Os artistas mineiros roubaram a cena do rap esse ano. Tivemos o gigante Djonga puxando a fila com seu segundo disco, O Menino que Queria ser Deus, na sequência de seu já grande álbum anterior Heresia. Sidoka também balançou a cena do trap com singles como “Drink” e “Mi’aDama”, como fez Delatorvi com “Para Sempre 21” e “Shalom”. Matéria Prima e Clara Lima continuaram estendendo o sucesso que tiveram com seus lançamentos no ano passado, abrindo espaço para rappers menores como Izabel Sabino e Tamara Franklin. Depois de toda essa sequência, já no fim do ano, em novembro, FBC adicionou mais uma voz ao coro do rap de Minas Gerais com seu álbum S.C.A.
FBC é um dos maiores campeões do Duelo de MCs de Belo Horizonte, tem alguns EPs sob seu nome e uma década de carreira, mas nunca tinha lançado um álbum completo de estúdio. S.C.A. chega pra preencher esse vazio e colocou Fabrício, nome verdadeiro do rapper, entre um dos artistas de rap mais falados do ano depois de apenas algumas semanas de lançamento. Ele carrega o mesmo dedo na cara que seu amigo e – segundo ele mesmo – maior inspiração Djonga (que fica responsável por uma interlude de palavra-falada do álbum, “Itinerário de I.O”), mas substituindo a raiva na voz pelas palavras bem colocadas e ironias, como a faixa “Rap Acústico”, que termina prontamente com o barulho de um tiro e a frase “rap acústico o caralho rapaz, põe um beat de trap, porra!”
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Tocando em assuntos como racismo (“17 Anos”), grana (“Superstar”) e o tráfico onde FBC ganhava a vida (“Sexo, Cocaína e Assassinatos”), o principal tema que parece reger S.C.A é um sentimento de vitória e confiança em si mesmo. De certa maneira, o disco é um reflexo do triunfo que o rap de Minas Gerais experimenta pelo reconhecimento tardio. “Minas Gerais não deve nada a ninguém”, fala FBC em entrevista ao Noisey. “Antes de qualquer coisa nos já estávamos aí.”
Leia o restante da entrevista e ouça S.C.A. abaixo.
Noisey: Qual é a primeira lembrança ligada ao rap que você tem?
FBC: Foi há muito tempo, lá em Santa Luzia, região metropolitana de BH. Uma lembrança sinestésica: lembro do cheiro de maconha e a fita k7 do Sobrevivendo no Inferno tocando num som velho da Gradiente que meu pai tinha desde jovem, quando chegou da roça vindo buscar a vida na cidade grande. Aquela capa, o jeito que meu irmão e meus primos se calavam durante a quase uma hora e doze minutos de duração daquela que, pra mim, é a maior obra de arte do século 20 produzida no Brasil.
De apenas curtir e ouvir rap, como você veio a se tornar um rapper? Essa vontade de falar/escrever sempre existiu?
Sempre, desde cedo nas escolas cantando funk e fazendo paródias das músicas que tocavam na rádio, eu sempre tive esse dom. Um dia, estava na rua fazendo qualquer coisa que alguém da minha idade e da minha realidade estaria fazendo na zona norte, na boca vendendo droga. Um mano meu do rap, ao me ver fazendo um freestyle, disse “cara, você tem a manha”. Eu nem sabia o que era freestyle. Uma semana depois, eu conheci as rodas de rima de BH e tudo mudou.
Qual foi o primeiro vislumbre que você teve de ‘S.C.A.’ – a primeira música composta, primeira ideia do disco? Como foi o processo de composição/gravação das faixas?
“Sexo, Cocaína e Assassinatos” foi a primeira música, a primeira ideia, o primeiro vislumbre do que eu queria tratar. Queria zoar tudo à minha volta, ali naquela ocupação urbana onde eu vivia a milhas e milhas das capitais, sendo ameaçado noite e dia pelo submundo do crime desorganizado. A primeira vez que ouvi o beat na casa do Coyote eu já fiz o refrão, fui pra casa, voltei no outro dia com a música pronta e gravamos.
