Por que a imagem de uma mulher negra causa tanto ódio?

Eu realmente não acreditei nas proporções de raiva que uma foto de uma mulher grávida trariam. É fato que a Beyoncé é uma artista com muita, muita visibilidade, mas assim como sua foto grávida ganhou as redes pelos seus fãs felizes com a notícia muitas pessoas se sentiram de alguma forma agredidas.

O que acredito é que muitas pessoas estão respondendo de forma violenta a uma imagem simples de uma mulher grávida. Das coisas que li, as que me chamaram mais atenção foram:

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Beyoncé está se promovendo com sua foto grávida. Atualmente ela é uma das mulheres mais famosas e ricas do mundo. Será que ela realmente precisa desse tipo de promoção, ou será que depois de passarem anos especulando que a sua primeira gestação foi uma “farsa”, ela não quis expor isso de uma forma diferente para não gerar dúvidas? Lembrando que no seu documentário ela diz que antes da Blue sofreu um aborto espontâneo.

Enfim, independente das suposições eu queria entender por que desumanizamos tanto a Beyoncé e outras mulheres (negras) que têm visibilidade e dinheiro? Aparentemente o racismo não é vencido com status e dinheiro, num nível que continuamos atribuindo a essas pessoas uma vivência de “não pessoa”. Em que ela não tem sentimentos, não tem vontades e não faz escolhas. Seja a escolha mais simples possível — a de fazer ou não uma foto grávida e postar ela numa rede social.

Foto por Awol Erizku.

Quando dizem que Beyoncé e outras famosas são uma “marca”, eu entendo o que querem dizer, mas discordo desse uso banalizado para mulheres e negros que já partem independente do seu posicionamento financeiro da vivência de objetificação. Portanto, colocar eles no lugar novamente de objeto por terem alcançado algum patamar de visibilidade e dinheiro fora do comum para negros/mulheres é sem dúvida parte até de um processo de não-naturalização desse local. O fato da foto dela grávida ter se tornado a foto mais curtida no Instagram gerou um sentimento de indignação fora do normal. Como se essas curtidas fossem um discurso de ódio ou um “absurdo”. O que faz isso nos indignar tanto se outros assuntos que realmente são violentos nos causam uma sensação de “OK, isso não me importa”?

Foto por Awol Erizku.

Seguindo as coisas que foram ditas, uma delas era que a  Beyoncé tem dinheiro e não tem senso estético. Realmente acho que todos podem não gostar do trabalho e estética proposta por um artista lembrando que nem todas as fotos que estão no site dela são do mesmo fotografo! Porém a foto mais criticada é essa acima. A autoria do ensaio todo é do fotógrafo Awol Erizku. Eu acredito que quando não gostamos de algo, não fazemos igual e não compartilhamos (no caso de redes sociais). Confesso que das aulas de história da arte e de fotografia que tive no curso de arquitetura e urbanismo, muita coisa eu achava horrível. Até mesmo na arquitetura acho muitos projetos tenebrosos. Mas simplesmente não gasto minha energia desqualificando e “odiando” quem propôs isso. Para mim não tem significado relevante, pode ser que para outras pessoas tenha sim. A questão é que hoje, com as redes sociais, é muito mais fácil dar uma importância cada vez maior para si então as pessoas precisam gastar a energia em sites falando como essa mulher é brega pelas suas escolhas pessoais que  não afetam negativamente a vida de ninguém.

Leia também: “Awol Erizku já era foda antes mesmo de fotografar o barrigão da Beyoncé”

Realmente concordo que somos ignorantes no que diz respeito às referências e aí falo do lugar de uma pessoa que esteve na academia, numa universidade elitizada, estudando conceitos sobre arte, estética e fotografia e vivenciei que os professores vão te fornecer referências europeias. Nunca tive uma aula sobre a produção arquitetônica internacional fora do eixo EUA e Europa. Poucos arquitetos asiáticos e latinos não-brasileiros eram citados e nenhum arquiteto negro e/ou africano foi citado. O Keré, arquiteto de Gando premiado e reconhecido internacionalmente, era reconhecido pelos alunos por suas buscas e interesses pessoais.

Ser ignorante em relação a visão estética de Awol Erizku, um etíope que viveu a maior parte da vida no Bronx, em Nova York, é um fato que vai além do nosso querer, é praticamente uma imposição da sociedade racista e da nossa suposição de que vivemos numa democracia racial. Tanto que muitos brasileiros de classe média que frequentam museus e galerias só citam Basquiat quando o assunto é artistas negros. Mesmo que dentro do país tenhamos artistas negros com reconhecimento internacional há séculos.

