“O nascimento é agonia, a vida é difícil, a morte é cruel”, diz um dos personagens japoneses na série Giri/Hagi (Dever/Vergonha). Ao ver a crescente falta de credibilidade do futebol português, nos últimos vinte anos, só as dificuldades do dia-a-dia podem explicar a razão de termos milhares de adeptos viciados em seguir os jogos e sequiosos de saber novidades sobre o seu clube.
A bola (e tudo o que gira à volta dela) é utilizada como escape aos árduos compromissos no campo profissional e – sem querer soar a psicanalista – em alguns casos, também à frustração no plano amoroso e sexual. Ou talvez não seja nada disto e, simplificando a realidade, se deva ao fanatismo de querer ver o emblema favorito vencer literalmente a todo o custo, mesmo que a partida seja enfadonha e os atletas do seu coração tenham pouca classe. Há um sentimento de que muitos adeptos não gostam de futebol e só lhes interessa a vitória da sua formação e a derrota dos oponentes.
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Como é que alguém fica especado no ecrã ou vai aos estádios quando sabe que, mais tarde ou mais cedo, os suspeitos do costume acabam por ser beneficiados? Com faltas cirúrgicas, o fechar de olhos a um amarelo descarado que daria expulsão, ou com um vídeo-árbitro que branqueia um “grande pormenor” a favor dos mesmos de sempre (isto para não falar de adversários que supostamente facilitam de propósito). “Vamos ser francos. Os ‘grandes’ são sempre os mais favorecidos. Isto é que é uma verdade que não oiço ninguém dizer. (…) Isto para mim [as queixas e a pressão sobre os juízes dos encontros por parte de certos departamentos de comunicação] é a espuma dos dias, isto são cortinas de fumo”, explana o comentador André Pinotes Batista, na CMTV (no passado sábado, 11 de Janeiro).
A afirmação diz muito sobre o que se passa na arbitragem (por inabilidade dos seus intérpretes, ou será pelo condicionamento que sofrem fora dos relvados, como aconteceu numa famosa noite num centro de treinos a norte?). Embora seja um dos moderados na matéria, André Pinotes retrata o quão difícil é ver o futebol e a política a terem respeito por si próprios. Além de ser residente fixo num painel que debate sobre uma indústria poderosa, ele exerce as funções de deputado na Assembleia da República. Apesar da legalidade e de não ser incompatível, este facto não augura nada de bom (antes, agora e no futuro).
Tal como outros que já estiveram (ou estão) nesta posição, o militante do PS pode ser a melhor pessoa do mundo, ter a melhor das intenções – falar sobre uma paixão que tem desde miúdo -, mas o ónus da desconfiança será permanente. Como é que uma pessoa que tem lugar assente no hemiciclo pode ter o distanciamento necessário, se lhe bater à porta um assunto sensível relacionado com a sua equipa? Como é possível, durante anos a fio, termos os maiores clubes a serem recebidos na casa da nação para discursos apatetados? Este é só um pequeno padrão da promiscuidade que faz com que tudo seja capturado por quem domina este desporto. Da política à justiça, passando pela banca, ninguém sai ileso.
Aliás, quando a plataforma digital que faz a gestão processual nos Tribunais Judiciais de Portugal – denominada de Citius – é assaltada, presumivelmente, a pedido de um alto dirigente de uma instituição desportiva e nem uma Comissão de Inquérito é aberta no parlamento (com o caso a ser decidido daqui a uns tempos em sede de julgamento), é sintomático como muitos deputados estão reféns da sua clubite.
É, por isso, “normal” que as dívidas de milhões de euros sejam perdoadas; que processos judiciais em que é flagrante o envolvimento do clube sejam arquivados ou compensados por um funcionário de topo que, na altura do pronunciamento (ou condenação), parece ter sido somente um porteiro; ou que haja representantes do povo que se encostem para conseguirem “uns bilhetinhos e uns votinhos” e, mais grave ainda, que mudem leis para ir ao encontro dos desejos de algum interesse clubístico ou façam jeitinhos fiscais para familiares do “chefe da tribo”.
Para mal dos pecados de quem quer mais transparência neste ou noutros sectores da sociedade, esta palhaçada não tem fim à vista. Depois não se queixem que o país seja baseado nos três C’s: Cunha, Colinho e Corrupção.