Gravamos o álbum no estúdio Probeatz com o DJ Spider. Nove meses dentro do estúdio preparando aquele que seria pra muitos o melhor disco do ano. Pra mim é o trabalho de uma vida, o trabalho que mudou minha vida, me libertou da ignorância do mesmo e sempre. Hoje entendo as mil possibilidades que ainda posso alcançar quando entrar de novo no estúdio. Gravei cada faixa no mínimo quatro vezes, foi o jeito que desenvolvi pra extrair o máximo da minha entonação e desenvolvimento dos adlibs de cada track. Foi cansativo. Chamei Sidoka, Iza Sabino, BPROBLEMX e DJ Spider pra me ajudar nas vozes auxiliares. Foi divertido.
A capa de ‘S.C.A’ é uma referência à banda de metal Sarcófago. Você ouviu muito metal crescendo? O que acha dessa intersecção do rap com o metal/rock em geral?
Eu ouvi mais Raul Seixas que metal extremo. Gostava mais de Cazuza do que Sepultura ou Sarcófago, mas a história é incrível e nos laça nessa volta do tempo e espaço. O Rafael Barra e o Fernando Oliveira chegaram com essa ideia e eu achei fantástica, já que a banda Sarcófago representava a cena underground da época e eu represento a cena underground de hoje, não só em Minas mas no Brasil. Quem discordar é clubista.
O rap tem a liberdade de trocar as influências sempre quando for interessante, e o rock sempre fez presença na história do hip hop, seja no estilo ou nas melodias e samples.
Em “17 Anos”, você discute sobre racismo. Você sente que tem algum dever de falar sobre isso, sendo um homem branco numa cena majoritariamente negra?
O racismo é um problema com o homem branco, não é? Quem é o racista é o homem branco, não é? Então quem deve conversar e discutir essa toxicidade é o homem branco, reconhecendo seus privilégios e respeitando os lugares de fala. Digo o mesmo do machismo, se nós homens não discutirmos entre nós essa problemática, não haverá coerência de que algo está errado em nós. Será apenas aquele sentimento de medo de alguma repreensão, e não o senso de que aquilo ali é nocivo e faz mal a outras pessoas.
No disco como um todo, em especial em “Superstar”, você fala muito de dinheiro, roupas, tênis. Que significado isso tem considerando a dificuldade econômica que muitos rappers têm em construir sua carreira? Você passou por essa situação?
Passo até hoje. Ninguém quer ser exemplo de derrota. Eu vim da lama, meu maior produto é minha história e do meu trampo quem cuida sou eu. Sou exemplo pra quem tem um sonho, eles se espelham né mim, veem em mim um novo jeito de chegar com seu trampo. Veem em mim o exemplo de quem veio de baixo e chegou por mérito próprio. Tenho que contar e cantar a vitória, quem me acompanha quer que eu ganhe e eu vou ganhar tudo se eles estiverem comigo. Eu humanizei a imagem do MC endeusado, o trouxe pro povo novamente, de post em post, de DM em DM. Ouve meu álbum aí!
Depois do fenômeno “Sulicídio”, o rap fora do eixo Rio-São Paulo tem estourado pra além de seus estados de origem, e Minas Gerais tem sido protagonista disso. Ainda tem muito o que sair de MG? A cena de rap daí vem crescendo mais nos últimos anos?
Minas Gerais não deve nada a ninguém, antes de qualquer coisa nos já estávamos aí. Muito respeito à história de Diomédes, mas nós já estávamos aí. Já havíamos quebrado tudo na DVERSOS. “Sulicídio” só ajudou o Baco, e a mais ninguém. Ouçam Sidoka, Delatorvi, Zulu das Quebradas e muitos outros artistas daqui e verão a verdade no que falo.
Que outros artistas, gringos e brasileiros, você tem como referência?
Minha maior referência é o Gustavo [Djonga].
Rolou uma polêmica de que o DaLua te acusou de não fazer trap de verdade. Qual é sua visão disso? O que você definiria como “trap”, principalmente no Brasil?
Nem sei quem é DaLua. Trap é voltar pra casa ameaçado de morte, guardar arma e droga pra comprar comida e vender droga no duelo de MCs pra pagar estúdio. Trap é aquilo que eu faço há 16 anos.
Você já lançou alguns projetos, mas nenhum tão grande quanto ‘S.C.A.’. Por que você acha que esse foi o momento ideal pra você lançar seu disco de maior repercussão? Foi inesperado?
Deus sabe das coisas, o tempo é rei. Eu só tive fé e nunca duvidei.
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