A ascensão de Kaisei, o primeiro brasileiro na elite do sumô japonês

Ricardo Sugano impulsiona as pernas e, sem dó, choca o tronco contra o mongol Terunofuji Haruo, uma massa de 1,91 m e 178 kg de espremer homens. O clima é tenso. Mais experiente, Haruo é quase um chefão de videogame: com o rosto fechado e olhos furiosos, ostenta um rabo de cavalo que, amarrado, parece a decoração de uma estátua de mármore bruto. Ricardo é seu oposto. Tem postura mais relaxada, um olhar inocente e, enquanto trava a luta corporal, usa de suas maiores medidas – 1,94 m e 186 kg – para conter o inimigo.

Depois de poucos segundo de combate, num abraço que aparenta tranquilidade, o brasileiro imobiliza o mongol e o empurra para fora da arena. Ouve-se aplausos. O combate está vencido, mas Ricardo não comemora, nem acena. Ele apenas se abaixa, flexiona os joelhos, sinaliza sobre um objeto apresentado pelo árbitro e deixa o local.

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Quem vê a cena não imagina que Ricardo acaba de manter feito inédito no esporte: é, aos 29 anos, o primeiro latino-americano a chegar à elite do sumo japonês, o Sanyaku, um panteão de 40 lutadores, com salários que podem chegar a US$ 28 mil por mês. Estar nesse hall, como é de se imaginar, exige muito esforço. Além dos treinos incessantes, trata-se de um mundo formal e de regras restritas onde cada um dos esportistas é tratado – e precisa se portar como – um humilde semideus.


Pirâmide que mostra a hierarquia do sumô no Japão. Imagem: Reprodução

No país dos gigantes que digladiam em arenas de areia, Ricardo é conhecido como Kaisei Ichirō e, dentro do grupo de elite, obteve em abril o ranking de Komusubi do Leste e, já em julho, subiu para Sekiwaki, o terceiro maior de toda hierarquia. Acima há somente as posições de Ozeki e Yokozuna, o grau máximo que um rikishi, como são chamados os lutadores ranqueados de sumô, pode alcançar.

Kaisei é dono de um corpo que destoa muito do seu rosto juvenil; seus braços são roliços e grande como enormes rolos de preparar macarrões. Possui costas fortes e largas e o abdômen saliente. Abaixo, suas pernas e coxas não têm definição muscular de um fisiculturista, mas se nota que a batata da perna parece querer tomar vida própria. Quando me deparei com sua figura na internet, me perguntei como eu mesmo, oriundo do wrestling, me sairia no sumô com meus 1,80m e 74kg. Lembrei do meu antigo técnico Edson Kudo, também filho da colônia, que me ensinou técnicas e a respeitar o sumô.

Também me inquietei e quis saber como alguém do meu país conseguiu tal feito, visto que a modalidade não têm condições estimuladoras por aqui. Basta ver os noticiários em que tudo se resume a futebol. Atletas de esportes pouco populares são vistos como excentricidades ou aparecem na última matéria do telejornal, com uma trilha sonora piegas e brega, para entregar audiência para a novela.

O início em SP e as lições de humildade

Numa manhã de sábado, Itiro Sugano, junto a sua esposa Adriana, entre um gole de café e outro, me conta como se deu a saída do filho Ricardo de casa e seu crescimento no exterior. Meus olhos percorrem a sala, vejo figuras de animés e mangás em resina e plástico. O dono do lar me conta que sua própria paixão é sua coleção de robôs. Alguns deles Kaisei lhe mandou. Adriana destaca uma coleção de pratos de porcelana, com temática japonesa, também presenteados pelo enteado. O sofá tem uma grande almofada com o rosto de Darth Vader, que parece me encarar. O pai comenta que o universo de George Lucas é algo que une ao filho Ricardo.

O início de Kaisei nos dojos – nome dado a arena de areia – se deu pela sugestão do amigo da família Álvaro Kudo, ao notar o biótipo do jovem que não se interessava pelas peladas do pai Luis Itiro Sugano, no clube da Eletropaulo. O adolescente passou a frequentar os dojos de Santo Amaro e Bom Retiro, em São Paulo. Era o único a treinar duas vezes por semana. Aos 17 anos, quando iniciou, medindo 1,80m e quase 100kgs, já chamava atenção. O ex-lutador do circuito japonês Fernando Yoshinobu Kuroda, lá conhecido como “Wakaazuma”, ressalta que teve de treiná-lo em técnicas para não depender apenas do porte. Foi por isso, diz, que Ricardo se sagrou campeão nacional e disputou o mundial de amadores no país de seus ancestrais.

