Em 1949, quatro anos após as explosões atômicas de Hiroshima e Nagasaki, o geneticista William Jack Schull viajou para o Japão para participar de um estudo. Sua missão era analisar os efeitos da radiação ionizante em sobreviventes da bomba atômica. Ele foi e, ainda hoje, revive os reflexos daquele tempo sombrio. Aos 93 anos, ele trabalha para compartilhar suas memórias em um arquivo digital.
“Acho que é justo dizer que, dos 23 anos de idade em diante, minha vida foi mais dominada pelo que acontecia no Japão do que pelo acontecia nos EUA”, me contou Schull, via Skype.
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O sorriso contagiante e a memória inabalável de Schull escondem sua idade, mas não sua experiência. Em 1949, ele havia acabado de concluir o doutorado em genética quando recusou uma posição como professor na Universidade McGill, no Canadá. Schull optou por integrar uma equipe de médicos e geneticistas americanos na Comissão de Investigação de Danos da Bomba Atômica (ABCC), na cidade japonesa de Hiroshima.
“Partir para o Japão foi uma escolha de sorte”, disse Schull, contando que, de início, sentiu-se atraído pelo prestígio do estudo, bem como uma vontade de entender melhor o Japão. “Durante a guerra, lutei no Pacífico, então conhecia as tropas japonesas e sempre tive vontade de vê-las em seu próprio país.”
A ABCC foi estabelecida pelo governo americano em 1947, no Japão ocupado, para conduzir pesquisas em genética, saúde e expectativa de vida com os sobreviventes das explosões das bombas atômicas de 1945, “Little Boy” (“Garotinho”) e “Fat Man” (“Homem Gordo”), de Hiroshima (6 de agosto) e Nagasaki (9 de agosto), respectivamente. A ABCC virou Fundação de Pesquisa em Efeitos de Radiação (RERF) em 1975. A pesquisa conduzida sob sua tutela é o estudo mais duradouro já feito para examinar os efeitos da radiação ionizante em sobreviventes da bomba atômica.
“Os estudos em Hiroshima e Nagasaki são únicos em diversos aspectos: foi uma série extensa e duradoura de exames em indívudos expostos a uma ameaça particular — a radiação ionizante”, disse Schull. “Acompanhamos o quadro dessas pessoas ano sim, ano não, desde 1950, com análises clínicas e médicas para ver o que pode ou não acontecer.”
De 1949 até a data presente, Schull se envolveu com o estudo em diversas vertentes; primeiro, como chefe do programa genético da ABCC, depois como diretor, vice-presidente e chefe de pesquisa da RERF. Um autointitulado “esquilo por natureza, que guarda tudo”, ele acumulou um extenso arquivo pessoal de diários, cartas e fotografias que mapeiam sua experiência na ABCC.
“São mais de 19 metros corridos de registros, e isso medindo apenas uma dimensão”, ele me contou, rindo. “Precisaria de um caminhão para transportar tudo.”
Agora Schull quer disponibilizar seus relatos online. O objetivo, disse Philip Montgomery, arquivista da Biblioteca do Centro Médico do Texas, onde os registros pessoais da equipe da ABCC estão guardados, é permitir um acesso mais fácil aos documentos e, acima de tudo, oferecer a visitantes um portal para um arquivo de informações menos institucionalizado e mais emotivo, composto por diários, cartas e fotografias pessoais.
“É importante tornar a informação acessível não apenas para os japoneses, mas para o mundo.”
“O material relacionado à ABCC não está prontamente disponível no Japão”, Montgomery me contou. Ele mencionou que, embora tanto os arquivos institucionais quanto pessoais ligados à ABCC nos Estados Unidos estejam abertos para o público, são pesquisadores e cientistas que costumam peneirar o material. “As pessoas não sabem que eles existem mas é importante tornar a informação acessível não apenas para os japoneses, mas para o mundo.”
Os estudos epidemológicos e genéticos conduzidos com sobreviventes da bomba atômica e com seus filhos são conhecidos por oferecer uma base constitutiva para padrões saudáveis de radiação, segundo um relatório na publicação acadêmica Proceedings of the National Academy of Sciences. Contudo, desde o início, os estudos são mal quistos por alguns sobreviventes da bomba atômica que, segundo Schull, talvez não soubessem que os médicos americanos no Japão conseguiram diagnosticar os sintomas resultantes das explosões. A Ocupação os proibiu de prover tratamentos.
Essas frustrações, de acordo com Schull e Montgomery, foram compartilhadas por alguns médicos que trabalharam na ABCC. Montgomery se lembrou de um trecho do diário do especialista em hematologia da ABCC William Maloney. Quando Maloney não conseguiu tratar um jovem rapaz japonês com leucemia, da mesma idade que seu filho, ele escreveu que foi tomado por tristeza e precisou deixar a sala.
“Dr. Maloney raramente demonstra emoçoes nas fotos, ele está sempre com o mesmo semblante, bem inexpressivo”, disse Montgomery. “Mas ele ficou claramente muito abalado com isso.”
Os pesquisadores acreditam que um acesso mais fácil aos registros da ABCC ampliará a compreensão sobre os estudos, bem como ajudará a dissipar os preconceitos de longa data.
