Há cerca 3,8 bilhões de anos, a vida surgiu das águas tóxicas que banhavam a lama do nosso planeta. Até onde se sabe, esse nosso antepassado mais antigo – o organismo que foi a origem de tudo, digamos assim – era um procarionte unicelular, algo mais próximo das bactérias do que de qualquer outro animal.
Afora essa genealogia aproximada, pouco se sabe sobre o habitat, o comportamento ou as necessidades desse nosso parente distante. Esse último ancestral comum universal (ou LUCA, na sigla em inglês) não deixou nenhuma evidência fóssil de sua existência. Na verdade, seu único vestígio duradouro é uma fraca influência nos genes de todos os seres vivos.
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Em um estudo publicado essa semana na Nature Microbiology, porém, cientistas da Universidade Heinrich Heine de Düsseldorf, na Alemanha, utilizaram essa evidência genética como base para uma série de descobertas surpreendentes sobre esse antepassado comum.
Pela primeira vez na história, temos uma espécie de retrato desse progenitor ancestral, além de provas de que a vida pode ter surgido próximo a fontes hidrotermais. Caso comprovadas, essas descobertas irão derrubar a teoria Darwiniana de que a vida orgânica teria surgido em “algum lago aquecido”, e não nas profundezas do oceano pré-cambriano.
Para chegar a esse resultado, os cientistas analisaram 6.1 milhões de genes codificadores de proteínas. Ao analisar a linhagem genética de bactérias e arqueas, os dois domínios de vida celular mais antigos da Terra, os pesquisadores identificaram 355 genes que vieram, muito provavelmente, desse ancestral comum e que existem até hoje nos procariontes modernos.
Antes disso, acreditava-se que esse ancestral comum teria dado origem às bactérias, às arqueas e aos eucariontes. Essa “árvore da vida universal” foi amplamente aceita e divulgada até estudos genômicos recentes sugerirem que os eucariontes — plantas, animais, fungos e outros organismos cujas células contêm núcleos envoltos por membranas — vieram dos procariontes, assim como as bactérias e as arqueas.
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Com a descoberta de que os eucariontes surgiram muito mais tarde na linha do tempo evolutiva, os autores do estudo decidiram estudar os genes desses outros dois domínios. Com a ajuda de décadas de informação genética, a equipe identificou a presença dos genes desse ancestral comum em 286.514 grupos de proteínas — em outras palavras, a base da vida celular. Durante a pesquisa, quando esses genes eram identificados tanto nas bactérias quanto nas arqueas, seus DNAs — representado pelas letras A,C, G, e T — eram classificados e inseridos em uma árvore filogenética que desembocou, eventualmente, em um único organismo ancestral.
A partir dessa montanha de informações, as 355 proteínas associadas ao ancestral comum revelaram um perfil dessa criatura, que viveu há cerca de 4 bilhões de anos. De acordo com o estudo, esse ancestral comum vivia próximo a fontes hidrotermais, num ambiente sem oxigênio. Esse ser vivo era “autotrófico”, ou auto-suficiente, e provavelmente retirava energia das águas ricas em dióxido de carbono e hidrogênio. Esse ancestral comum possuía uma enzima específica que o adequava a esse ambiente escaldante e possivelmente vulcânico. Essa mesma enzima também permitia que nosso antepassado sintetizasse os metais e minerais que existem perto das aberturas subaquáticas, tal como os organismos termófilos que hoje vivem nas águas abissais.
Embora a descrição desse ancestral comum seja apropriada ao cenário infernal da Terra pré-histórica, alguns cientistas desconfiam dos resultados desse estudo. Em uma entrevista ao New York Times, críticos sugeriram que esse ancestral foi, na verdade, uma versão evoluída do primeiro organismo vivo. Outros acrescentaram que esse ancestral era uma espécie de “morto-vivo”, já que ele não possuía algumas das características comuns a todo ser vivo.
Em um artigo complementar publicado na Nature Microbiolog, James McInerney, um biólogo da Universidade de Manchester, sugeriu que esse ancestral pode ter sido o único sobrevivente de um gargalo populacional. Logo, o fato de seus genes estarem presentes nas bactérias e arqueas atuais é obra do acaso.
De qualquer forma, as descobertas desse estudo são uma contribuição importante para o enigmático campo da biologia evolutiva. Não há como provar que esse ancestral comum viveu em fontes hidrotermais ou que ele se alimentava de ferro, da mesma forma que não é possível simular a origem da vida. Mas essas novas descobertas esclarecem uma era pré-histórica que esteve, por muitos anos, na escuridão.
“O objetivo da biologia evolutiva é compreender a história dos organismos conhecidos”, disse Bill Martin, microbiologista e co-autor do estudo, ao Washington Post.
“Quando isso acontecer, poderemos nos preocupar com os organismos hipotéticos.”
Tradução: Ananda Pieratti