Pessoas negras falam sobre os enquadros policiais que já sofreram

Pessoas negras falam sobre enquadros policiais

Evitar andar com as mãos nos bolsos e tomar cuidado com qualquer postura que possa ser considerada ameaçadora. Mudar até o itinerário para não andar em uma região burguesa. Olhar no guarda-roupa quais peças não te transformarão em um risco em potencial à sociedade. De tanto receio em tomar atitudes que poderiam ser normais para qualquer pessoa, menos para você, o risco de se anular é real. A cor da pele é o sinal de alerta que você, sem perceber, emite para a sociedade ficar de olho em ti – e, quanto mais escura for, mais perigosos uns e outros acharão.

Faz alguns dias que crianças tiveram as mochilas revistadas porque, sabe como é, se é negro está carregando alguma arma ou entorpecente na bolsa. Não muito tempo atrás, um comandante da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), considerada como tropa de elite da Polícia Militar de São Paulo, disse que a abordagem feita nos Jardins, que é um bairro de gente rica, deve ser diferente da que rola na quebrada – e sabemos qual é a cor de boa parte dos moradores da quebrada, não?

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Claro, sempre haverá alguém para jogar na mesa a carta do mimimi, pois, como um presidente eleito aí já disse, portugueses não colocaram os pés na África e os próprios negros se escravizavam – ah, claro: isso foi só mais uma merda dita. Vamos a alguns dados: segundo o último Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), 64% da população carcerária do Brasil é negra, ao passo que mais de 53% da população total do país abrangem pessoas pretas e pardas. E esse dados não são por acaso, tampouco porque pessoas negras são propensas a entrar para o mundo da criminalidade.

Por essas e outras, somos constantemente abordados por policiais, não importa o bairro ou cidade em que estejamos. Negros de realidades diferentes, que passaram pelo perrengue do enquadro em situações absurdas, nos contam algumas histórias abaixo.

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Danilo Moura, 31, assistente de comércio exterior

Eu tinha 16 anos quando sofri o primeiro enquadro. Estava voltando dos desfiles de Carnaval próximos à minha casa e, ao entrar em uma rua escura, ouvi um “Para aí”. Óbvio que não olhei, mas após alguns segundos a voz veio num tom bem mais ameaçador. Eram três policiais a pé e um deles me abordou enquanto eu andava: perguntou a minha idade, onde morava e o que fazia ali, e um deles disse: “Imagine se você é preso em flagrante por posse de entorpecentes e vai parar na Febem [atual Fundação Casa]”, e a minha espinha gelou. Eles me liberaram e, virando uma esquina para chegar em casa, estava rolando uma grande batida – claro que tomei o segundo enquadro em cinco minutos.

Em outra ocasião, eu estava chegando em casa por volta das 23h e precisei colocar a mão dentro do portão para abri-lo. Ouvi um barulho de motor desligando e achei que seria assaltado, mas um farolete de PM foi jogado em mim com a frase: “Tira a mão bem devagar do portão”, enquanto havia uma arma apontada para mim. Fiz o que me falaram e perguntaram o que eu fazia. Expliquei que tentava abrir o portão de casa. Pediram para confirmar o endereço e assim o fiz. Como minha mãe me esperava, ela saiu e me viu tomando enquadro abrindo o portão da minha casa.

Para completar, no ano passado, eu estava voltando de um jogo das 22h quando uma viatura da ROTA parou e um dos agentes perguntou de onde eu vinha e aonde iria, se trabalhava, a minha idade e o caralho a quatro – com uma arma gigantesca na minha cara. Informei que morava na outra rua e ouvi: “Vamos dar a volta no quarteirão. Você tem três minutos para chegar na sua casa. Se te encontrarmos na rua, vamos dar uma volta.” Corri pela minha vida para chegar em casa após eles virarem a esquina. Pouco depois de trancar o portão e subir a escada, vi a viatura virando a esquina. Nunca mais quero ter contato com a ROTA.

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Marcela Vieira, 18, estudante

Passei por alguns enquadros quando eu era menor de 18 anos, por estar sempre com amigos considerados suspeitos – leia-se negros –, mas nunca havia sido revistada por ser mulher. Porém, há três meses, eu esperava o ônibus no ponto, por volta das 8h, para poder trabalhar. Não tenho certeza de que eram PMs e soube depois que se realmente não fossem, eles não poderiam ter me revistado. Eles estavam uniformizados, mas não me recordo da cor dos uniformes, pois fiquei de cabeça baixa a maior parte do tempo.

Um homem e uma mulher estavam em um carro preto e me perguntaram aonde eu estava indo e onde eu morava e trabalhava, e pediram meus documentos – mas tudo sem muito tempo de responder. Acho, na realidade, que eles nem estavam muito interessados em saber. A mulher disse que precisaria me revistar por rotina, pois o lugar onde moro estava perigoso – eu me mudei para lá faz dois anos e nunca vi ou soube de nenhum crime cometido, especialmente naquela semana.