Um desejo semelhante é partilhado no Japão, onde Masahito Ando, professor de arquivística da Universidade Gakushuin, lidera esforços desde 2005 para revelar as minúcias do estudo de 68 anos de idade ao público. Ando e sua equipe digitalizaram, até agora, 140 mil objetos da coleção institucional da ABCC — que está guardada na Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos (NAS), em Washington DC. Em oposição ao caráter pessoal da coleção do Centro Médico do Texas, esses registros consistem em cartas e informações oficiais acerca da ABCC.
“A NAS tinha 124 caixas de arquivos administrativos detalhando o projeto ABCC”, Kaori Maekawa, arquivista e colabrador da equipe de Ando que encorajou o processo de digitalização em 2009, me contou.
Maekawa comentou que esses registros incluíam documentos institucionais com os nomes dos funcionários que trabalhavam na ABCC, detalhes de orçamento e correspondências oficiais entre o governo japonês e o governo americano e municipalidades de Hiroshima e Nagasaki. Embora talvez sejam menos fascinantes do que os registros pessoais reunidos por Shull, Maekawa explicou que os documentos da NAS proporcionaram uma visão geral de como a ABCC funcionava como organização.
Maekawa nasceu em Hiroshima e seus pais e conhecidos foram afetados pelos bombardeios atômicos. Ele defende que é prioridade deixar todos esses registros facilmente acessíveis para aqueles que sofreram com as consequências. Ela explicou que, embora o governo japonês tenha fornecido à ABCC acesso fácil e contínuo aos sobreviventes da bomba atômica, a autoridade local nunca foi capaz de tomar posse completa do conteúdo dos estudos.
“É irônico como Nagasaki e Hiroshima têm bastante informações sobre os sobreviventes da bomba atômica no Museu da Paz e nas universidades”, disse Maekawa. “Mas informações sobre as atividades da ABCC não são acessíveis em Hiroshima e Nagasaki. As atividades representam um interesse direto para essas pessoas — a informação médica pertence a elas.”
As explosões nucleares que dizimaram Hiroshima e Nagasaki ocorreram 70 anos atrás, mas a privacidade dos pacientes ainda é uma preocupação. Maekawa explicou como a equipe japonesa vasculhou meticulosamente os arquivos digitais da NAS relacionados à ABCC para determinar que imagens poderiam ou não poderiam ser divulgadas.
“Algumas imagens detalham nomes, apresentam pessoas nuas ou informam a quantos quilômetros estavam da bomba, e os sintomas que as acometeram”, disse Maekawa.
Ela explicou que revelar detalhes privados do tipo poderia suscitar angústias desnecessárias entre os sobreviventes da bomba atômica ou entre os descendentes da segunda e terceira geração.
Já Schull disse que compilou seu próprio arquivo ao longo das décadas para permitir com que outras pessoas vislumbrassem os riscos em potencial da radiação, a experiência da equipe e das pessoas japonesas envolvidas no estudo e as dificuldades que podem emergir de um estudo binacional.
“Minha vida foi mais dominada pelo que acontecia no Japão do que pelo acontecia nos EUA.”
“Lidamos com transformações ao longo do tempo; as posturas, os valores morais e as contribuições que poderíamos receber dos EUA e do Japão mudavam a cada ano. As questões a que me refiro demandam uma compreensão de como nós, americanos, interagimos com os japoneses, e como eles interagem conosco”, disse ele.
“Tentamos coletar o máximo de artigos na esperança de que essas informações forneçam um panorama da ABCC e da RERF que não seria possível somente com uma olhada nos documentos oficiais”, acrescentou.
Schull enviou cartas aos colegas que trabalharam na ABCC para lembrá-los e lembrar seus familiares do valor histórico de suas anotações e fotografias da época, mas admitiu que precisa aumentar os esforços.
“Sei de alguns casos de pessoas que tinham papeladas substanciais para compartilhar e morreram, e seus filhos não sabem o que fazer com os papéis, então rasgam tudo, e é um prejuízo para nós”, disse Schull. “O objetvo é tentar prevenir coisas assim.”
Os esforços para organizar seu arquivo pessoal continuam. “Minha tarefa agora é tentar vasculhar e identificar o máximo de pessoas que consigo lembrar”, disse ele, referindo-se aos colegas da ABCC. Por sorte, o processo de atribuir nomes a rostos foi facilitado pela tecnologia: Schull conta com a ajuda de softwares de reconhecmento facial.
Mas ainda há um pequeno contratempo. “O sistema de reconhecimento se confunde com mudanças de idade, então analisa alguém com cabelo preto e pele firme, e mais tarde analisa a mesma pessoa com pele flácida e cabelo branco. O programa ainda precisa apreender o processo de envelhecimento”, disse Schull.
“Eu tinha 23 anos na época, e a última vez que retornei ao Japão foi com 90, então creio que mudei bastante no meio-tempo.”
Tradução: Stephanie FernandesIn his 20s, US geneticist William Jack Schull joined a study to examine the effects of radiation on atomic bomb survivors. Now 93, he wants to share his experiences with the world.