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Por Que Letras de Rap Estão Sendo Usadas como Evidência nos Tribunais?

No dia primeiro de dezembro, a Suprema Corte dos Estados Unidos ouviu os argumentos do caso Elonis vs. Estados Unidos. Depois que a esposa de Elonis o deixou, levando com ela os filhos do casal, ele começou a escrever posts cada vez mais violentos e ofensivos sobre ela no Facebook. “Só existe uma maneira de te amar, mas mil maneiras de te matar”, ele escreveu. “Não vou descansar até que o seu corpo esteja todo ferrado, ensopado de sangue e morrendo por todos os cortezinhos”. Em 2011, ele foi declarado culpado de violar leis federais de comunicação, que proíbem a transmissão de ameaças entre diferentes estados. A questão que se apesenta à Suprema Corte é a seguinte: é necessário provar que o réu em um caso como esse tinha intenção de que suas declarações fossem ameaçadoras, ou basta demonstrar que uma “pessoa razoável” consideraria a declaração ameaçadora? Elonis não nega ter escrito as declarações que os promotores introduziram como evidência, mas ele afirma que se tratavam de letras para raps que ele estava compondo, ao que parece influenciado por Eminem. “Não é ficção, não é letra de rap”, disse a Advogada da União, Sherri Stephan. “São ameaças feitas sob medida”. Independentemente de quanto nos pareçam genuínas as alegações de criatividade de Elonis, contudo, a decisão da Suprema Corte nesse caso terá consequências que se estenderão para muito além do que deve ou não ser permitido dizer no Facebook – ou seja, a relação entre o sistema de justiça penal e o hip-hop.

Letras de rap já haviam sido introduzidas como evidência jurídica lá atrás, em 1994, quando promotores da Califórnia usaram as letras de Francisco Calderon Mora para provar que ele era membro da gangue de rua Southside F Troop, numa tentativa de obter um aumento de sentença. “Independentemente de se essas letras foram escritas antes ou depois do assassinato, elas foram adequadamente autenticadas como obra de Mora. Como tal, elas demonstraram seu caráter de membro da Southside, sua lealdade a ela, seu conhecimento da cultura da gangue, e, por inferência, sua motivação e intenção no dia do assassinato”, escreveu o juiz William Bedsworth, na decisão de 1994 da corte de apelação, que confirmou a admissibilidade das letras de Mora. “Não há nada que faça dessas letras de rap inerentemente não confiáveis – no mínimo, não são menos confiáveis do que as letras de rap em geral”. A decisão de Bedsworth estabeleceu o precedente legal para que se interpretasse as letras de rap como não-ficção, em vez de como uma forma híbrida e metaficcional. É uma decisão que se aproveita de preconceitos racistas profundos – uma incapacidade de reconhecer a diferença entre o rapper como artista e o rapper como ser humano – e que reimplanta esses preconceitos no texto mesmo de nosso sistema judicial.

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Para os promotores e jurados, as letras de rap têm uma acepção específica de veracidade que letras de outros gêneros de música simplesmente não têm. Em 1996, a psicóloga social Carrie Fried apresentou a pessoas comuns (ou seja: jurados em potencial) a letra de “Bad Man’s Blunder”,do Kingston Trio, uma música folk dos anos 60 sobre um homem que mata um policial. Para um terço das pessoas, Fried atribuiu a letra ao Kingston Trio; para outro terço, atribuiu a letra a um cantor country; para o terço final, atribuiu a um rapper. “Quando um trecho de letra que é violento foi representado como uma música de rap, ou associado a um cantor negro, os pesquisados consideraram a letra censurável, declararam se preocupar com as consequências de tais letras, e disseram apoiar alguma forma de regulamentação governamental”, escreveu Fried. “Se a mesma passagem lírica é apresentada como música country ou folk, ou é associada a um artista branco, as reações à letra são significativamente menos críticas em todas as dimensões”. Em 1999, Stuart Fischoff, outro psicólogo, descobriu que não apenas os jurados potenciais tendiam a acreditar que as letras de rap eram feitas de modo a serem interpretadas como fatos mas que “ser o autor de letras de ‘gangsta rap’ concorre com ser acusado de assassinato em termos do impacto das propriedades centrais de caráter no processo de percepção da pessoa”. Equivale a dizer: o gangster rap era mais ofensivo às sensibilidades dos potenciais jurados do que o fato de ser acusado de assassinato.

