Por quem vão torcer os catalães neste Mundial?

Este artigo foi originalmente publicado na VICE Espanha.

Que a Catalunha é o mais parecido com uma pizza tropical na qual, surpreendentemente, o ananás pode conviver com relativa normalidade com o fiambre, começou a perceber-se em Julho de 2010. Em apenas 24 horas, as ruas de Barcelona viveram um cocktail de bandeiras antagónicas, numa altura em que lemas como “independência” ou “campeões do mundo” pareciam uma quimera. Como disse o ex-presidente espanhol, Mariano Rajoy, “gosto dos catalães, porque fazem coisas”. E entre o dia 10 e o dia 11 de Julho de 2010 os catalães fizeram muitas coisas.

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No dia 10, mais de um milhão de catalães, segundo os cálculos da Guarda Urbana, saíram à rua para mostrar a sua recusa aos cortes no Estatuto de Autonomia da Catalunha por parte do Tribunal Constitucional. Com o lema “Somos uma nação, nós é que decidimos”, Barcelona acolheu a que, para muitos, foi a primeira grande manifestação independentista da historia contemporânea e o início do denominado procés. Os gritos de independência e as bandeiras estreladas converteram-se em protagonistas 24 horas depois de um tribunal cortar uma lei orgânica que, em 2006, foi ratificada por 74 por cento dos que a foram votare nesse mesmo ano foi aprovada pelo Congresso dos Deputados.

Nem 24 horas depois dessa manifestação, a selecção espanhola ganhava o seu primeiro Mundial de futebol. Na Soccer City de Joanesburgo, o centro campista do FC Barcelona Andrés Iniesta erguia-se como líder de La Roja com um tento no minuto 116. Loucura na África do Sul e em Espanha, também em Barcelona, onde milhares de pessoas se reuniram para ver a final em directo.

A Praça de Espanha da capital catalã encheu-se de bandeiras para celebrar o primeiro e até hoje único Mundial da selecção espanhola de futebol. Uma comemoração que relembrou os grandes títulos conseguidos pelo FC Barcelona. O barulho das buzinas durante toda a noite e álcool por todo o lado nas mesmas ruas que, no dia antes, se tinham enchido de bandeiras independentistas.

Oito anos depois, a selecção espanhola procura na Rússia repetir o sucesso de Africa do Sul [o primeiro jogo da fase de grupos é, calro, com Portugal, a 15 de Junho, em Soochi]. Oito anos em que a Catalunha esteve mergulhada numa montanha russa. Neste período, celebraram-se quatro eleições autónomas. No palácio da Generalitat habitaram quatro inquilinos diferentes: Jose Montilla, Artur Mas, Carles Puigdemont e Quim Torra. Em 2014, Mas organizou um processo participativo não vinculativo sobre o futuro da região, o preâmbulo do referendo de independência que se celebrou no passado 1 de Outubro de 2017 já sob a alçada de Puigdemont, uma jornada marcada pelas imagens de violência policial que deram a volta ao Mundo.

Desde aí, a montanha russa tem seguido em marcha, com a entrada na prisão de políticos independentistas, a fuga para a Bélgica, Alemanha e Suíça de outros líderes do procés, entre eles Puigdemont, e a suspensão da autonomia por parte do Governo espanhol. A bola de futebol, ainda assim, tem continuado a rolar. E isso é porque em Espanha, e também na Catalunha, política e desporto andam de mãos dadas. Na Catalunha, o Mundial vai ser vivido de várias maneiras, mas em todas elas pairará a sombra dos acontecimentos dos últimos anos, especialmente do passado mês de Outubro.

Javi tem 30 anos e é sócio do FC Barcelona. No passado 1 de Outubro viveu na pele as cargas da policia espanhola. No seu colégio, os agentes actuaram para requisitar as urnas e os boletins do referendo declarado ilegal por parte do Governo espanhol. Javi sempre tinha vivido com indiferença os triunfos da selecção espanhola, mas desta vez está decidido: quer que ganhe a Argentina, por causa de Lionel Messi. “Se estivéssemos numa altura normal, como não me identifico com Espanha, ser-me-ia indiferente. Seria como ver mais um jogo do Mundial, mas quero deliberadamente que não ganhe a selecção espanhola, para evitar que isso se use politicamente”, argumenta.

Segundo este filósofo de formação, na Catalunha sempre se viveu o futebol como algo que vai mais além do desporto. Uma singularidade que historicamente tem sido liderada pelo FC Barcelona. O seu slogan, “més que un club” (“mais que um clube”) demonstra-o. E, ao longo da história, a entidade ergueu-se como um dos pilares do “catalanismo”, especialmente sob as ditaduras espanholas que no século XX perseguiram a língua e a cultura catalãs. “O Barca sempre foi mais que um clube e a Catalunha sempre foi um país que não é país e que queria ser país. É uma tensão que existiu sempre”, acrescenta Javi.

