Moriti Neto e João Peres, que foi finalista do Prêmio Jabuti, em 2016, com o livro Corumbiara – Caso Enterrado, lançaram, na terça (4), em São Paulo, no Ateliê do Gervásio, Bela Vista, um livro-reportagem sobre as redes de poder e lobby em torno da indústria do cigarro. O trabalho, fruto de uma investigação iniciada faz quase quatro anos, oferece um retrato do Vale do Rio Pardo, no Rio Grande do Sul, coração da fumicultura nacional, e traz um panorama amplo sobre a formação do lobby em defesa de uma cadeia produtiva que explora a mão de obra de milhares de famílias no Sul e no Nordeste do Brasil.
A obra compõe uma análise profunda do contexto que mistura a perspectiva de pequenos produtores rurais em busca da sobrevivência à das megacorporações interessadas em potencializar lucros. Roucos e Sufocados – A Indústria do Cigarro Está Viva e Matando, via Editora Elefante, busca desvendar as artimanhas usadas pelas corporações para frear políticas de controle ao tabagismo, entrelaçando políticos, meios de comunicação, sindicatos, organizações que dizem combater o contrabando e até perfis falsos nas redes sociais. O livro tem o apoio da Aliança de Controle do Tabagismo, do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde e da Fundação Oswaldo Cruz.
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Pouco antes do lançamento, conseguimos trocar uma ideia com Moriti sobre este trabalho de suma relevância para entender como age a indústria em nome do lucro a qualquer custo.
VICE: Quer dizer então que vocês cismaram de investigar corporações?
Moriti Neto: [risos] Sim, estamos com um site especializado em jornalismo investigativo e política alimentar. Não bastasse a indústria do tabaco, a gente não ficou feliz e vamos investigar [risos]. A rede de poder e influência desses caras é incrível. É muito poder concentrado. Muitas corporações têm PIBs maiores que os de muitos países.
No Brasil, as estimativas recentes apontam pra 20 milhões de fumantes, é isso?
É 10% da população, um número significativo. Calcula-se que, no mundo, cerca de 1 bilhão de pessoas ainda fumem, mesmo com toda a publicidade de veto. Muita gente ainda faz a opção por fumar. E a opção é aquela coisa da livre escolha que a gente sabe que não é escolha. Existe uma indução desde que o cigarro passou a ser introduzido na vida das pessoas sempre muito ligado a questões de virilidade, no caso do homem, ou da coisa da sedução, no da mulher, ou até da liberdade. A tal da liberdade feminina, sempre pegando por esses lados afetivos. Depois que se perdeu a possibilidade de fazer publicidade, chamou a atenção que, apesar disso, a indústria tinha muita penetração de discurso em alguns setores da sociedade.
Como os caras fazem isso?
Descobrimos que as articulações em rede é que estavam garantindo a sobrevivência da indústria nesse sentido do discurso. Desde a cooptação de atores que carregam bandeiras legítimas, como sindicatos de trabalhadores, até mandatos mesmo, parlamentares e figurões do judiciário. A indústria, hoje, continua fazendo o seu discurso sem precisar gastar a própria voz, usando a voz de agentes diversos. Aqui no Brasil, ela está baseada no Rio Grande do Sul, principalmente, no Vale do Rio Pardo e também no Paraná e Santa Catarina, e dali ela começa um processo de formação de agentes de lobby. Coopta uma liderança dos agricultores que plantam tabaco, que amanhã vira uma liderança sindical, e depois, no apoio da indústria, vai se tornar um deputado, primeiro estadual, depois, federal… Vai passar pela Assembleia do Rio Grande do Sul, depois vai pra Câmara, em Brasília, Senado, e aí você tem influência sobre ministros e etc.
Fora isso, você vê instituições que garantem combater o contrabando do cigarro aliadas com a própria indústria?
Sim, existem institutos que são financiados pela Sousa Cruz. Você vê desde associações de trabalhadores ligadas aos fumicultores. A partir dessas relações, vão construindo lideranças, vai lá e coopta um líder da comunidade. Mas tem outra questão importante, você vê muitas figuras ligadas a altas cortes do poder judiciário, nomes como Nelson Jobim, Ellen Gracie, participando dos conselhos de institutos do terceiro setor financiados pela Sousa Cruz.
