Este artigo foi originalmente publicado no JORNAL DE LEIRIA e a sua partilha resulta de uma parceria com a VICE Portugal.
João Camargo, nasceu em Lisboa, em 1983, é licenciado em Engenharia Zootécnica e mestre em Engenharia do Ambiente e Produção Animal. Foi jornalista e professor de Química e Botânica na Universidade Lúrio, em Moçambique, e técnico da Liga para a Protecção da Natureza. É activista do movimento Climáximo, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no doutoramento em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável e autor dos livros Que Se Lixe a Troika (2013), Manual de Combate às Alterações Climáticas (2018) e co-autor do livro Portugal em Chamas (2018). É cronista do jornal Público e uma das faces da luta contra a exploração de gás nas concessões Batalha e Pombal.
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Abaixo, o activista e especialista em alterações climáticas explica a urgência de uma revolução agro-florestal em Portugal, para impedir que este “se torne um deserto queimado” e fala da necessidade de impedir a exploração de gás na região de Leiria e da incapacidade do Estado em fiscalizar o ambiente.
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Jornal de Leiria: Além de plantar floresta autóctone, resistente e que conserva a água no solo, o que deve ser feito, em Portugal, para lutar contra as alterações climáticas?
João Camargo: É preciso uma floresta que permita uma combinação com a agricultura. Estamos a usar os terrenos agrícolas para plantar eucalipto! Somos totalmente dependentes da importação de alimento. E, pior, estamos completamente confiantes de que nunca haverá uma oscilação no comércio internacional de alimentos. Isto é irracional.
Temos de planificar o País para uma escassez de recursos e alimento, como não vivemos desde há dois séculos. Temos de ter capacidade de produção de alimento, de moderar a temperatura e de preservar a água. É difícil, mas consegue fazer-se. Consegue-se criar uma floresta que resiste a incêndios, que não dará dinheiro muito rápido, mas que dá outras coisas de que precisamos: água, moderação de temperatura, alimento e estabilidade social.
Estas coisas não são, obviamente, articuláveis com uma lógica de curto prazo, a pensar em eleições e na satisfação de uma clientela empresarial. Isto é uma coisa maior do que isso. Não se pode pensar em prazos muito apertadinhos e é preciso fazer mais na área da energia. Não temos qualquer interesse em continuar a expandir a nossa capacidade de importação de gás. Não faz sentido manter centrais eléctricas que queimam carvão importado. É uma vergonha não explorar a nossa capacidade de produção de energia eólica e solar!
As áreas concessionadas de Batalha e Pombal têm reservas de gás natural...
Felizmente, a maior parte das concessões para exploração de gás e petróleo em Portugal foram canceladas e só se mantêm Batalha e Pombal. Infelizmente, apesar da retórica de combate às alterações climáticas, o Governo resolveu manter a legislação em vigor, mas Batalha e Pombal também serão canceladas. Numa apresentação para os accionistas, a Australis, a empresa que detém as concessões, referia como mais-valias para a exploração em Portugal, o facto de a população não ser “muito activa” a nível ambiental, de o “Estado não ter grande força”, de a legislação ambiental e os contratos serem muito benéficos para a exploração.
É verdade que o Estado tem zero de capacidade para inspeccionar e fiscalizar o que quer que seja. A Agência Portuguesa do Ambiente é uma vergonha e nem sequer tem de inspeccionar quaisquer complexos industriais. Curiosamente, o Estado propunha fazer a inspecção de furos de petróleo a dois mil metros de profundidade no mar, pela Entidade Nacional para o Mercado dos Combustíveis. Estamos a brincar? Aquilo era um gabinete com duas pessoas de fato, que jamais viram um barril de petróleo! A Australis vai ter uma enorme surpresa com a população. Aliás, já está a ter. A população da Bajouca e as associações de combate às alterações climáticas não estão disponíveis para ter sequer uma posição conciliatória com a empresa.
O modelo de exploração e de compensação é muito diferente daquele que a Noruega tem e que é apontado como um exemplo?