A paz “bonitinha” e as “pilas da inércia” dos reguladores
Ao longo dos anos, o jornalista Rui Santos tem feito inúmeros esforços para que a verdade desportiva seja uma realidade. Defendeu a existência do VAR (que obviamente precisa de ser melhorado e de ter indivíduos idóneos) e, por estes dias, protagoniza o “Movimento Pela Paz ” no futebol. A ideia é “bonitinha”, mas o autor de Tempo Extra, na SIC Notícias, sabe que a pacificação entre os habituais candidatos ao triunfo na Liga NOS é, por estes dias, impossível. Devido às idiossincrasias dos dirigentes de ambos os lados e por causa da fortuna que significa o acesso directo à fase de grupos da Liga dos Campeões. Está visto que vale tudo…
Nas últimas duas décadas – só!? – as suspeições misturam-se com certezas e conclui-se que, por detrás do sorriso na celebração de certos títulos, há que considerar a eventual verdade da mentira que devia entristecer os (nem por isso) ingénuos amantes do desporto rei. Puxando a fita atrás, tivemos “homens do apito” em casa de um responsável máximo de um clube; um antigo vice-presidente tentou incriminar um árbitro e foi apanhado; e são imensas as situações pouco claras descobertas num conjunto de emails que estão em fase de investigação. O mais provável é que nada aconteça a este caso e a outros relacionados com o mesmo. O usual.
Se a justiça civil é o que é relativamente a processos que possam implicar os “patrões disto tudo”, o que dizer da justiça desportiva? Por irem a reboque dos acontecimentos em vez de criarem um sistema de prevenção, a Liga, a Federação e a Secretaria de Estado da Juventude e Desporto, parecem mais preocupados em medir “as pilas da sua inércia”. Por medo? Por cumplicidade? Por incompetência? Por saberem que não há forma de se fazerem respeitar?
Por exemplo, a partir desta letargia, não é surpresa que as claques façam o que bem entendem e lancem as suas “bombas de carnaval” (vulgo tochas e petardos) sem que nada aconteça de palpável à instituição que apoiam. Estou a ver que a lição da pancadaria em Alcochete de pouco serviu…
A “normalidade estranha” é tanta, que já ninguém se pasma se, alegadamente, um treinador dá um murro a outro ou se, supostamente, um presidente mete a mão no pescoço de um sócio durante uma assembleia geral. Onde mora o prestígio?
Enquanto termino este texto, vejo mais um erro grosseiro de arbitragem a favor de um dos “grandes”. Como é que eu ainda perco tempo com este “futebolzinho”?
Sou mesmo um otário do ca*****!
Notas finais
1. A foto deste artigo não é uma desconsideração para com os primatas em questão (para aqueles que pensam que estou a chamá-los de otários) nem aos alegados tolos que acreditam na modalidade entre portas (não, não há vestígios de comparação com quem está a tirar uma selfie). Lê a legenda da mesma, por favor.
2. A Federação de Futebol criou há mais de seis meses o Canal 11. Era mesmo o que o país precisava. Mais bola para entreter as massas. Por outro lado, espero que o novo director, Pedro Sousa, uma das pessoas com mais carisma a falar sobre o tema, ajude a estrutura federativa a cortar a eito e a tornar este desporto mais atraente e verdadeiro.
3. A Liga tem que meter mãos à obra e planear o calendário da próxima temporada com outra assertividade. As várias e longas quebras da competição principal (Liga NOS) são desprestigiantes.
4. Quando é que o Secretário de Estado da Juventude e do Desporto, João Paulo Rebelo, mete o lugar à disposição? Inacreditável como ainda está no cargo.
5. Na Itália, a Juventus e o Milan já chegaram a ser relegados para a segunda liga por manipulação de resultados; na Alemanha, o presidente do Bayern já cumpriu pena por fraude fiscal. E em Portugal? Achas que um dia algo do género irá acontecer com um dos “grandes” e com o respectivo presidente em exercício? É mais plausível a final da Champions ser disputada em Marte, certo?
6. O teor de algumas transferências de jogadores é tão esquisito que prefiro passar…
7. O lado bom do futebol português tem sido protagonizado pela maior parte das equipas de todas as divisões que jogam sem artimanhas e sem pressões aos árbitros; pelas academias e os milhares de jovens com esperança em brilhar; pelos muitos profissionais a laborar lá fora (jogadores ou staff técnico – caso do recente êxito de Jorge Jesus no Brasil) e, claro, por causa dos diversos brilharetes da Selecção das Quinas, em vários escalões. Fantástico.
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