Isso é muito louco…
É o fenômeno da porta-giratória. O cara do poder público vai usar todo o poder de influência que teve no Estado para atuar em favor do setor privado. É igual com a indústria do agrotóxico. A indústria do cigarro é a mãe de muitas das estratégias do lobby em muitas outras indústrias, inclusive, a alimentícia é muito inspirada nesse tipo de estratégia. Além de políticos ou figuras públicas do judiciário, existem cientistas que durante muito tempo foram pagos para que não revelassem os males do cigarro, isso é histórico.
É bom até dizer que vocês vêm tratando desse tema faz algum tempo, né?
Desde 2011. Trabalhando em redação, caiu em nossas mãos uma ação do Ministério Público do Paraná que fazia várias denúncias a respeito de relações de trabalho abusivas, inclusive infantil. Apontava, por exemplo, 80 mil crianças nas lavouras de fumo no Sul do Brasil. Nos envolvemos a partir daí, depois fizemos algumas reportagens, e em 2015 voltamos pra fazer uma grande reportagem na Agência Pública e sacamos que ainda faltava muita coisa, não dava pra ficar publicando só matéria aqui e ali com o acumulo que já havíamos conseguido, e aí que começou o planejamento do livro.
Vocês já foram ameaçados por alguém da indústria ou perseguidos por amantes do cigarro?
Não recebemos nenhum tipo de ameaça direta. O que aconteceu foi que entrava um ativista, um pesquisador, pessoas da área da saúde elogiando ou criticando, e de repente houve uma infestação de trolls que tumultuavam o debate numa tática de enxame. Esses caras passaram a nos perseguir na internet, e depois descobrimos que, em vários veículos onde o tabaco era abordado de uma perspectiva crítica, os mesmos perfis estavam presentes. E com uma disponibilidade de horário incrível, porque comentavam a todas as horas do dia – manhã, tarde, noite ou madrugada –, embora garantam não serem remunerados. Fazem isso só pra defender os interesses da indústria do tabaco por acreditarem que ela não faz mal pra ninguém.
Deu pra descobrir quem eram essas pessoas? Eram pessoas reais?
Conseguimos mapear que a maioria dos perfis vinha do Sul, apenas um do Rio de Janeiro. Este, foi um papel específico do discurso da liberdade individual: “Vocês estão querendo restringir a minha liberdade de fumar”. É um discurso simplista quando se lembra que é um produto viciante e uma corporação tem bilhões de vezes mais influência do que um indivíduo. O problema eram os perfis do Sul, que eram conectados com esse cara, mas cuja maioria era duvidosa de serem verdadeiros. Realmente, fomos mapear, e dos quatro, Luiz Carlos Pauli, Claudio D’Amato, Josué Luís Pires e Paulo Machado, apenas dois eram verdadeiros, e conseguimos encontrar fisicamente.
“Existe ali uma condição de servidão moderna, os contratos que as empresas estabelecem com as famílias de agricultores, a maioria de pequenas propriedades, são um tanto cruéis.”
Esses perfis fakes eram gerenciados por alguém especialmente contra a apuração de vocês?
Não tínhamos certeza de quem gerenciava os perfis fakes. Mas, veja você, faltando um mês pra fechar o livro, um desses haters nos mandou um e-mail, crítico ao novo projeto que estamos tocando, sobre a indústria alimentar, e se esqueceu de um dado, assinou com o nome dele real a partir do endereço de e-mail do perfil fake [risos]. O cara se entregou na última hora! Uma investigação sobre a qual estávamos debruçados há mais de três anos.
Como foi esse lance de encontrar os detratores cara a cara?
Fomos atrás e conseguimos falar só com dois eles porque, de fato, o resto não existia. Mapeamos a região, nós fomos quatro vezes pro Sul, com incursões razoavelmente longas. Tivemos o privilégio de poder ficar períodos de 10-15 dias, fora que fomos pra outros lugares, pra Brasília, entender como funcionava o lobby ali, pro Rio, conhecer esse cara do perfil das liberdades individuais. Uma das pessoas no Rio Grande do Sul fugiu da entrevista na última hora.
O sujeito do Rio, por que ele se importa tanto com isso?