Pessoas usam o Basquiat com a desculpa pra “eu gosto desse negro, então não sou racista” ao ignorar outros artistas negros. Sem nem saber de quem estão falando, as referências estéticas da própria pintura do Basquiat e da estética trazida pelo Awol têm mais em comum do que imaginamos. Tanto que isso é do Awol Erizku:

Arte de Awol Erizku.

Arte de Awol Erizku.

Awol se referencia em Basquit. A diferença é que referência não é cópia. Já vi trabalhos numa das principais faculdades privadas no campo da arte que eram uma tentativa de copiar o Basquiat e que qualquer pessoa que conhece o trabalho dele iria perceber.

No caso, Awol Erizku é, além de um artista por natureza, um acadêmico. Ele é graduado na The Cooper Union for the Advancement of Science and Art, uma das universidades norte-americanas mais “seletivas”, um espaço de formação artística com nome e destaque. Awol também tem pós-graduação pela Yale’s Visual Arts. Awol não é qualquer pessoa no campo da estética. Tanto que olhando suas fotos muitas pessoas lembraram de David LaChapelle — Awol já trabalhou com ele. Com 26 anos, ele ganhou o coração dos críticos de arte com este trabalho:

A. Erizku — Menina com o Brinco de Bambu, 2009

Por fim, Awol sempre deixou evidente que reproduz quadros e imagens conhecidas com pessoas negras. Para ele isso é um posicionamento político. 

A foto da Beyoncé é muito coerente com seu portfólio e estética do que se entende como fotografia contemporânea. Realmente acho que já podemos ter contato com uma nova referência artística negra que, mesmo tão jovem, já expôs no MoMa. Muitos que se intitulam fotógrafos são apenas jovens de classe média que possuem uma câmera — e não consigo ver mais pensamento sobre estética e arte num vídeo da BATEKOO do que em muitas exposições de gente que se diz fotógrafa, mas me parece só ter dinheiro suficiente para ter equipamentos. 

Respeito quem não gosta do trabalho de um artista, mas não respeito quem desqualifica — e cito todo o currículo pois se tratando de negros as pessoas acham que é muito fácil ter um espaço, visibilidade, respeito e uma carreira de sucesso em sociedades racistas. Por fim, um fato que não se pode negar é que Awol Erizku tem uma identidade visual,  o que não se consegue assim tão fácil e que por sinal muitos “artistas” que apontaram para suas composições não têm. Por isso desqualificar é dizer: faria o mesmo/faria melhor. 

O fato é que Beyoncé citar a escritora nigeriana Chimamanda em uma música deu mais visibilidade para essa artista, fazer um ensaio grávida com um artista brilhante como Awol dá mais visibilidade para o trabalho dele. Qual é o problema da Beyoncé fazer isso, sendo ambos artistas negros num mundo em que o racismo ainda limita espaços?

Vi o seguinte comentário vindo de um fotografo: “…não conheço o resto do trabalho desse cara, que realmente pode ser bom, mas falando especificamente dessa foto, não gostei. Me lembrou até alguma coisa meio mexicana, essas flores e véu, tipo Dia dos Mortos, mas talvez seja pela barriga dela que parece uma piñata.”

Pinatã é um objeto cheio de doces espancado até que suas guloseimas caiam. Não sei realmente o que imaginar de um homem que associa “estética mexicana” a algo negativo — para mim isso é xenófobo. Porém, me chama mais atenção o “incômodo” com a barriga de uma mulher negra grávida. Quero enfatizar negra pois quando a Demi Moore saiu na capa da Vanity Fair nua e grávida, o sucesso foi tão grande que essa imagem foi incansavelmente copiada por outras famosas, em sua maioria brancas. Olha só:

Demi Moore, 1991

Cindy Crawford, 1999

Britney, 2006

Fernanda Lima, 2008

Claudia Schiffer, 2010

Jessica Simpson, 2012

São seis capas com a mesma pose, sem praticamente nenhum elemento diferente. Veja bem, a Beyoncé foi acusada de se promover, romantizar a maternidade e capitalizar em cima da sua gravidez. Mas as fotos foram publicadas em seu site, e não na capa de uma revista. 

Quantas negras grávidas já vimos na mídia com suas barrigas em evidência? Quantas vezes fomos naturalizando a ideia da maternidade para uma mulher negra como algo satisfatório? Li recentemente uma matéria de uma mulher negra de pele escura que foi ofendida por mostrar a sua barriga numa foto. Disseram que era uma foto que mostrava uma “escuridão” que não era “bonita”. A resposta da modelo Porsche Thomas foi: “Era apenas uma foto para abraçar a barriga. Nós estamos acostumados a ver grávidas brancas. Nós não vemos com frequência a barriga de pessoas negras e, por alguma razão, quando vemos, as pessoas têm uma reação negativa em relação a isso, como se fosse algo vulgar”.