Não é possível uma comparação. Os contratos de Batalha e Pombal são draconianos. Para as populações a compensação é zero. Para o País seria muito pouco… E, mesmo que houvesse contratos como os da Noruega, neste momento, até esse país está à beira de travar as suas explorações de hidrocarbonetos. Sabemos que temos de cortar 50 por cento das emissões dos gases com efeito de estufa até 2030 e sabemos que as reservas de petróleo, gás e carvão conhecidas são suficientes para o planeta aquecer 12º.
Até 2030, só podemos queimar mais 10 por cento dessas reservas. Temos de dizer às principais economias do Mundo e aos Governos mais ricos de sempre que 90 por cento do que contavam como sendo dinheiro em caixa, tem de ser esquecido. Se não o for, podemos esquecer as condições materiais que permitiram o aparecimento da civilização humana. Poderá não ser o fim da Humanidade, mas será o fim do conforto e desta civilização. Poderemos estar perante uma vida de caçadores recolectores, num cenário apocalíptico, como o de Mad Max. Os mais ricos do Mundo são-no porque se construíram numa base da matriz energética, baseada nos hidrocarbonetos. Eles mandam no Mundo e sabem que, para sobrevivermos, terão de abdicar desse poder.
Essas medidas implicam uma redução do nível de vida actual?
Se for planificado, pode ser uma coisa relativamente indolor. Na verdade, a redução de 50 por cento da emissão dos gases com efeito de estufa levar-nos-ia a valores similares aos do início dos anos 80. Não é propriamente a Idade da Pedra. Seguramente, não consumiríamos tantas coisas como hoje fazemos.
Mas, qual é o nosso desígnio? Portugal quer manter-se como um território viável no futuro, mas, enquanto Humanidade, qual é o nosso objectivo? A primeira pergunta que temos de fazer é: queremos sobreviver? Sim ou não? Se sim, em que condições? Depois é planear para essas condições. Hoje, temos uma temperatura mais quente do que nos últimos 120 mil anos! A última vez que esteve assim calor, o Rio Reno, na Alemanha, e o Tamisa, em Londres, tinham crocodilos e hipopótamos! E havia apenas um milhão de homo sapiens. Somos hoje, 7,7 mil milhões.
Uma diminuição da população mundial faria sentido?
Isso facilitaria soluções que não o são. Seria como se houvesse populações que não merecem que se lute por elas. Isso parte do pressuposto que, a única interacção que temos com o meio ambiente é degradá-lo. Na história da Humanidade, já vivemos em sistemas onde a nossa presença ajudou a melhorar o ambiente e a complexificar sistemas. Somos muito bem capazes de pensar no que vamos fazer e como melhorar o ambiente. Não há nada determinado e como espécie não temos de ser destrutivos. O número de habitantes depende de qual é a sua relação com o seu entorno e isso depende e varia de país para país e há alguns onde não há consenso, porque o sistema económico é tão poderoso, como nos EUA, que mesmo a decisão dos povos pode ser impotente.
No livro Portugal em Chamas, abordas a tendência para Portugal arder mais do que o resto da Europa e o risco de considerar os incêndios de Verão coisas normais. A fatalidade é agora normalidade?
O que distancia 2017 dos outros anos, é o facto de terem morrido tantos portugueses nos incêndios. Em 2003 e 2005, as áreas ardidas também foram grandes e morreram pessoas, mas nunca tinham sido tantas. Foi uma falha no sistema de protecção dos cidadãos, aliada a fogos fora da época. Em Junho, em Pedrogão Grande e em Outubro em várias zonas, entre elas o Pinhal de Leiria. Isto significa que o modo como o Estado planifica a protecção de pessoas e das florestas não funciona. A época de incêndios deixou de ser os três meses do pico do Verão e terá de ser muito mais alargada. A onda de calor que aconteceu há poucos dias na Europa, ocorreu em Junho, não foi no pico do Verão, onde seria mais normal verificar-se. Tendemos a habituar-nos à anormalidade, como se ela fosse a normalidade, pois temos memória curta. Claro que eventos traumáticos, com mais de uma centena de mortos, ajudam-nos a esquecer mais devagar.
Não obstante essa pedagogia da catástrofe após os discursos de boas intenções e de algumas modificações legislativas, não se percebe que haja acções determinantes no terreno, especialmente, nas zonas afectadas.
