Este artigo foi originalmente publicado na VICE US.
No início deste mês, a New York Times Magazine publicou uma investigação exaustiva sobre o incêndio de 2008 que destruiu milhares de masters de gravações do Universal Music Group, um tesouro inestimável de canções originais e insubstituíveis feitas ao longo de quase um século. O incêndio no Universal Studios Hollywood devastou completamente “quase todas” as gravações do cofre principal da UMG, onde a maior editora discográfica do Mundo guardava o material “mais valioso”, segundo a revista do New York Times.
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No total, terão ardido entre 118 mil e 175 mil masters. Pela própria estimativa da UMG, estes continham cerca de 500 mil músicas individuais de centenas de artistas de renome mundial. Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Chuck Berry, Joni Mitchell, Al Green, Elton John, REM, Tom Petty, Iggy Pop, Sonic Youth, Nirvana, Tupac – estes são apenas uma fracção dos músicos que perderam enormes partes das suas discografias no desastre.
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E porque é que isto é tão devastador? O que é exactamente um master e o que é que perdemos quando tantos deles arderam?
Imagina-te dentro da sala dos estúdios da Apple em 1969, quando os Beatles gravaram Let It Be. Paul McCartney está no piano. John Lennon no baixo. George Harrison segura a guitarra e Ringo Starr senta-se atrás da bateria. Enquanto tocam “Let It Be”, enquanto McCartney grita ao microfone, o som vai directo para um rolo de fita; o momento vai directamente para o rolo. A partir dessa fita, conhecida como uma gravação multipista, obtemos a gravação principal, o master. O master capta um pedaço da história que nunca mais existirá, um som que nunca poderá ser recriado: é o único documento físico original do som daquela sala, naquele momento.
Todas as canções alguma vez gravadas têm uma gravação master, seja ela captada em fita ou digitalmente, num disco rígido. É a forma mais pura dessa gravação; há detalhes, texturas e sons que se podem ouvir numa gravação master, mas que são imperceptíveis quando transferidos para fora dela. Cada passo que dás depois do master é um passo que te afasta daquele som puro: perdem-se os detalhes do master para o LP ou CD; do CD para MP3; do MP3 para Ogg Vorbis, o tipo de arquivo usado por serviços como o Spotify. Se ouvires “Let It Be” nos teus headphones e depois ouvires o master, parecem quase duas músicas diferentes.
Não é apenas a qualidade que torna um master tão valioso. Muitas vezes, durante o decorrer de uma sessão, os artistas gravam músicas – às vezes dezenas delas – que nunca chegam aos álbuns. Muitas vezes, o único lugar em que esse material inédito existe é no registo master e nas gravações multipistas. Quando os masters arderam no cofre da UMG em 2008, perdemos um número incontável de canções que nunca foram ouvidas. Foram-se para sempre. Das 500 mil músicas que foram destruídas, não há maneira de saber quantas é que nunca viram a luz do dia, que nunca tivemos a oportunidade de ouvir, mas que certamente teríamos adorado.
Como observa o Times, a nossa capacidade de gravar música e a qualidade com que o podemos fazer sempre superou a nossa capacidade de a reproduzir detalhadamente. É por isso que tantos artistas voltam ao cofre – voltam aos seus masters – e lançam álbuns “remasterizados” que, pela primeira vez, nos permitem ouvir discos como eles deveriam soar quando foram criados; como os próprios artistas os ouviram e queriam que tu os ouvisses. Muitas vezes, nesses registos remasterizados, os músicos lançam material inédito. Se qualquer uma das centenas de artistas cuja música ardeu no fogo da Universal quiser fazer isso – se eles quiserem voltar aos seus masters, fazer as suas músicas soarem exponencialmente melhores do que quando foram lançadas pela primeira vez e darem-nos músicas que nós nunca ouvimos antes – não podem. Essa música desapareceu.
Este incêndio não destruiu apenas todos os masters: destruiu dezenas de milhares dos álbuns mais importantes do Mundo, dos artistas mais queridos do Mundo, nas maiores editoras do Mundo. Em alguns casos, como diz o Times, catálogos inteiros de editoras que a UMG absorveu, como Chess, Decca e Interscope, foram aniquilados. Isto para não falar das centenas de masters de artistas virtualmente desconhecidos – artistas que fizeram músicas incríveis que ainda estavam por ser descobertas por editoras como a Soundway ou a Numero Group, que se especializam em encontrar e partilhar músicas fenomenais e esquecidas no passado – que, agora, se foram para sempre.
O que sabemos que perdemos no fogo da Universal é devastador. Ainda mais, talvez, é o que não sabemos que perdemos: a música que nunca ouvimos, os artistas que nunca descobrimos, as canções que nunca foram lançadas e que, agora, nunca serão.
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