Esse cara do Rio não quer parar de fumar e ele realmente acredita que há uma interferência do Estado na vida dele, o que considera inadmissível. É um sujeito ali na casa dos quase 60 anos, já carrega toda a influência de anos de publicidade no imaginário, embora ele ache que não há influência do marketing nesse hábito. É o cara que, de repente, vai pro barzinho tomar a cerveja dele, e quer fumar lá dentro, não quer sair pra fumar. Agora, ele foi muito conduzido por este personagem do Rio Grande do Sul, o Luiz Carlos Pauli, que evidentemente é o chefe da turma, e que fugiu da entrevista. Esse é o dono dos supostos argumentos e que comanda o enxame, geralmente é ele quem entra primeiro pra comentar e é o mais ativo de todos.
Muito estranho esse cara ter fugido da entrevista.
Quando publicamos a matéria na Agência Pública, ele foi um dos que mais insistiram que a reportagem era deturpada e nos chamou para ir conhecer as plantações lá no Rio Grande do Sul. Ele, inclusive, se propôs a ser nosso guia, e nós aceitamos o convite, fomos até lá. Quando chegamos em Porto Alegre e ligamos pra ele, pra dizer que estávamos a caminho de Santa Cruz do Sul, cidade polo onde as principais empresas ficam e ocorre a plantação de tabaco, no Vale do Rio Pardo, aquela região toda, a irmã dele atendeu e disse que ele tinha resolvido tirar férias. Bem naquele dia.
Como é o cenário das plantações de tabaco no Brasil?
O cenário é muito complexo. Essas viagens envolvem idas a campo e áreas rurais, e as famílias plantadoras de tabaco são bastante fechadas. Existe ali uma condição de servidão moderna, os contratos que as empresas estabelecem com as famílias de agricultores, a maioria de pequenas propriedades, são um tanto cruéis. Porque se estabelece um contrato de ponta a ponta, do processo de produção até a comercialização. E essas famílias são obrigadas a baterem metas dentro de suas próprias terras, e são obrigadas a comprarem desde a semente, passando pelos insumos, adubos, até equipamentos, como pra secagem das folhas de fumo, armazenamento. No cumprimento da meta, você pode ter uma boa safra, que ainda assim não é altamente lucrativa, pois na maioria dos casos o ganho é muito pequeno, e você pode ter uma safra ruim.
Como funciona a classificação de qualidade das folhas?
Quem faz a classificação, de forma arbitrária, é a empresa. As folhas têm uma lista de classificações. A cada ano, a indústria adota critérios muito subjetivos de se fazer essa avaliação. Invariavelmente é isso o que acontece, tem ano em que o agricultor vai bem, e ano em que vai mal. Depende muito da demanda externa, porque a folha do Brasil vai muito pra exportação.
O Brasil é um grande exportador?
O Brasil é o primeiro exportador de fumo em folha. E é o segundo produtor, atrás só da China. Até 2015, que foi quando entrei de cabeça nessa histórica, confesso minha ignorância, eu não sabia disso.
E o cigarro eletrônico?
O cigarro eletrônico é mais um passo, só que com um discurso extremamente perigoso, do tipo: “Olha, nós estamos preocupados com vocês, criamos uma alternativa que faz menos mal à saúde”. Porém, não existe um consenso científico a respeito disso. Em alguns países, na Europa e EUA, principalmente, você vê esse dispositivo em formatos bizarros, até em pen-drive. Então surgem crianças interessadas em experimentar cigarro eletrônico. Um formato atrativo ao público infantil, e, mais ainda, adolescente. O jovem está na mira, realmente. E ele tem nicotina, isso é certo. Acaba conduzindo ao vício do mesmo jeito, e, até, ao cigarro comum.
Como os fumantes são tratados no livro?
Nesse livro, a gente não faz qualquer juízo moral sobre o fumante. Primeiro, porque a questão da liberdade de escolha é muito complexa. Temos, de um lado, um ator muito poderoso, que secularmente vem influenciando as pessoas; segundo, porque seria ingrato julgar a partir de uma perspectiva individual, já que esse é um problema de saúde pública. De interesse público e difuso. Não queremos fazer nenhum discurso moralistoide, mas mostrar que, além dos impactos da saúde pública pelo lado do fumante, existe na outra ponta um produtor que também está precarizadíssimo. Em alguns momentos, num trabalho análogo à servidão, e que também tem problemas de saúde muito sérios. O contato com as folhas de tabaco causa uma absorção de nicotina que chega a ser trinta vezes maior que a do ato de tragar. Fora o agrotóxico com que se tem contato e tudo mais.