Logo a seguir, houve algum ímpeto e confrontação pública para mudar algumas coisas, mas, depois, os mesmos mecanismos que nos levaram ao abandono das áreas florestais, à situação de descontrolo total no ordenamento florestal, à proliferação de espécies perigosas e inflamáveis em monoculturas, como o eucalipto e o pinheiro e aos incêndios descontrolados e mortais de 2017, contribuíram para que nada se fizesse.
São precisos milhares de vigilantes e guardas da natureza, se se decidir reclamar as terras sem dono e expandir a área pública… e Portugal é o País da Europa com menor área pública florestal. Na verdade, o Estado demitiu-se. Disse: “Não tenho quadros, nem orçamento para gerir a floresta… que se lixe”. E está-se a lixar. O Pinhal Interior e o Pinhal de Leiria são uma bomba relógio. Vão voltar a acontecer grandes incêndios. Nos próximos 10 anos, basta a biomassa aumentar e, a seguir, vir um ano de seca e o cenário repete-se. Se a onda de calor que recentemente atingiu o centro da Europa aqui tivesse chegado, haveria as condições ideais para um cenário igual ao de 2017.
Quais são os mecanismos que referes?
São mecanismos fortíssimos e planificados. Nada disto acontece por acaso. Estou a falar das empresas produtoras de papel e celulose, como a Navigator ou a Altri, que têm quadros que fazem, permanentemente lobby e, outras vezes, estão no próprio poder político. Os quadros da Navigator, da Altri e da indústria das celuloses estão dentro do Governo, quer sendo ministros, secretários de Estado, chefes de departamento…
Mas, o sector em 2018 gerou lucros líquidos de mais de dois mil milhões de euros…
Falta subtrair a estes lucros o custo para o País, suportados pelos contribuintes, com prevenção e combate aos incêndios, protecção das populações e destruição de bens pessoais e empresas? Falta. Este é um sector altamente lucrativo, mas as contas dessas empresas são, como acontece com outros negócios, estritamente aquilo a que lhes diz respeito internamente. Elas têm cerca de 300 mil hectares, com plantações próprias, que, dizem, ardem menos do que as outras. E até é verdade, mas por um motivo simples. Elas têm corpos profissionais de bombeiros-sapadores e processos de limpeza permanentes nessas plantações. O problema? É que eles abastecem-se não apenas dessas áreas próprias, mas também dos restantes 700 mil hectares de eucalipto que estão plantados no resto do território e não têm quaisquer gestão ou limpeza.
O eucalipto cresce rápido, produz oxigénio e matéria-prima importante e dá lucro fácil. Não é uma árvore “má”…
Em si, não tem nada de mal. Porém, é altamente competitiva e exclui com facilidade a existência de outras plantas à sua volta, especialmente a floresta autóctone resiliente ao fogo. Esses dois factos, associados ao clima em mutação para condições extremas, são muito desvantajosos para Portugal. O coberto florestal, para ser estável, precisa de uma combinação de várias espécies vegetais e de micro-organismos. E o eucalipto garante que isso não existe. É um deserto verde. As bactérias no nosso território têm enorme dificuldade em digerir as suas folhas e casca, que caiem ao chão, promovendo a acumulação de carga térmica pronta a arder e produz óleos inflamáveis e tóxicos, que aumentam a sua perigosidade no caso de incêndio. Além disso, destrói a água que há no solo. Não pode crescer rapidamente, se não for voraz a retirar nutrientes e água do chão. Neste momento, é impossível erradicar o eucalipto de Portugal. É um resistente e sobrevivente. É uma árvore admirável.
O presidente da Associação das Indústrias de Madeira e Mobiliário de Portugal, Vítor Poças, afirma que metade do eucalipto existente em Portugal seria suficiente, se fosse apurado e plantado em áreas que lhe são propícias…
As multinacionais do sector vendem papel para o Mundo inteiro. Portugal é um sítio perto do centro da Europa, onde os terrenos valem pouco, paga-se pouco pelas árvores, não se paga nada pela destruição causada e conseguimos enviar papel baratinho para a Europa toda. A Navigator é uma grande multinacional portuguesa? É. Tem Governos sucessivos que lhe estendem a passadeira para usufruir de mais de 10 por cento do território nacional. Não paga nenhuma das consequências ambientais do que faz. Só tem benefícios.
