Na sexta-feira (15), o juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da Justiça Federal do Distrito Federal, concedeu liminar para psicólogos poderem fazer terapias de reversão sexual com pacientes homossexuais.
A decisão contempla uma ação popular assinada por psicólogos entusiastas de tratamentos heteronormativos e contraria a resolução 01/99, do CFP (Conselho Federal de Psicologia), que proíbe profissionais de realizarem terapias para reorientação sexual. Em nota, a entidade ratificou estar contra a liminar, pois “a homossexualidade não é considerada patologia, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS)”, além de alertar que “terapias de reversão sexual não têm resolutividade, como apontam estudos feitos pelas comunidades científicas nacional e internacional, além de provocarem sequelas e agravos ao sofrimento psíquico.”
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A OMS deixou de considerar a homossexualidade como doença em 1990, ainda que setores conservadores e homofóbicos pareçam se recusar a aceitar isso. Em levantamento feito pelo GGB (Grupo Gay da Bahia) divulgado em maio deste ano, uma pessoa homossexual é morta a cada 25 horas no Brasil. Em 2016, segundo a mesma ONG, 343 pessoas foram vítimas mortais por causa da orientação sexual e/ou identidade de gênero.
A liminar do juiz do Distrito Federal representa um completo retrocesso. “O Estado não pode legislar sobre a sexualidade do cidadão, pois esse é um assunto de foro individual e recai em uma questão criminal em vez de uma questão de liberdade de prática ou liberdade de expressão, pois o trato da psicologia deve ter zelo ético”, diz Lucas Charafeddine Bulamah, psicanalista e pesquisador da USP. “A questão da sexualidade e do gênero não pode ser tratada pelo Judiciário como se fosse passível de desenvolvimento unilateral, sobre a decisão judicial, que alegava ir contra a proibição do aprofundamento dos estudos científicos relacionados à (re)orientação sexual, afetando, assim, a liberdade científica do País.”
“Quando você diz que uma pessoa pode ser curada na sala de um psicólogo, curada de algo que lhe dá prazer e sem ferir ninguém, isso é nada mais do que um dos primeiros passos na escala de violência.” — Lucas Bulamah
A decisão é um marco também na retomada do molde tradicional e conservador na sociedade. “Tudo sugere que, no final, temos medo das novidades e nos agarramos a princípios e preconceitos tradicionais, os quais estão sendo assumidos com maior clareza e veemência nos dias atuais não só no Brasil, mas no contexto global”, destaca Claudio Bertolli Filho, professor de antropologia da UNESP, campus de Bauru.
Não é exagero dizer que a liminar trata de violência simbólica contra a população LGBTQ. “Quando você diz que uma pessoa pode ser curada na sala de um psicólogo, curada de algo que é particular e digno de respeito, o que lhe dá prazer e sem ferir ninguém, isso é nada mais do que um dos primeiros passos na escala de violência, o que pode levar até o apagamento do sujeito”, pondera Bulamah.
Imagine um grupo de psicólogos dizendo que a maneira como você ama está errada e mais do que isso: você tem uma doença. Agora, pense em uma comunidade religiosa unindo argumentos conservadores a um procedimento igualmente reacionário, mas vendido como científico. O caso da psicóloga Marisa Lobo, que usava argumentos supostamente cristãos para respaldar a “cura gay” e recentemente venceu uma batalha judicial contra o CFP por causa de seu modus operandi, é um exemplo claro do que a liminar aprovada pode entender como correto daqui em diante.
A ascendência cada vez maior de setores conservadores na política e o próprio crescimento da bancada evangélica na Câmara dos Deputados podem representar um retrocesso para os direitos LGBTQ conquistados. Para Bertolli, “o Estado brasileiro está assumindo de maneira cada vez mais clara estar sob o comando de grupos conservadores que visam responder aos seus próprios interesses e valores e não dialogar com a sociedade. Eles são os ‘donos do poder’ e sentem-se livres e capacitados para exercê-lo sem limites. Como bom conservadores, apesar do discurso pretensamente liberal e democrático, não suportam conviver com a alteridade, buscando desqualificá-los de maneiras variadas.”
“Jovens LGBT já têm mais chance de cometer suicídio do que qualquer outro jovem. E esse número pode aumentar se a gente tiver medo de ir ao psicólogo” — Fernanda Soares
Outro risco significativo respaldado por resoluções judiciais desse tipo é o de pessoas LGBTQ estarem nas mãos de outras que “não estão interessadas na vida alheia e na subjetividade do paciente”, completa Bulamah. “Elas estão interessadas em pregar um estilo de vida e uma visão de mundo ‘correta’ para pessoas que talvez estejam sem nenhuma defesa expressiva para poder expressar uma opinião contrária [à do profissional].”
“Para a população LGBTQ, que já é vítima de violência em todos os ambientes sociais, colocar esse preconceito como ‘forma de tratamento’ dentro de um consultório é muito perigoso”, descreve Fernanda Soares, 29, diretora do Canal das Bee, no Facebook, que ressalta os danos que esse tipo de medida judicial pode causar para homossexuais. “Jovens LGBT já têm mais chance de cometer suicídio do que qualquer outro jovem. E esse número pode aumentar se a gente tiver medo de ir ao psicólogo tratar uma depressão, por exemplo.”
“Além da própria ideia de cura já ser uma enorme violência, sabe-se lá os métodos aos quais esses pacientes seriam submetidos. É obscuro e remete aos períodos mais sombrios, que, ingenuamente, achei que só veria em livros de história”, conta o pesquisador em cinema Lucas Procópio, 25.
Sob a condição de anonimato, uma fonte fez um relato sobre a trajetória de Carlos*, frequentador de uma igreja neopentecostal que decidiu iniciar um procedimento da cura gay com uma terapeuta também evangélica, pois acreditava que o tratamento seria mais eficaz nesses termos — a busca religiosa foi a maneira encontrada por ele para superar a depressão que tinha desde a infância.
Com o passar do tempo, Carlos passou a condicionar a sua vida ao dia a dia da igreja que frequentava, a ponto de participar de um grupo de orações sempre que tivesse pensamentos homoafetivos e a resumir a sua vida social ao convívio com amigos que estavam também em processo de reorientação sexual. Contudo, esse havia se revelado um processo doloroso a ponto de bloquear esse sentimento por meio do cotidiano religioso.
Apesar de se mudado de sua cidade natal, no interior, para uma capital com o objetivo de fugir da homofobia que sofria e de estar em paz consigo próprio, Carlos sentiu-se impotente em relação aos seus sentimentos e condições e cometeu suicídio — ele havia pedido desculpas às pessoas próximas e dizia “que se sentia fraco para continuar”.