É verdade que se a indústria do cigarro quebrar, a economia será prejudicada?
Em termos de orçamento público, o Brasil arrecada hoje cerca de R$ 13 bilhões em impostos por ano. Parece muito. Mas, se compararmos aos impactos, já destrinchados por pesquisas de institutos de respeito como o INCA, fundações dedicadas à pesquisa científica na área da saúde, os impactos na saúde pública gerados pelo cigarro passam de R$ 50 bilhões ao ano. Quer dizer, na verdade, se a indústria parasse de fabricar cigarros hoje, seria até melhor [risos]. Com relação ao plantio, existe aquele mito de que, se acabar, vai haver uma tragédia no Sul do país e a economia vai quebrar, porque são 10% do PIB gaúcho, por exemplo… Muito pelo contrário, o que se tem lá é uma monocultura com pouco espaço pra diversificação. Então, o que você acaba causando é o contrário, uma dependência econômica extremamente nociva, com pouca diversificação, e, inclusive, prejudicial para a cultura alimentar. Você deixa de produzir alimentos pra produzir cigarro.
Rola também um empobrecimento do solo…
Sem dúvida, a questão das águas, contaminações e etc., todos esses impactos ambientais. Mas sabe que, a qualquer momento, caso os dispositivos eletrônicos se tornem populares, avançados e produzidos em larga escala, eles próprios vão abandonar o investimento na fabricação do cigarro tradicional.
Há alguns anos, eram 200 mil famílias cadastradas produzindo tabaco. Hoje, já caiu pra 150 mil, e o número tende a cair mais. Deverá permanecer uma elite de produtores, aqueles que eles consideram que produzem mais e melhor, mas sem dúvida o intuito é focar mais no cigarro eletrônico mesmo, no investimento em novas tecnologias.
Vocês identificaram casos de trabalho infantil nas visitas às plantações de fumo?
Foram registrados, pela ação do Ministério Público no Paraná, mais de 80 mil casos de crianças, adolescentes e pré-adolescentes trabalhando em lavoura de fumo, e, principalmente, no Rio Grande do Sul. A gente descobriu que isso é muito naturalizado por lá, porque, como as famílias são pequenas, toda mão de obra é recrutada em algum momento. Tanto que os agricultores de meia idade e os mais velhos, a maioria, no máximo, chegou ao ensino fundamental, é uma formação muito deficitária. Os mais jovens estão na escola até em razão de alguns acordos que acabaram acontecendo, e houve a obrigação pela justiça de que a indústria se tornasse responsável por isso, exercendo um papel de agente fiscalizador. O que não quer dizer que, no contraturno, esses meninos e meninas não saiam da escola e não vão para a lavoura.
O que mais lhe marcou nessas visitas às propriedades para conhecer as famílias cultivadoras?
Foi uma visita a uma propriedade em Venâncio Aires, a trinta minutos de Santa Cruz do Sul, à qual fomos levados por uma diretora sindicalista dos trabalhadores rurais. Ela nos apresentou a uma família dona de uma propriedade modelo, uma família bem-sucedida dentro dos padrões da região. Durante a entrevista, tocamos na questão do trabalho infantil. Aí o dono começou a falar que trabalhava desde criança, que chegou ao ensino médio com muito custo, que era uma exceção ali e tal. Quando o discurso passou pra sindicalista, ela me disse: “Eu trabalhei na lavoura, quando criança, e me tornei uma cidadã exemplar. Uma pessoa que trabalha e paga impostos. Com essa coisa das crianças não trabalharem hoje em dia, o que estamos vendo é a formação de uma geração de vagabundos, que só querem estudar. Não querem saber de trabalho, só de usar drogas, uma geração de perdidos.” Isso é muito simbólico e ouvimos muito esse tipo de coisa na região. É muito normalizado e naturalizado o trabalho infantil.
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