Eles estavam calmos, mas armados, e a mulher que me revistou tinha a mão bem pesada, o que me deixou dolorida alguns dias. Fiquei assustada, pois nunca havia sido abordada naquele horário, muito menos na frente da minha casa. Quando eles foram embora, a sensação foi de impotência por não saber reagir, conhecer meus direitos ou falar o suficiente para me defender, e por saber que se não houvesse mais ninguém na rua ou se fosse o horário que eu volto da faculdade, a abordagem poderia ter sido ainda mais agressiva.

Ao perceber que sempre serei suspeita por ser negra, e que nunca importará a quantidade de dinheiro que eu tiver, formação, onde moro ou qualquer outra circunstância que me coloque em posição de privilégio, passei a me sentir incomodada e deslocada em diversos lugares, e a ficar mais atenta. Nunca mais andei com tabaco na mochila, pois sei que sequer me deixariam explicar o que era. Nada de armas brancas ou qualquer coisa que se pareça com uma. Nada de capuz, óculos muito escuros ou mãos no bolso. Evito também chegar em casa muito tarde.

Havia mulheres e homens no ponto, de diferentes idades, que talvez estivessem com algo ilícito ou qualquer coisa que pudesse os incriminar. O que me feriu não foi somente a abordagem, foi o fato deles não terem abordado mais ninguém. Isso me fez refletir sobre a posição em que eu estava. A redoma em que vivi por muito tempo, por possuir alguns benefícios que me permitiram escapar de muita coisa, foi totalmente quebrada ali.

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Luan de Oliveira, 27, estudante

Certa vez, eu estava voltando de um show de reggae e eram aproximadamente 4h30 – estávamos em quatro pessoas, todos com estilo ” maloqueiro” e um tinha dreads. Uma Blazer [modelo de carro usado como viatura policial] passou ao nosso lado e os policiais nos mandaram encostar. Eu me recordo de que o lugar era bem de quebrada mesmo.

Eles nos abordaram com aquela ” educação” de sempre e colocaram o cano bem na direção das nossas caras, como se estivéssemos fugindo deles. Uma vez abordados, todos nos sentamos no chão e olhando para baixo, enquanto eles falavam que estávamos fodidos.

Chegou um momento em que um dos manos falou que ele [o policial] não tinha direito de nos tratar daquela forma. Daí, pronto: ele estava sentado e lá mesmo ele ficou. Ele tomou um bela de uma bota 44 [chute, em analogia ao modelo de bota usada por PMs] no meio da costela.

A partir daí, o desespero estava tomando conta. Um deles falava que se gritasse seria pior. Foram 30 minutos muito, mas muito foda. Eu estava com uma camisa do São Paulo quando ele me olhou e disse: “São paulino, né? Não gosto de bambi.” E, como se a camisa fosse de papel, ele a rasgou.

Olha, é meio foda descrever, pois digo que esse foi um dos piores momentos da minha vida. Até porque tenho um irmão trabalhador morto pela PM.

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Edson Teles, 32, professor

Tive poucas experiências com abordagem policial. Eu tinha 18 anos quando sofri a primeira: trabalhava com teatro e o espaço do grupo ficava sobre uma agência dos Correios. Estávamos tirando coisas para a apresentação do espetáculo e o alarme da agência disparou. Quando eu estava descendo as escadas, um policial apareceu com uma arma na mão. Foi assustador em princípio, mas não houve truculência – os policiais pediram desculpas e disseram se tratar de procedimento deles.

Na segunda vez, eu estava com um amigo negro. Estávamos voltando para casa, por volta das 19h, quando uma viatura passou. Os PMs nos mandaram colocar as mãos na cabeça, mas a gente teve sorte de não terem sido truculentos também – disseram que era procedimento e falaram para irmos em paz. Eles foram bem educados, embora fôssemos dois jovens negros.

A última vez foi a que mais me incomodou. Trabalhava numa escola de Guarulhos quando isso aconteceu – foi logo na volta do ano letivo de 2014. Quando virei a esquina para chegar ao colégio, que é situado no bairro onde cresci, uma viatura me parou às 8h e um casal de PMs me perguntou aonde eu ia. Expliquei que estava voltando naquele dia ao trabalho e perguntaram onde eu trabalhava, e falei que trabalhava no colégio. A cara do policial mudou e ele me pediu mil desculpas, mas não por mim: por causa do lugar onde eu trabalhava. Não me bateram, mas rolou uma postura arrogante. É sempre muito incômodo ter uma arma na sua cara, principalmente às 8h, pouco após você ter acabado de acordar e já ter tomado esse baque.

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