“Eles tornam o caso mais convincente a favor do governo, e trapaceiam para fazer isso”, me disse o Dr. James Braxton Peterson, Diretor de Estudos Africanos da Lehigh University. “A realidade é que não há ninguém no júri que não tenha um certo tipo de percepção a respeito do hip-hop”.

Um panfleto educacional chamado Prosecuting Gang Cases: What Local Prosecutors Need To Know (O Processo de Casos de Gangue: o Que os Promotores Locais Devem Saber), publicado em 2004 (e financiado por um subsídio do Departamento de Justiça), aconselha os promotores a respeito das melhores maneiras de apresentar ao júri o “verdadeiro réu”, em uma seção intitulada “Pedimos Que se Levante o Verdadeiro Réu”: “o verdadeiro réu é um criminoso usando um lenço de cabeça e fazendo um gesto próprio de sua gangue”, diz o manual. “Por meio de fotografias, cartas, bilhetes e até mesmo letras de música, os promotores podem invadir e investigar a verdadeira personalidade do réu”. Um aviso no início do livro observa que seu conteúdo não deve ser encarado como aconselhamento legal. (O Departamento de Justiça não respondeu a um pedido para comentar sobre o assunto.) Mas é claro que não é aconselhamento legal – é um aconselhamento narrativo, dado a serviço da construção de um personagem. E que melhor maneira de criar um personagem convincente do que apresentar às pessoas um que elas acreditam já conhecer? “Na sociedade de hoje, muitos membros de gangues fazem música e colocam suas experiências de vida na forma de letras”, um analista de inteligência do FBI escreveu em um artigo em 2006, “Understanding Gangs and Gang Mentality“. (“Entendendo as Gangues e a Mentalidade de Gangue”.) “Ocasionalmente, os escritos podem ser utilizados como evidência”.

“Bad Man’s Blunder”, do Kingston Trio

Em agosto de 2013, a Suprema Corte do Estado de Nevada determinou que letras de música, escritas na cadeia por um réu à espera da extradição, eram admissíveis como evidência. A letra era sobre roubar alguém; o autor dela foi acusado de roubar alguém. Naquele mesmo verão, a ACLU (União Americana pelas Liberdades Civis), deu entrada num relatório amicus curiae em defesa de um homem de Nova Jersey que recorria do uso como evidência das letras que ele escrevera. A ACLU de NJ identificou 18 casos diferentes em que promotores haviam pedido a entrada de letras de rap como evidência; em 14 dos 18 casos, os juízes consideraram as letras admissíveis. “É algo difuso, é algo generalizado”, me disse Erik Nielson, um especialista em rap da Universidade de Richmond. O Projeto Primeira Emenda Marion Brechner, na Universidade da Flórida, deu entrada em um relatório amicus curiae no caso Elonis vs. Estados Unidos, em nome de Nielson e sua colega pesquisadora Charis E. Kubrin, criminóloga da Universidade da Califórnia-Irvine.

“A menos que se leve em conta a intenção subjetiva de um réu-testemunha, esses problemas podem fazer com que um jurado, em especial algum que não tenha familiaridade com o gênero, ou que acredite em estereótipos negativos a respeito dele, interprete falsa e incorretamente as letras de rap como uma ameaça de violência ou conduta ilegal”, lê-se no relatório. “Em consequência de tais interpretações errôneas e entendimentos equivocados, expressões políticas e artísticas de importância podem ser injustamente silenciadas e punidas“.

“As letras têm sido usadas por todo o processo da justiça criminal”, me contou Nielson. “Elas estão sendo usadas em audiências de acusação, nos próprios julgamentos, em audiências de sentenciamento. Sabemos que estão sendo usadas de maneiras menos formais, por exemplo, para compelir o réu a confessar de modo a obter uma pena reduzida”.

O que isso significa é que, no que diz respeito aos promotores, as letras de um aspirante a rapper, fundamentalmente, não valem como arte: elas não passam de evidência. “As pessoas têm muita dificuldade de conceber os jovens de cor, que são os principais produtores do rap, antes de tudo como artistas”, disse Nielson. Em outras palavras: a produção criativa de pessoas negras e pardas – e especialmente de homens negros e pardos, jovens e pobres – não está sendo tratada pelo governo americano como discurso protegido por lei.