Ricardo no começo de sua carreira. Foto: Arquivo pessoal

Itiro e Adriana Sugano lembram de Kaisei como um garoto tímido e com grande senso de justiça. “Na escola ele nunca praticou bullying. Na verdade, com seu tamanho defendia os outros”, recorda, orgulhoso, o pai. Os treinadores também ressaltam a humildade do sumotori – como são chamados todos lutadores de sumô. Kuroda, porém, recorda de uma história em que Ricardo se empolgou além da conta. No decorrer de uma sessão de treino, o garoto lhe apontou o dedo e disse “agora, vem você!”. Kuroda deu uma ligeira risada e soltou: “tudo bem”. Lutou de maneira tranquila e superou o novato, que ainda o chamou para mais uma rodada.

“Então decidi mostrar para eles um pouquinho do potencial de uma cabeçada profissional, bati de cabeça com ele que voou até a parede… Já pesava 160 kg. Foi um tanto engraçado porque perguntei se teria mais uma”. Foi apenas neste episódio que Kuroda lembra de seu pupilo ter mostrado falta de humildade. A lição parece ter sido aprendida e incorporada.

O desenvolvimento mira o Japão

Após vencer o campeonato brasileiro, os olhos inocentes de Kaisei passaram a ter um foco: sua meta era ser um yokozuna no Japão. O treinador Fernando Kuroda, que havia lutado na terra do sol nascente, apontava as dificuldades de se adaptar à formalidade do sumô profissional com suas tradições. “Várias vezes perguntei a ele: ‘por que você quer ir?’”. Em uma sessão de treino puxou o pupilo ao máximo ao ponto de arrastá-lo no chão e o avisou que esta seria sua vida diária. A resposta veio com convicção: “Não vejo meu futuro aqui no Brasil.”

Ricardo deixou sua terra com o título de campeão brasileiro e uma carta de outro dos seus professores, Nobuo Kuroda, pai de Fernando, apresentou-lhe ao seu primo Tomozuna Oyakata, senhor do dojo Tomozuna Beya em Tóquio, no Japão. O nome que ostenta hoje foi dado pelo velho Kuroda e informado na carta de recomendação. Kai é o prefixo utilizado pelos lutadores do dojo e Sei significa “São Paulo” no alfabeto Kanji; Ichiro era o sobrenome paterno e, coincidentemente, homônimo do popular jogador de baseball do Japão Ichirō Suzuki. Em fotos de um livro que conta a história do sumô brasileiro vejo fotos de Kaisei Ichirō com o cabelo curto e espetado; as espinhas vermelhas se destacavam nas suas bochechas e testas claras.


Ricardo, à direita, em sua atual forma. Foto: Arquivo pessoal

Quando Luis Itiro e Adriana Sugano começam a me contar sobre a chegada de Ricardo a Tóquio, começo a imaginá-lo pelas noites da metrópole com os letreiros iluminando sua pele lisa, como se fosse um personagem do animé Akira (1988) ou da ficção Blade Runner (1982), um clima mais formal e pessoas ainda mais frias que em São Paulo.

Assim que chegam na segunda frase, porém, meu exercício de imaginação é interrompido. Na verdade, Ricardo chegou na condição de novato, um sumotori vindo do Brasil em busca de seu espaço. Além de Kuroda, outros dois brasileiros chegaram ao posto de juryo: Luis Gō Ikemori vulgo “Ryūkō Gō ” e Wander Ramos lá batizado “Kuniazuma Hajime”.Kaisei passava a maior parte do tempo frequentando treinamentos e fazendo tarefas da casa, além de atender aos mais experientes. O conselho do pai foi se enturmar sem “forçar a barra”, por causa da formalidade dos japoneses e, principalmente, respeitar os mais novos que chegavam por volta dos 14 anos e não explorá-los. Ele chegou ao Japão aos 18 anos em 2006.

Entre os profissionais, o esquema de treinos se dá de 4 à 5 horas, por 6 dias da semana realizando, no mínimo, 30 lutas por dia ou até mesmo 80. “Se o mestre falar ‘vamos mais uma’, a gente vai”, aponta Kuroda. A vida de Kaisei foi mais fácil por ter no dojo o paraense Eiji Nagahama, conhecido no sumô como Kaishin, um lutador de sorriso fácil e que hoje trabalha num restaurante da cidade. O próprio Nagahama partiu com histórias de que teria de limpar todo o dojo e apanharia todos os dias. “Mas não foi assim e todos foram legais comigo”, recorda Nagahama.