Mais do que ser vista como vulgar é violenta. Negras grávidas são uma violência para a branquitude. Simples. A gravidez de uma negra é sempre questionada e a mulher negra sofre agressões de gênero e raça, mesmo que não seja simétrica a violência de uma negra de pele clara com uma de pele escura, é fato que a violência que negras sofrem é diferente do que as brancas sofrem até mesmo na gravidez.  Quantas vezes brancas são questionadas se os filhos delas têm pai com a mesma frequência que uma negra é? Quantas vezes brancas se pegam pensando que podem receber menos anestesia? Quantas brancas são agredidas por postarem fotos de suas barrigas?

As grávidas negras no Brasil são em sua maioria: pobres, sem ensino superior, sem trabalho remunerado e entre as adolescentes a maioria das grávidas também é negra. Isso baseado na pesquisa de Maria do Carmo Leal, Silvana Granado Nogueira da Gama e Cynthia Braga da Cunha, da Escola de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, estudo que analisou a situação de grávidas negras, brancas e pardas com relação à qualidade de vida, escolaridade e atendimento médico em estabelecimentos públicos e privados do Município do Rio de Janeiro e concluíram também que:

A ausência do pai do bebê no domicílio das mães negras foi maior. Para as pesquisadoras, “estes dados evidenciam uma situação de  desamparo emocional e  econômico que se soma ao maior  maltrato físico vivenciado durante a gestação”. De acordo com o artigo, “mulheres negras e pardas são majoritariamente atendidas em estabelecimentos públicos, 58,9% e 46,9%, e nas maternidades conveniadas com o Sistema Único de Saúde (SUS), 29,6 e 32,0%. Por outro lado, quase metade das brancas, 43,7%, tiveram seus partos realizados em maternidades privadas.  Estes resultados reforçam a desigualdade no acesso ao serviço de saúde entre mulheres de diferentes etnias.”

Retirado de: http://bit.ly/2l2eAdk

É fato que a maternidade para negras tem obstáculos que outras pessoas não imaginam. Essas mulheres estão sendo mais agredidas do que imaginamos até quando postam fotos de suas barrigas ou não se sentem representadas na maternidade já que a figura da negra grávida quando é mostrada pela mídia sempre é no sentido negativo.

São as mulheres negras que mais sofrem violência obstétrica, pois são as que mais peregrinam na hora do parto (muitas negras quando estão parindo não conseguem atendimento no primeiro hospital que vão), ficaram mais tempo em espera para serem atendidas, têm menos tempo de consulta, estão submetidas a procedimentos dolorosos sem analgesia, estão em maior risco de morte materna. Cerca de 60% das mulheres que morrem de morte materna são negras.

Retirado de: http://bit.ly/2jN5Z97

Ano passado dividi uma mesa com Cristiane Mare da Silva, uma acadêmica, escritora, doutoranda, mãe e feminista negra que trouxe uma outra perspectiva em relação a direitos reprodutivos:  temos que garantir que a mulher negra viva a maternidade dignamente. Cristiane disse que muitas vezes falamos de direitos reprodutivos entendendo que a pauta principal para negras é apenas o direito ao aborto, quando ela abrange poder ter um filho, se essa for sua escolha, de forma digna. E nisso é claro que o dinheiro ajuda, a Beyoncé e qualquer outra negra rica pode fazer isso, mas numa sociedade racista o dinheiro não vai te defender do racismo e sua filha mesmo como 5 anos será vítima de comentários racistas, ofensas e até de uma petição pedindo para você “dar um jeito no cabelo dela” como aconteceu com a Blue, filha da Beyoncé. No caso das mulheres negras pobres, além de filhos agredidos de forma racista, de filhos sofrendo nos espaços escolares, elas ainda vão viver diariamente com o medo de que eles possam ser mortos pela polícia ou estuprados num país em que um jovem negro tem três vezes mais chances de morrer e uma jovem negra três vezes mais chances de ser estuprada que jovens brancos.

Tantos comentários negativos, tantos discursos agressivos, tanta raiva, tanta deslegitimação, tanta ignorância, tanta hipocrisia. São frutos de uma sociedade de ódio racial e de gênero onde uma mulher negra ficar “feliz” com uma gravidez precisa ser “questionado”. Eu realmente me senti agredida com tudo isso, pois só reafirma o que já vejo e vivo:  negros, quando fazem suas escolhas, são extremamente criticados mesmo que façam algo banal como um ensaio de grávida, numa sociedade em que isso é comum e corriqueiro.

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