“O preconceito está presente; o hip-hop está apenas sendo usado como meio de aplicar o preconceito. É o hip-hop hoje, 80 anos atrás era o jazz, na época de Little Richard era o rock”, disse Michael Render, também conhecido como Killer Mike. Conhecido de Nielson, Killer Mike é um rapper de Atlanta que ganhou um Grammy junto com OutKast por seus versos em “The Whole World”, e lançou recentemente seu segundo disco com El-P como Run The Jewels. “O que é mais perigoso não é a participação ativa em um sistema racista – por parte dos juízes ou dos promotores ou da polícia, que são as linhas de frente encarregadas de garantir o cumprimento destas políticas – mas o que é muito real, e muito assustador, é a apatia do público americano que é da mesma composição racial dos líderes desses grupos”.

Nielson e Kubrin atualmente trabalham para atualizar e expandir as descobertas de Fried e Fischoff, e desenvolver uma maneira de catalogar esses tipos de casos na medida em que vão acontecendo. “Estamos lidando com um número de casos na escala das centenas”, disse Nielson. “Sabemos que está nas centenas. A questão é: será ainda maior do que isso?”


Foto da ficha policial de Vonte Skinner

Em 2008, o aspirante a rapper Vonte Skinner foi acusado de tentativa de assassinato de um homem chamado Lamont Peterson. Os promotores alegaram que Skinner e Peterson eram traficantes de droga que anteriormente haviam trabalhado juntos e depois brigado. No julgamento, em 2008, promotores do estado de Nova Jersey apresentaram e leram 13 páginas de letras escritas por Skinner encontradas no banco de trás de seu carro quando Peterson, que ficou paralítico da cintura para baixo, o identificou como o atirador. Muitas das letras haviam sido escritas meses ou até anos antes da noite do atentado; o entendimento mais comum é o de que nenhuma delas fazia qualquer referência a Peterson. As letras foram oferecidas como evidência da intenção homicida de Skinner. O primeiro júri a lidar com o caso de Skinner não conseguiu chegar a uma decisão. Ele foi a novo julgamento, e em 2008 condenado por tentativa de assassinato. Foi sentenciado a 30 anos de prisão, mas recorreu da decisão.

Uma corte de apelação determinou que as letras haviam sido erroneamente admitidas como evidência, e ordenou que se realizasse um novo julgamento. Os promotores apelaram da decisão, que foi, por sua vez, mantida pela Suprema Corte do Estado de Nova Jersey, em agosto. “Não se pode presumir que, simplesmente porque um autor escolheu escrever a respeito de certos tópicos, ele ou ela tenha agido de acordo com essas visões”, a juíza Jaynee LaVecchia escreveu. O ponto em questão era o seguinte: o valor probatório da evidência – ou seja, a sua utilidade para provar uma tese – é maior que seu impacto preconceituoso? De acordo com a Regra 403 das regras federais a respeito das evidências, “preconceito injusto”, dentro de seu contexto, significa uma tendência indevida a sugerir uma decisão com base imprópria, comumente, embora não necessariamente, base emocional”. Em outras palavras, algo está sendo apresentado como evidência com o propósito de influenciar as emoções do júri, em vez da racionalidade?

Cada evidência deve ser avaliada por esse critério – uma decisão que é feita por juízes como Nicholas Garaufis, do Tribunal do Distrito Leste de Nova York, que, em sua decisão de permitir que a promotoria submetesse músicas e clipes de rap como evidências no julgamento de Ronald Herron, também conhecido como Ra Diggs, escreveu: “sem fazer um juízo a respeito da verdade destas declarações ou representações, o tribunal considera que o conteúdo dos vídeos relacionados ao rap é, de modo geral, relevante neste caso, em que o governo deve provar a existência e a estrutura de um suposto empreendimento criminoso e um padrão de atividade criminosa cometida para benefício de tal empreendimento”. Herron, um rapper de Canarsie, era intimamente associado a Uncle Murda, do bairro East New York. A dupla, que às vezes fazia shows com o nome Murda Team, gravou músicas com títulos como “Shoota,” “Shots Pon Dem” (cujo clipe traz a dupla fazendo disparos em um campo de tiros, mas no qual se avisava que “de modo algum apoiamos atos aleatórios, estúpidos e injustificados de violência”) e “Live by the Gun”, gravada com o rapper Waka Flocka Flame. Herron seria considerado culpado em 21 acusações de assassinato, tentativa de assassinato, conspiração com fins de cometer assassinato e extorsão, entre outros.