A chegada de Nagahama foi possível após ser campeão brasileiro de sumô e pelo empenho do seu seu tio, vindo da cidade de Aomori, a mesma de Oyakata, mestre do dojo. Este o perguntou, por carta, se havia uma vaga para estrangeiros. A ida não foi tão rápida, já que havia um americano ocupando a cota de não-nativos. Nagahama esperou a aposentadoria para então ingressar, e sua naturalização permitiu a entrada de Kaisei.

Endurecendo a casca de dragão

Deslocamento no ombro, lesões e a necessidade de aprimorar suas técnicas foram os obstáculos enfrentados por Kaisei em seu início, além da falta de intimidade com o idioma – só havia praticado um pouco com a avó Dona Masako. Porém, o porte físico e a enorme força impressionaram. Após dois anos de trabalho, seus movimentos ficaram ainda mais potentes. Não perdia mais nas sessões de treinamento e alcançou o nível de makushita, três antes do sanyaku, ao qual pertence atualmente.

Itiro Sugano lembra que, desde que o filho foi, não lhe pediu nada em nenhum momento. O esquema lá, conta o pai, é muito restrito. Assim que subiu de nível Kaisei podia deixar o dojo, mas sempre acompanhado de outras pessoas. Quando vai para eventos, há todo um grupo de seguranças o monitorando. Adriana Sugano lembra de quando o lutador melhorou na vida e pôde comprar um celular. A partir daí, a comunicação ficou mais frequente. Ela conta que o filho só voltou ao Brasil anos atrás, quando sua avó Masako faleceu. Passou só três dias no país que nasceu.


Ricardo em 2010. Foto: Arquivo pessoal

Em 2011, na sua estreia na divisão makuuchi, que inicia com os maegashiras – estes acima dos juryos –, conseguiu seis vitórias seguidas. Foi o primeiro novato a obter isso desde 1991. Conquistou mais duas vitórias a seguir. Tornou-se o primeiro a obter tal feito desde 1980; posteriormente, conseguiu a nona igualando-se ao lendário yokozuna Hakuhō Shō. O desempenho lhe rendeu o prêmio “Espírito de Lutador” (Fighting Spirit).

Em 2015, depois das nove vitórias em sequência, o ano de Kaisei não foi dos mais brilhantes. No torneio de julho iniciou com uma vitória e quatro derrotas. Depois reverteu o placar com mais cinco vitórias, mas, por fim, perdeu as outras cinco seguintes e finalizou com um placar de 6-9.

No ano seguinte sofreu mais derrotas e, quando estava no fio da navalha para voltar à posição de juryo, se recuperou com um 10 a 5. Já no torneio de julho, após onze vitórias – não consecutivas –, faturou o seu segundo prêmio “Espírito de Luta”.

Quando conversei com Itiro Sugano e sua companheira Adriana, na manhã de sábado, em maio, estavam ansiosos pela próxima luta de Kaisei. Os combates passam por volta das 4 da manhã no Brasil pela internet. Kaisei estava com 7 vitórias e 7 derrotas. Mais um revés significaria sua demoção de posto.

A vitória veio sobre Tochiouzan e, com ela, a renovação da esperança de mais ascensão no tradicional e sofrido mundo do sumô. Para Kuroda este foi um dos resultados mais importantes de Kaisei. Lutar quando se está com 7 a 7 é uma situação muito delicada e parecida com quando está para subir de divisão, outro momento sensível. “Ou você vai para o céu ou fica no inferno!”, relata Kuroda. Antes destes combates é comum perder-se o sono, e sentir a tensão no suor frio, descendo pela testa e contornando os traços faciais, enquanto caminham para a arena.

O sucesso foi obtido com suas técnicas favoritas. No início do combate Kaisei se choca de peito com o rival, movimento que é favorecido pelo seu porte físico. Em seguida, a mão direita de Kaisei busca o mawashi (faixa) do rival por trás, enquanto sua esquerda segura a outra parte da peça, na frente. Imobiliza o braço direito do oponente, que começa a se debater para sair do abraço. Kaisei o empurra, lateralmente, até que o pé esquerdo do adversário pisa fora do dohyō e, assim, o combate é vencido. Estes movimentos foram treinados de maneira extenuante com Kuroda e também com Wagner Yoshihiro Higuchi e os antigos mestres do dojo de Santo Amaro. É como assistir aqueles combates de grandes predadores no Animal Planet.

A colônia e seus filhos

Quando saio da estação de metrô Liberdade, na quarta-feira, véspera do feriado de Corpus Christi, cheiros típicos de temperos e luzes dos letreiros tomam meus sentidos. O bairro parece saído de um filme de Yasujiro Ozu (1903-1963) se mescla com as estruturas da casas mais antigas, pré-chegada de japoneses, outras placas e restaurantes atestam que também serve de base para coreanos e chineses.

