ricocheteiam das paredes de cimento enquanto ele corre para a porta da frente. Com um tiro nas costas, Joey cambaleia, se ergue em seu Cadillac preto estacionado, e cai morto de costas na Mulberry Street.
O ataque foi canonizado no folclore de Little Italy. Turistas visitam o Umberto’s Clam House e pedem para ver os buracos de bala. Eles com certeza não vêm por causa das ostras. Os locais brincam que o assassino estava atrás do chef mas errou. Agora, uma nova geração vai para o Umberto’s (que, infelizmente, não é o original) para ver onde o Irlandês matou Crazy Joe. Mas antes de pedir um fra diavolo de lagosta caro demais, vale parar e perguntar: Frank Sheeran realmente matou Crazy Joe?
Enquanto escrevia meu livro, The Mad Ones: Crazy Joe Gallo and the Revolution at the Edge of the Underworld, fiz essa pergunta para Albert Seedman, ex-chefe dos detetives da NYPD, que investigou a morte de Crazy Joe. Ele disse que acha que não. Uma jornalista, que era universitária na época e testemunhou a morte, discorda. Ela foi a fonte de Charles Brandt, que escreveu I Heard You Paint Houses, o livro policial em que O Irlandês foi baseado. Uma matéria recente do Slate cobrindo os suspeitos cita a viúva de Joey dizendo que os sicários eram “italianos baixinhos e gordos”. Não um irlandês de 1,93 metro.
A real é que nunca vamos saber. Se o trabalho é feito dinheiro, ninguém deve descobrir quem foi. Talvez Sheeran quisesse ganhar uma certa notoriedade na casa de repouso onde morreu pacificamente em 2003. Ou a chance de ser glorificado num filme do Scorcese. Em Hollywood, é tudo uma questão de crédito.
Matéria originalmente publicada na VICE EUA.
Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube.