O sonho afro-americano de Xênia França

Quando entrou na adolescência em Camaçari, no interior da Bahia, Xênia França teve o que ela considera a sua primeira experiência artística: entrou para uma fanfarra. Era a comandante — ou a “mór”, como é conhecida a pessoa que rege os músicos do conjunto — do seu grupo e, por causa disso, vestia uma jaqueta especial para se destacar dos outros integrantes. Foi a primeira vez que Xênia ocupou o lugar que ela sempre acreditou ser seu por direito: o lugar de comando. “Fiquei uns três anos nessa função, à frente da banda”, conta a cantora baiana radicada em São Paulo. “Acho também que foi a minha primeira experiência empoderadora fora da minha casa.”

Para tentar reviver esse até então inédito sentimento de poder, Xênia resolveu vestir um casaco que remete àquele seu uniforme da fanfarra usado na juventude na capa do seu disco de estreia, Xenia, lançado nesta sexta-feira (29) sob o selo da Natura Musical. “Fazia muito sentido que eu trouxesse isso para a capa, porque meu álbum fala sobre empoderamento. Ele fala sobre essa tomada de consciência sob o poder que a gente — principalmente mulher negra — tem”, explica. “E esse momento da minha adolescência me ajudou a entender o meu poder, que foi se moldando até desembocar no momento de agora, na minha pessoa como artista hoje, com 30 anos de idade.”

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Quando era criança, Xênia nunca se identificou com os personagens negros retratados nos programas de televisão brasileiros. Só com a Glória Maria — o que a fez até pensar em seguir uma carreira de jornalismo, mas acabou desistindo. Na TV, o que ela gostava mesmo era de assistir aos filmes norte-americanos com protagonistas negros, principalmente os do Eddie Murphy. “Eu jurava que era americana. No Brasil, nós [negros] éramos e ainda somos colocados em papéis inferiores na televisão. Eu não me via naquilo. Me via no [filme] ‘Um Príncipe em Nova York’, isso sim”, contou a cantora, que passava horas em casa lendo o dicionário de inglês e sempre sonhou em se mudar da cidade em que cresceu (Xênia nasceu em Candeias, também na Bahia). “Fiz até a minha mãe me matricular num curso de idioma, pra você ver como eu era.”

Dos filmes do Murphy, foi um pulo pra ela se apaixonar pelos videoclipes do Michael Jackson: um dia, a menina Xênia estava semi-dormindo no sofá quando, na televisão, começou um clipe dele. “Ali, eu fiquei maluca já. No outro dia, fui na banca atrás de fitas, qualquer coisa do Michael pra comprar. Depois disso, comecei a colecionar tudo que eu visse: revistinhas, discos, LPs”. A baiana diz ter todos os vinis do cantor norte-americano, todos arrumados na sua casa, em um altar, onde ela guarda tudo sobre o eterno Rei do Pop.

Musicalmente, Michael Jackson foi a principal referência para a concepção de Xenia, que acima de tudo, é um disco pop. E foi através dele que a artista foi conhecendo outros estrangeiros que serviriam de influências musicais diretas no seu primeiro trabalho solo: Stevie Wonder, James Brown, Whitney Houston. Desses três, vieram as pitadas de soul e R&B presentes no álbum. “[ Xenia] tem uma relação direta entre essa música afroamericana com ritmos baianos que eu ouvia na rádio em casa quando criança — desde Olodum e Ilê Aiyê até Gilberto Gil e Margareth Menezes”, diz Xênia. “Também tem momentos de jazz. Foi um gênero que eu comecei a ouvir mais quando me mudei para São Paulo, onde entrei em contato com artistas como Ella Fitzgerald, Miles Davis até Esperanza Spalding.”

Xênia se mudou para a capital paulista em 2004, quando se inscreveu num concurso de beleza para da revista Raça Brasil. Não ganhou, mas recebeu uma proposta para trabalhar numa agência especializada em modelos negros. Nessa época, ela não imaginava que um dia se tornaria cantora. “Eu sabia que queria ser artista, mas nunca tinha pensado em cantar”. Em 2008, com a carreira de modelo não indo lá muito bem, ela e uns amigos da banda Sorriso Vertical montaram um grupo de samba-rock pra fazer covers, cantar em barzinhos e festas de faculdade. E foi por meio de um dos integrantes da Sorriso que ela conheceu Emicida, no VMB 2008.

Foi então que Xênia gravou sua primeira música em estúdio, uma participação na faixa “Volúpia”, do EP Sua Mina Ouve Meu Rep Também (2010). Também gravou com Rael e o próprio Emicida em “Beira de Piscina”, do disco Emicidio (2010). Já em 2011, Xênia conheceu Pipo Pegoraro, [o companheiro] Lucas Cirillo e companhia e o Aláfia começou a se desenhar. “Mas desde que eu comecei a cantar, fazendo covers em 2008, eu queria ter o meu projeto solo”, diz a cantora. “Demorou um tempo para se concretizar, sim, mas foi porque eu precisava de experiência, de história. Me formar musicalmente. O Aláfia foi fundamental nisso.”

O processo de concepção inteiro do disco solo levou dez meses. Ele é composto por 13 faixas, entre elas composições de artistas como Tiganá Santana, Theodoro Nagô, Tibless, Verônica Ferriani, Clarice Peluso, Luisa Maita e Chico César, além de três autorais: “Perfeita pra Você”, “Miragem” e “Pra que Me Chamas?”, em parceria com Lucas Cirillo. “Meu disco inteiro conta a história de como eu vim parar aqui. É uma mistura das minhas referências da Bahia com as minhas vivências em São Paulo. E de como eu formatei a minha identidade vivendo aqui, como mulher negra e nordestina”, explica Xênia.

Para abrir o disco, a cantora escolheu “Pra que Me Chamas?”, música carregada de influências da cultura yorubá, misturando elementos eletrônicos com instrumentos como o batá, tambor sagrado da Santeira Cubana, e do Rum, Rumpi e Lé, utilizados no candomblé. “Começo o meu disco pelo começo, referenciando os meus ancestrais, porque sei que a minha história não começa comigo”, diz a cantora. “E é nessa linha que as faixas subsequentes vão se desenrolando: é um disco sobre afetividade, ancestralidade, intimidade, fé, inquietações e identidade. É como sobre como eu me autoafirmei na cidade de São Paulo.”

A faixa que, para Xênia, sintetiza melhor o conceito do disco é “Garganta”, um poema da atriz e MC Roberta Estrela D’Alva. “Um dia, assisti a Roberta recitando esses versos na Casa das Rosas e chorei copiosamente do começo ou fim”, conta. “Até aquele momento, eu não tinha compreendido a minha voz — de cantora mesmo — direito. Ficava muito rouca com muita facilidade. Ao mesmo tempo, me remeteu aos meus ancestrais, que não podiam falar e tiveram seus idiomas abolidos quando vieram para a América nessa tragédia que foi a escravidão”, explica. Xênia acabou convidando Roberta para gravar seus versos no disco. O poema também ajudou a cantora baiana a criar todo o restante do repertório do álbum. “A voz para a pessoa negra é uma ferramenta muito poderosa. E Xenia é um ensaio sobre ter voz.”

Foto: Caroline Lima/VICE

Apesar de o disco trazer questões sobre racismo e identidade negra, Xênia quis tratar desses assuntos com delicadeza, justamente para contrariar “o estigma social racista de mulheres negras fortes e agressivas”. Um disco que a influenciou muito na hora de criar o mood para seu trabalho foi o A Seat at the Table (2016), da Solange Knowles. “Ela canta sobre esses assuntos com tanta doçura. É subversivo, porque quase ninguém fala sobre questões raciais de uma maneira tão doce”, explica. Inclusive, a faixa “Respeitem Meus Cabelos, Brancos” conversa diretamente com “Don’t Touch My Hair”, da cantora americana: ambas trazem como temática o cabelo e como ele pode ser usado, pelas pessoas negras, como ferramenta de resistência.

Ouvir Xenia é como se você estivesse vendo a própria Xênia rodeada por espelhos e cada um refletisse uma faceta diferente da artista baiana. É sobre ser mulher, ser negra, ser forte, mas também é sobre ser frágil, chorar e sobre uma afetividade que, muitas vezes, é negada às mulheres negras. “Foi isso que eu quis passar: que nós somos seres humanos, sensíveis como quaisquer outros. Jogaram pra cima da gente uma responsabilidade de ‘aguentar todas as dores do mundo’ e não queremos mais isso. Nesse sentido, vamos continuar cada dia mais expondo pro mundo nossa sensibilidade, até esse estigma de ‘mulher negra forte e agressiva’ acabar de vez”. Esse talvez seja hoje o maior sonho americano de Xênia.

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