Música

A PC Music É Pura Arte Pós-Internet

Poucos micro movimentos surgidos na internet conseguiram impressionar a comunidade dance como a PC Music. Chefiado pelo produtor inglês A. G. Cook e intimamente associado com SOPHIE, o selo conquistou legiões de fanáticos inofensivos graças a sua vocação para o pop destorcido. Desde a VICE, passando pela Noisey e chegando à Pitchfork, os coleguinhas que escrevem sobre música de vários lugares do mundo censuraram o provocativo (e por vezes desconcertante) conceito que sustenta a obra musical, visual e performática do selo.

Entretanto, o que falta é uma análise da conexão entre PC Music e o mundo da arte contemporânea. Mais especificamente, é preciso entender os obcecados por tecnologia, “pós-internet” e avant-garde que estão associados a “aceleracionistas” culturais como a DIS Magazine, o tumblr Jogging e o PS1 do MoMA que é dedicado exclusivamente à arte contemporânea. (A propósito, uma das primeiras vezes que ouvimos uma faixa do A. G. Cook foi em uma pista de dança na festa “DISown”, da revista DIS, em Nova York). Sendo assim, resolvemos estabelecer a conexão entre o selo e o gosto de Ryan Trecartin, Ryder Ripps e Ed Atkins – artistas que acreditamos ser os contemporâneos do mundo das artes plásticas relacionados a A. G. Cook e sua animada trupe de desajustados.

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Mais de um crítico estabeleceu a diferença entre o artista visual Ryan Trecartin e a obra do PC Music. Compare este vídeo maravilhosamente absurdo das Lipgloss Twins pelo PC Music  (uma dupla fictícia que serve de fachada para as produções de A. G. Cook):

com este filme superoriginal do Trecartin, “I-Be Area”: 

As semelhanças são muitas, começando com suas obsessões mútuas por jargões publicitários, linguagem idiotizada de garotas americanas e um tempo dessincronizado, como se estivesse dopado de anfetamina. Mas o que parece ser mais relevante – especialmente considerando as recentes críticas de “apropriação feminina” ao PC Music que saiu na revista The Fader – é a abordagem em comum que Trecartin e o PC Music têm em relação a políticas de gênero.

Os vídeos caóticos e caleidoscópicos de Trecartin frequentemente apresentam um elenco de personagens usando diversos tipos de perucas, fantasias e maquiagens tenebrosas. O gênero desses personagens é indeterminado. Não são homens vestidos de mulher, ou vice-versa, mas sim corpos ambivalentes testando personagens femininos e masculinos antes de distribuir os papéis, literalmente, num piscar de olhos.

Essa morfologia em constante mudança também está presente no PC Music. Muito barulho tem sido feito em torno da apresentação esquizofrênica de SOPHIE no Boiler Room, onde o produtor maliciosamente contratou uma mulher trans para tomar o seu lugar atrás das picapes, o que fez com que alguns encarassem como uma performance artística ousada, deixando a plateia confusa pra cacete.

Por um tempo, muitas pessoas não sabiam se SOPHIE era um homem ou uma mulher, já que sua timidez impulsionava o misterioso produtor a usar modelos femininos em seus cliques para a imprensa.

Além disso, muitas das faixas mais emblemáticas do selo, como “Hey QT“, “Pink and Blue“, e “Broken Flowers” adotam uma estética girly e cute. Vozes agudas interpretam quase que comicamente letras estúpidas como, “Give it to the girl! Give it to the girl! Give it to the cutest girl!”.

Steph Kretowicz, da revista The Fader criticou essa apropriação da estética hiperfeminina, argumentando que quando A. G. Cook e Sophie – ambos homens brancos privilegiados – se escondem por trás de personagens fictícios femininos, estão perpetuando uma antiga prática: “A de se aproveitar do corpo da mulher e usá-lo como instrumento para criar seus próprios trabalhos”.


Cena do filme “I-Be Area” (2007), de Ryan Trecartin, via Saatchi Gallery.

Mas o jogo de gêneros feito pelo PC Music, assim como o feito pelo Trecartin, não é tão inflexível. Isso porque não se trata de uma transformação unilateral de um homem em uma mulher. Em uma entrevista para a BUTT Magazine, Trecartin tateou a ideia de performance “post-drag“, dizendo que “todo o conceito do cross-dressing gira em torno de uma tradição de um grupo de pessoas que defende papéis tradicionais de gênero.” Ao invés disso, ele prosseguiu, se diz mais interessado na modificação constante e inconsistência, assim como uma “criação de gênero pessoal”.

Do mesmo modo, Cook e seus companheiros parecem se interessar por uma espécie de desvio do post-drag. Se você se sente incomodado por não conseguir distinguir os gêneros e a dinâmica interpessoal desse elenco de personagens, é porque eles conseguiram causar o que queriam. Por estar em um estado de constante mudança e ambiguidade, a PC Music rejeita o binarismo da construção de gênero masculino/feminino – enquanto escurece a linha entre real/virtual e a do eu/outro.

Esses dois conceitos também se sobrepõem no que diz respeito ao uso (ou mau uso) que eles fazem do brilho excessivo e da estética de alta definição – tanto do áudio como o visual. Durante os anos 80, 90 e começo dos anos 2000, muitos produtores de eletrônica que faziam música no seu próprio quarto, limitados pela falta de dinheiro ou espaço físico de um estúdio, tiveram que aceitar que suas gravações jamais teriam o glamour da alta tecnologia de uma produção pop. Esse não é mais o caso. As ferramentas para fazer uma música incrivelmente brilhante (faixas que deixam o hit número um do David Guetta no chinelo) estão agora ao alcance de produtores que possuem apenas softwares rudimentares e uma conexão à internet. O resultado: uma quantidade absurda de músicas parecidas com as do SoundCloud muito bem produzidas tecnicamente mas com a criatividade herdada da indústria de música eletrônica.