O caso da acusação baseava-se numa combinação de evidências forenses, testemunhos oculares de agentes disfarçados e depoimentos de testemunhas voluntárias – e também nas músicas, letras e vídeos produzidos na carreira principiante de Herron. Eles argumentaram que as músicas e os clipes de Ra Diggs serviam de propaganda para aquilo a que se referiam como “o empreendimento Ronald Herron” – isto é, a operação criminosa e de tráfico de drogas que Herron supostamente comandava, baseada no conjunto habitacional Gowanus Houses e em processo de expansão para o conjunto próximo, Wyckoff Gardens, quando Herron foi preso. “O governo não questiona o fato de que o réu dava grande importância à sua música, ao seu rap”, Nitze continuou. “Não há de modo algum incoerência entre ser um artista novato do gangsta rap e um criminoso de verdade e de grande porte”. (O Escritório da Procuradoria dos Estados Unidos Para o Distrito Leste de Nova York – o escritório de Nitze – recusou-se a especificamente responder a múltiplos pedidos de comentários a respeito.)

Qualquer fã de rap, no entanto, sabe que a ideia de autenticidade é, para dizer o mínimo, escorregadia, ou, como descreveu para mim o Dr. James Braxton Peterson, da Lehigh University, que a defesa convocou para testemunhar como perito em defesa de Herron, “uma pista falsa”. “Autenticidade é uma categoria muito vazia quando se trata desses tipos de produção artística”, disse Peterson. “As pessoas que acreditamos ser as mais autênticas são sempre aquelas que são as melhores artistas. Em resumo, é isso. Sim, às vezes há uma mistura de fato e ficção – ou de verdade e ficção, às vezes está presente mesmo. Temos que reconhecer isso. Mas o truque de mágica que há nisso indica somente a capacidade artística da pessoa que escreve as letras”.

Enfatizar a própria autenticidade como criminoso é uma forma de arte, como disse Peterson, e além disso uma estratégia de marketing; contudo é, também, o que cria o ostensivo “forte nexo” entre os detalhes específicos de uma dada letra e as circunstâncias do suposto crime, e o que torna ambígua a linha – pelo menos no que diz respeito aos promotores – que separa o que é probatório do que é preconceituoso. “É aquilo que mais nos interessa”, como público, “e o que tem mais chance de ser usado contra você no tribunal, que tem menos chances de ser de fato verdade”, observou Nielson. “Pelamor, esses caras inventam nomes artísticos!”, disse ele. (De fato, até mesmo Anthony Elonis usou um pseudônimo no Facebook: Tone Dougie. “É um personagem que criei para mim”, disse ele.) “É a aula mais básica de redação: autor; narrador. Somos capazes de fazer essa distinção em tudo o mais, mas quando se trata do rap não a fazemos”.

Ra Diggs feat. Uncle Murda e Waka Flocka Flame – “G’d Up”

“Que o hip-hop e o rap sejam usados para condenar é incrível. Eu iria pra cadeia por mil dias pelas merdas que já falei”, me disse Killer Mike. “Tipo, eu faço rap sobre dar tiro num poodle no disco”, disse, referindo-se à letra da faixa-título do primeiro disco de RTJ. Mas alguém como Ronald Herron não foi processado por agressão: foi processado por comandar uma organização criminosa poderosa e lucrativa – o que, segundo os promotores, proporcionava a autenticidade de sua música. “O ponto desta evidência não é o de que essas são coisas de algum modo violentas e ofensivas no geral, e que portanto isso seja um problema para o réu”, o Advogado da União Sam Nitze disse em suas alegações finais. “Não. É algo específico, coisas muito específicas que ele está dizendo para se promover. E só porque ele as está usando para promover sua carreira, isso não lhe dá permissão para tentar explorar seus próprios crimes para construir um nome para si mesmo”.

“Há uma coisa muito simples que refuta isso aí”, disse Killer Mike. “Se você vai incluir no fator da autenticidade o fato de que essa pessoa disse que sou um assassino amoral, traficante e chefão, então por que não se perguntar: ‘por que esta pessoa está usando um defensor público?’” De fato, três equipes de defensores públicos já foram escaladas e reescaladas para defender Ronald Herron no decurso de seu litígio, e, durante o julgamento, Uncle Murda depôs que ele muitas vezes tivera que pagar por Herron quando os dois iam a boates, e que Herron sequer tinha carro próprio. De acordo com o New York Times, disse ele no tribunal: “às vezes a gente exagera as coisas para fazer parecer que melhor que a gente não há”.

