Por ser um escritor, tento me lembrar todos os dias que palavras tem importância. Quando escrevo sobre hackers, tento manter em mente que a palavra tem uma história controversa e que ela pode ter conotação negativa. Da mesma forma, quando escrevo sobre figuras públicas relevantes como o Presidente dos Estados Unidos ou um senador, eu uso seus nomes verdadeiros, e não um apelido racista que inventei para zombar deles.
Mas nem todo mundo é tão cortês. Ultimamente na internet, membros da comunidade bitcoin e outras moedas digitais estão começando a usar o termo “cripto” como uma expressão genérica que abrange todo o universo das criptomoedas — que, para começo de conversa, nem deveriam ser chamadas de “moedas” ( mas isso já é outra história).
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Um exemplo: em resposta ao recente aumento do preço do bitcoin, o CEO da Shapeshift tuitou o seguinte: “se endividar para comprar cripto a esse preço não é uma boa ideia”.
“Ações Cripto Disparam”, diz uma manchete publicada na última terça-feira pelo portal de notícias sobre o mercado financeiro Investor Business Daily.
No entanto, o blog Seeking Alpha superou todas essas manchetes e declarações com a publicação de um post intitulado “Contos do Cripto”.
Me desculpem a grosseria, mas “cripto” o quê, exatamente?
Me desculpem a grosseria, mas “cripto” o quê, exatamente? Como alguém que já estuda e escreve sobre criptografia há alguns anos, e que além disso é fã do livro Crypto, publicado em 2001 por Steven Levy, considero esse um problema sério. “Cripto” não é um diminutivo de criptomoeda. Os exemplos acima foram escolhidos aleatoriamente, mas se você não acredita em mim, basta pesquisar o termo “cripto” no Google News ou no Twitter (até jornalistas que escreveram livros sobre o bitcoin já cometeram esse erro).
Ao pesquisar a palavra “cripto” no Google, no Merriam-Webster ou no Dicionário Oxford de Inglês, todavia, encontramos um significado muito diferente.
Na internet, o termo “cripto” sempre esteve associado à criptografia. Analisemos, por exemplo, o termo “ Cripto Guerra“, usado para designar os esforços governamentais (originalmente do governo americano) para enfraquecer ou desacelerar a adoção de sistemas de comunicação impenetráveis. A propósito, Crypto não é um livro sobre o bitcoin. Ele fala sobre criptografia, e mais especificamente, sobre os criptógrafos que lutaram contra o governo na chamada Criptoguerra.
Quero deixar claro que não sou o único incomodado com isso. O bitcoin e outras tecnologias usam, de fato, a criptografia: todas as transações de criptomoedas são protegidas por uma “chave pública” conhecida por todos e uma “chave privada” conhecida apenas por uma das partes — essa é a base de uma classe de protocolos criptográficos (conhecidos também como criptografia de chave pública ou criptografia assimétrica) que inclui o PGP. Mas os criptográfos insistem que essa não é a característica definidora dessas moedas.
“A maioria das criptomoedas não tem nada a ver com a criptografia de verdade”, me disse Matthew Green, um renomado cientista da computação especializado em criptografia, por email. “Além do uso trivial de assinaturas digitais e funções hash, as criptomoedas não têm nada que justifique esse nome idiota”.
Emin Gün Sirer, um cientista da computação que leciona na Universidade de Cornell e membro ativo do universo das criptomoedas, me disse pelo Twitter que a criptografia das criptomoedas é “básica e simples” e que ela exerce apenas uma “função auxiliar”. A maior inovação das criptomoedas, acrescentou ele, é o uso de blockchains (registros públicos que catalogam cada transação desde a criação da criptomoeda) como “protocolos de consenso” e “sistemas distribuídos”.
Línguas são entidades vivas e em em constante evolução, e ao contrário de países como Espanha e França, que têm organizações oficiais que determinam e sancionam o significado oficial das palavras, não temos algo do tipo para a língua inglesa.
“Não podemos ditar o que as palavras significam, não importa o quanto a gente queira”, me disse Ariel Robinson, especialista em linguística e ciência cognitiva que trabalha atualmente como consultora de cibersegurança, pelo Twitter. “Os termos e definições correntes sempre ganham”.
Foi assim que o prefixo “ciber” se tornou, lenta e inevitavelmente, uma palavra em si, utilizada em geral como sinônimo de “cibersegurança”.
“É um nome idiota”.
O problema em questão não é semântico, muito menos fruto de um preciosismo linguístico. Como explicou Green, a criptografia está começando a ganhar mais espaço no mundo real, lugar onde vivem pessoas normais que não sabem muito sobre controvérsias do ramo da tecnologia que aconteceram nos anos 90. Alguns exemplos são a batalha legal entre a Apple e o FBI, ou malwares populares e danosos como o ramsomware, que muitas vezes usam a criptografia para bloquear arquivos.
“Se as pessoas vão começar a usar o termo ‘cripto’, elas deveriam ao menos saber que ela é uma tecnologia com sua própria história — e não apenas um sinônimo de bitcoin”, disse ele.
Então se você se interessa pela criptografia, por favor corrija aqueles que usam o termo “cripto” de forma errônea. Ou zoe eles, como sugerido por Ryan Stortz, um especialista em cibersegurança de Nova York. Em uma conversa, ele brincou que vai começar a chamar as criptomoedas de “Block”, uma abreviatura de “tecnologias de blockchain”.
Resolvi também aderir ao movimento: e aí, qual é a última novidade do mercado do “Block”?
Observação: o autor deste texto admite possuir uma pequena quantidade de “cripto” — cof cof — digo, criptomoedas.
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