Para produtores cansados desse “efeito homogeneizador”, uma solução tem sido recorrer a uma estética destorcida e low-fi e uma imperfeição calculada – aspectos que lembram uma época mais pura e mercantilizada da história da dance music. Outros foram na direção oposta, tentando mudar as peças desse “jogo do pop” fazendo uso de uma estética de agregação de valores exagerada até que ela vire um reflexo deles mesmos.

Em uma entrevista anterior para a Tank Magazine, Cook explicou o significado por trás do nome PC Music. “[ele] Deixa claro como o computador é uma ferramenta extremamente crucial… para fazer música amadora e também potencialmente sagaz, na qual a diferença entre uma produção feita em um estúdio profissional ou em seu próprio quarto pode ser bastante ambígua”. Para Cook, a crescente onipresença das ferramentas de produções musicais do gênero pop significa que a maioria dos selos não tem mais acesso exclusivo à doce euforia da música de alta definição.

#HDBOYZ, via DIS magazine

No mundo das artes visuais, artistas como Ed Atkins e Ryder Ripps têm encarado a estética de alta definição de um jeito particular. O já extinto projeto de Ripps, #HDBOYZ, “a melhor boy band em alta definição”, remete particularmente a perversão do pop gloss. Em um editorial de moda para a DIS, em 2012, o quinteto é retratado em trajes retrô-futurísticos que lembram uma mistura da grife FUBU, acessórios rave, e o Lance Bass, integrante do N’Sync, no início da carreira. Cada foto foi sobreposta com pequenas telas touchscreen, rastros de luz fluorescentes, logos brilhantes com textura cromada e detalhes ampliados, todos símbolos de um conceito ultrapassado de como seria o futuro, já que os anos 2000 se prolongaram até a outra década.

Sendo o #HDBOYZ uma paródia antiquada da estética de alta definição – uma lembrança de como éramos estúpidos há 20 anos quando achávamos que o futuro seria assim – o trabalho de AG Cook e seus contemporâneos parece mais otimista em relação a um potencial democrático da tecnologia de mídia se tornar mais acessível progressivamente. Basicamente como se em 2014 qualquer um pudesse ser uma celebridade.

Enquanto isso, o artista visual e criador de instalações Ed Atkins faz uso de imagens extravagantemente brilhosas geradas por computador e áudio proveniente de som holográfico para criar cenas tão realistas que chegam a ser perturbadoras. Vídeos como “Us Dead Talk Love”, que retrata um diálogo entre dois cadáveres animados, tem representações assustadoramente realistas da forma humana. Cabeças flutuantes fazendo monólogos sobre estados emocionais exagerados, estruturas de pele que inflam e desinflam, e fios de cabelo tão meticulosamente bem representados que os movimentos parecem respeitar bem até demais as leis da física. Essas representações que mais parecem ter saído de um pesadelo são equivalentes visuais das texturas de alta fidelidade de AG Cook; bem semelhantes, mas não o suficiente para que assim ambos sejam capazes de revelar o seu próprio artifício.

PC Music também se manifesta de uma forma meio violenta, tanto no que diz respeito ao que a música pop se submete, como ao efeito estranho e perturbador que causa em seus ouvintes. As melhores faixas que compõe o catálogo do selo não te deixam cair na rotina. Em vez disso, te elevam a um estado de desconforto delicado onde você está ouvindo a música e ouvindo a si mesmo enquanto a ouve. Você se vê, de repente, imerso nas águas quentes da mais pura emoção e pairando em cima dela, enquanto contempla seu reflexo na superfície.

Os instintos ficam particularmente confusos no remix fantasmagórico de AG Cook da música “Repeat Pleasure”, do How to Dress Well, som no qual uma introdução um tanto desajeitada, com um compasso comicamente apressado, abre espaço para trechos sérios, que sussurram a beleza do R&B – te mergulhando e te tirando de um mar de momentos perturbadores de excesso e loucura.

Em uma homenagem mais ponderada ao retro house “Broken Flowers”, o produtor Danny L Harle reúne pegadas do trance e letras infantis piegas (“tear drops feel like showers”), incorporadas a progressões de acordes exagerados saídos do videogame Dance Dance Revolution; que promete uma sensação obscura do real e mais sincero prazer enquanto também te faz pensar sobre o quão ridículo você deve estar cantando essa música.

Assim como Atkins, cujas animações são ao mesmo tempo perturbadoramente realistas e incontestavelmente artificiais, muito dos momentos mais envolventes do PC Music requerem que os ouvintes sejam capazes de existir, simultaneamente, em duas consciências diferentes. No caso da PC Music, a tensão e ambiguidade que essa consciência dupla produz é o que deixa tantos ouvintes com uma pulga atrás da orelha: eu amo isso? Eu odeio isso? Eles estão rindo comigo ou de mim? Finalmente, a tensão te deixa paralisado, incapaz de decidir se fecha a janela automaticamente e faz com que isso pare, ou mergulhe cada vez mais fundo nas águas turvas das suas próprias necessidades pessoais.

Max Pearl está feliz de saber que finalmente seu curso caríssimo de história da arte está servindo para alguma coisa. Ele é ex-editor do THUMP.

Michelle Lhooq é editora assistente doTHUMP e especialista em criação de gênero pessoal.

Tradução: Stefania Cannone