Espécies como o sobreiro seriam mais interessantes?
Coexiste com outras espécies, dentro de um ecossistema complexo que se chama montado. Seguramente, o sobreiro é muito mais rentável, por árvore, do que o eucalipto. Ambientalmente e em termos de estabilidade biológica dos terrenos, é incomparavelmente mais favorável para Portugal. É resistente ao fogo, mas cresce mais lentamente. Temos de pensar o que queremos. A rentabilidade económica é um processo mediado pelo Estado e são os Estados que criam as condições para os mercados funcionarem. Muito do valor dado ao eucalipto veio de incentivos públicos, nos anos 80 e 90, quando condições legislativas para a proliferação da espécie e incentivos às indústrias construíram a ideia de rentabilidade da indústria da pasta de papel. É um processo que pode ser feito – bem feito – com outras espécies mais interessantes.
Porém, não é feito. Não há vontade política para organizar o território?
Há pressupostos extremamente liberais de que as pessoas têm legitimidade para plantar o que quiserem nos seus terrenos. Mas, tentem cultivar cânhamo, marijuana, papoila para produzir heroína ou coca e verão que é proibido. A proibição e o favorecimento, são apenas processos administrativos. Falta vontade de aplicar um dos vários excelentes planos de organização territorial, com mapas pormenorizados que indicam as melhores espécies florestais e agro-alimentares a serem plantadas.
Há um mapa excelente do Instituto Superior de Agronomia, da arquitecta paisagística Manuela Raposo de Magalhães, que diz, ao metro quadrado, as espécies que fazem sentido em cada terreno. Temos de pensar a floresta para agora e para o futuro, para acabarmos com os incêndios catastróficos, a rentabilidade e as alterações climáticas. Se tivermos uma floresta estabilizada, conseguiremos ter menos fogo, baixar a temperatura, manter níveis de humidade e lutar contra as secas. As celuloses dão eucaliptos para as pessoas plantarem. Dão! De graça. E facilitam aconselhamento técnico. Muitos proprietários são ausentes e vêem ali uma vantagem económica.
Não é uma galinha dos ovos de ouro, o eucalipto é uma galinha dos ovos de cobra. Se se cumprir a lei, se se limpar os terrenos, se se arrancarem e replantarem novas árvores ao fim dos três cortes que o eucalipto permite, não se ganha qualquer dinheiro. Gasta-se mais. O êxodo rural e abandono de cerca de 20 por cento do território obriga que haja ou uma reorganização da propriedade pelo Estado ou alienando a privados. Infelizmente, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas não tem meios nem pessoas e o aparelho do Estado, na área do ambiente e floresta é uma vergonha total. O êxodo rural não foi apenas das pessoas, o Estado também abandonou o interior: não há hospitais, nem tribunais, nem esquadras, nem escolas… A ligação que estas pessoas têm com o Estado é apenas pagar impostos e como é já tudo online e automático, provavelmente, nem isso.
E os incendiários? Há assim tantos ou o público confunde a expressão usada nos relatórios oficiais “fogo com origem na acção humana” com “fogo criminoso”?
A origem humana dos fogos são as indústrias, os caminhos-de-ferro e as faíscas, as estradas e os cigarros, as linhas de alta tensão que tocam em árvores, como terá acontecido em Pedrógão Grande. Toda a interacção humana que se cruze com o ambiente florestal, pode resultar em fogos acidentais e de “origem humana”.
Em Portugal, existe uma percentagem de fogo posto, mas está em linha com o resto da Europa. Não é o crime que explica a quantidade de incêndios que cá existem! Há três factores fundamentais, como refiro no meu livro: o clima em profunda mutação, mais quente e com mais condições para a biomassa arder, um nível elevadíssimo de abandono das propriedades e as monoculturas de eucalipto e pinheiro. Imputamos responsabilidades a pessoas, quando a responsabilidade é sistémica. Não digo que não possam existir esquemas planeados para beneficiar interesses. Há, por exemplo, quem queira um terreno barato e, para o comprar, desvaloriza-o lançando fogo.
Jacinto Silva Duro é jornalista do JORNAL DE LEIRIA.
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