Ao chegar ao bar Kintaro percebo uma aglomeração na porta do pequeno estabelecimento, logo abaixo do toldo vermelho com letras brancas. Peço licença para uma senhora pequena, de cabelos bem escuros e avental branco, que atende os clientes, e entro, um tanto espremido, e consigo um banco no balcão. Do ventre desta senhora saíram os irmãos Willian Takahiro e Wagner Yoshihiro Higuchi, ambos alguns centímetros a mais que eu, mas parecem muito maiores, dada a estrutura física. São aqueles gordos que não são flácidos mas fortes, com suas mãos parecendo tijolos de concreto.

O Kintaro é um ambiente singelo e ao mesmo tempo aconchegante. Muitos passam ali para o happy hour ou para o esquenta da noitada. O espaço é decorado com pequenos lutadores de sumô de plástico e outros materiais, além de souvenirs japoneses. Um cartaz que, além de avisar que não vendem fiado, aponta que também não vendem pratos manjados da culinária japonesa como sushi, sashimi e yakisoba. Uma chance para que eu conheça uma culinária antiga e saia da zona de conforto. Kuroda e Takahiro me explicam que, por cozinhar muito, é comum que lutadores de sumô migrem para a área de alimentação. Diferentemente de seus mestres, o sonho de Kaisei é ter sua própria academia, no Japão, como me revelou seu pai.

Ricardo, de camiseta preta, ao centro, com fãs e lutadores mais novos. Foto: Arquivo pessoal

Fernando Yoshinubo Kuroda, e os irmãos Willian Takahiro e Wagner Yoshihiro Higuchi são alguns dos exemplos de lutadores de sumô do Brasil, que conheceram o dojo logo aos primeiros passos. Willian Takahiro me revela que hoje “quase 70% dos praticantes de sumô no Brasil não têm nenhuma ascendência oriental”, fenômeno que já observa há anos e vê com certo sabor agridoce. O mesmo ocorre com os principais fãs de produtos de entretenimentos vindos da ilha: são mais gaijins, não descendentes, do que nikkeis, descendentes nascidos fora do Japão ou imigrantes.

Enquanto atende seus clientes, Higuchi me explica que a situação do esporte brasileiro é preocupante por não haver patrocínio para grandes talentos que sejam de esportes de pouca difusão, enquanto há empresas públicas como a Caixa divulgando suas marcas em times de futebol. Takahiro sente um desconforto perceptível pela sua expressão facial e pela mudança do tom de voz. Ele relata “aqui o atleta é visto como vagabundo, como um desocupado. Esporte é só tratado como algo recreativo”. Para o lutador de sumô, do circuito nacional e mudanças na cultura brasileira esportiva poderiam ajudar na modalidade e outras.

O sumotori quer ver benefícios alcançando outros. Lembra da atleta Laís Souza que recebeu críticas por sua aposentadoria vitalícia após sofrer uma lesão que a deixou tetraplégica, enquanto treinava para representar a pátria nos Jogos de Inverno. Higuchi também falou de muitos para-atletas anônimos que recebem um auxílio de patrocinadores que não é “nem de 12 meses ao ano, mas apenas 10”. Sobre a inserção do japonês na sociedade, sente um pouco de tristeza ao constatar que há muitos nikkeis, mas o país não atingiu um nível de desenvolvimento próximo ao japonês.

O ginásio do Bom Retiro, hoje além do sumô, tem um campo de baseball e outro de gateball, um esporte entre equipes de taco que lembra o críquete criado no Japão após a 2ª Guerra. Em volta do espaço foi construído um parque de esportes radicais. Com toda movimentação e recentes matérias na imprensa sobre sumô no Brasil, aumentou o interesse pela modalidade. Entretanto, diferentemente dos demais esportes de luta e outras artes marciais, o sumô é visto como um patrimônio japonês e seus técnicos não cobram para ensiná-lo. Alguns espaços aceitam ajuda de custo e não há profissionais dedicados integralmente.

Em minha última conversa com Kuroda pergunto se há algum jovem de talento na nova safra. Ele diz o nome Rui de Sá, do Paraná, que não possui sangue japonês. “Ensinei as mesmas coisas que passei ao Ricardo, jeito de pegar a faixa e empurrar”, conta. Anoto o nome e despeço-me de todos com a intenção de voltar para este mundo para saber mais sobre Rui. Ou, quem sabe, assistir a uma apresentação de Kaisei por aqui.

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