Ao contrário de Javi, Antonio, de 57 anos, comemorava os golos da selecção espanhola. Antonio forma parte de uma geração que viveu os anos mais duros em que a frase “jogamos como nunca, perdemos como sempre” era a mais repetida por parte dos fãs da selecção. Com o Euro em 2008 e o Mundial em 2010 a sorte mudou. “Em 2010 fiquei muito feliz. Os que queriam que Espanha não ganhasse percebo que não tenham celebrado tanto”, relata.

Antonio considera que, na Catalunha, existe uma sociedade dividida entre independentistas e não independentistas. Ele não participou no referendo do 1 de Outubro, mas reflectiu muito sobre o que foi acontecendo nestes últimos meses. Na sua opinião, todos os autores do Procés, tanto os independentistas como os que não o são, cometeram erros. “Tudo o que se passou vivi-o muito intensamente, reflectindo e pensando muito, mas no fundo num caso como é o que estamos a viver, o que resta no fim é um sentimento”, reflecte.

Num momento em que a visceralidade na política parece ter chegado para ficar, também há espaço para a neutralidade. É o caso de Carlota, de 28 anos que vai viver o Mundial com uma certa equidistância. Em 2010 já encarou o Mundial com uma certa indiferença à vitória de Espanha. “Como havia muitos jogadores da liga espanhola podia ter-me dado alguma alegria, mas o que não gostei nada foi o facto de ir pela rua e ver as pessoas a comemorar com bandeiras. A mim os nacionalismos causam-me um pouco de repulsa, ver tanta gente a celebrar com bandeiras foi estranho. Não me sentia confortável”, recorda.

Em 2018 vai vivê-lo da mesma maneira, com a ilusão de que um David acabe com Golias. “Normalmente estou pelas selecções mais pequenas ou diferentes, que ninguém espera que ganhe a uma selecção histórica”, salienta. Carlota também participou no referendo catalão e admite que, o que aconteceu nesse 1 de Outubro, tem alguma influência na sua decisão de viver o Mundial com neutralidade. E justifica: “É como uma contradição. Por um lado gosto que ganhe Espanha, mas também me dá raiva comemorar nem que seja pela atitude que o estado espanhol tem com a Catalunha”.

Gerard Piqué a jogar pela selecção espanhola, no jogo contra Portugal no Mundial da África do Sul. Portugal enfrenta a Espanha no primeiro jogo da fase de grupos do Mundial da Rússia 2018. Paul Thomas/Action Images

“Não é o meu caso, mas acho que um independentista também poderia jogar na selecção espanhola”. Assim pensa o central do Barcelona e internacional espanhol Gerard Piqué, um jogador que nunca se escondeu e defendeu sempre o direito a decidir da Catalunha. De facto, o defesa do Barcelona participou na votação de 1 de Outubro e mostrou-se muito crítico quanto às cargas policiais. A sua sinceridade traduziu-se em assobios por parte dos adeptos espanhóis em muitos jogos da selecção.

Como no caso de Piqué, Luis também participou no referendo de 1 de Outubro e no próximo Mundial quer que Espanha volte a conseguir o título. “Em 2010 estava na Praça de Espanha com os meus colegas. Fizemos uma taça com papel de prata. Celebrámos o golo do Iniesta como se tivesse acabado o Mundo. Tomámos banho nas fontes de Montjuic em Barcelona, foi uma noite espetacular”, recorda com um sorriso.

Este programador de 35 anos faz parte dos 55 por cento que, segundo a sondagem do Centro de Estudos de Opinião da Generalitat apresentada em 2017, se sentem orgulhosos dos triunfos da selecção espanhola, ainda que também se situe dentro dos 67 por cento que, ao haver uma selecção catalã, celebraria os seus êxitos.

“Se algum dia nos tornarmos independentes, continuarei a torcer tranquilamente por Espanha. Também torceria pela selecção catalã, mas os meus pais sao de Aragão e eu também amo muito Espanha”, explica este catalão que no referendo votou em branco.

Enquanto este cenário não acontece, Luis viverá o Mundial da Rússia com a mesma paixão e liberdade com que viveu em 2010. Porque, como disse Jorge Valdano, o futebol é a coisa mais importante das coisas menos importantes. “Ponham um ecrã gigante em Barcelona e haverá paz. Haverá gente que celebra e gente que não. As pessoas pensam que aqui há uma guerra, mas não é verdade,” conclui Luis.


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