“Se você não consegue conciliar esse fato com a violência e a suposta fachada ou hiper-ego gangster que é representado nas letras, que essa pessoa diz ‘tenho dezenas de milhões de dólares, tenho uma casa na América Central, e tenho uma mansão’, se você não consegue encontrar nenhuma dessas coisas e também acusar essa pessoa por sonegação de impostos, ou você é um idiota ou está optando propositalmente por usar a lei para punir aquela pessoa porque já partiu do pressuposto de que ela é culpada”, disse Killer Mike. “Acredito que qualquer um que esteja sentado na bancada do juiz aprendeu lógica o suficiente e é inteligente o bastante para saber a diferença, para saber que isso é uma técnica que está sendo usada para condenar injustamente certos praticantes de um tipo de arte que calham ser de uma classe econômica específica e de uma cor específica”.

As músicas country e folk, por exemplo, têm uma longa tradição de baladas sobre assassinatos, enquanto certos ramos do metal têm fama de fazer letras violentas e usar imagens violentas. Ainda assim, os praticantes dessas formas – homens brancos, em sua maioria – não são processados da mesma maneira que são os rappers amadores (ou até mesmo profissionais). Em junho de 2012, Jef Whitehead, do projeto solo de black metal Twilight, foi considerado culpado de lesão corporal doméstica qualificada depois de agredir sua então namorada com uma pistola de tatuagem. Na época de seu julgamento ele estava trabalhando em um disco, como Leviathan, intitulado True Traitor, True Whore, que tinha títulos de músicas como “Her Circle Is the Noose” (“O Círculo Dela É o Laço”), “Harlot Rising” (“Ascenção da Prostituta”) e “Every Orifice Yawning Her Price” (“Cada Orifício Boceja o Quanto Ela Cobra”). Numa entrevista à Pitchfork, o escritor Brandon Stusoy confrontou Whitehead a respeito dos títulos de suas músicas, e ele respondeu: “estas são histórias reais”. Contudo, “a música de Jef nunca entrou em questão no tribunal”, disse seu advogado à época, de acordo com o Chicago Reader. “Na verdade, não chegou a ser mencionada”.

Enquanto isso, o hip-hop chegou a um nível quase sem precedentes de onipresença cultural – é o modo dominante de expressão não só entre jovens negros e pardos, mas entre brancos de classe média também. E ainda assim, a prática do hip-hop (nesse caso, o rap) é interpretada e compreendida por muitas pessoas como significando algo perigoso, algo ameaçador, inerentemente violento. De fato, o hip-hop se tornou parte da narrativa racializada que cerca o recente assassinado de Michael Brown e os protestos que se seguiram em Ferguson, Missouri. No dia 23 de agosto, um jovem foi preso perto do McDonald’s em Florissant Oeste, em Ferguson, por tocar “Fuck the Police”, de Lil Boosie. (O próprio Boosie foi inocentado de homicídio em um caso de 2012, que incluiu a introdução evidenciária de suas letras.) “Michael Brown… não era nenhum anjo”, escreveu o New York Times um dia depois. O artigo elaborou: “ele começara a fazer rap nos últimos meses, produzindo letras que eram por vezes contemplativas, por outras, vulgares”. É algo perigoso de se fazer, em matéria de interpretação – julgar o caráter moral de alguém pelo caráter moral de sua arte.

A dura ironia é que a ambiguidade – e em especial a ambiguidade moral – é exatamente o tipo de coisa que, em tese, a arte deve ser capaz de abraçar. O exagero e o autoelogio, os trocadilhos e as gírias, as fantasias e os pesadelos, tudo isso contribuiu para tornar o rap uma forma tão popular quanto é. “Se eu dissesse que matei um nego quando tinha 16, você acreditaria em mim?”, pergunta Kendrick Lamar na faixa “m.A.A.d City”. É difícil não ficar pelo menos em dúvida. Contudo, permanece o fato de que o racismo sistêmico nem sempre dá espaço à ambiguidade – ou, na verdade, dá, ao menos para caçá-la. Como o camarada de Killer Mike no coletivo Dungeon Family, Big Boi, diz em seu rap “Night Night”: “You’re snitching on yourself, and now your front door they come through / Without a tap on your phone / The only thing they had to do, was listen to the raps in your songs.” (“Você mesmo está se dedurando, e agora pela tua porta eles entram / Sem uma escuta no teu telefone / Tudo o que tiveram que fazer foi ouvir o teu rap.”)

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Tradução: Marcio Stockler