TikTok

A máfia italiana está no TikTok

O que nos dá um vislumbre do mundo em mutação do crime organizado.
Mafia TikTok
Fotos: Pixabaymartaposemuckel. Getty Images/Wattanaphob Kappago/ EyeEm. Adobe Stock/ink drop Colagem VICE.

Em maio deste ano, um vídeo com a música de Tommy Riccio “Sì Sto’ Carcerato” (“Sim, Estou Preso”) chamou a atenção da comunidade italiana no TikTok. A letra descreve o sofrimento de estar encarcerado, e a música é no estilo “neomelódico” marca registrada de Nápoles – um gênero musical dramático que já foi acusado de glorificar o crime. Mas o que fez o vídeo se destacar é que ele foi filmado dentro de uma prisão, mais tarde identificada pela polícia penitenciária como o bloco de segurança máxima da prisão Avellino, a 50 quilômetros de Nápoles.

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A Avellino abriga muitos criminosos parte da Camorra, um ramo da máfia da região de Campania e sua capital, Nápoles. Usando um celular que foi contrabandeado para sua cela, o TikTok do detento não-identificado viralizou e foi tirado do ar, mas ainda está no YouTube. Foi mais um caso de jovens camorristi usando o TikTok para mostrar o estilo de vida da máfia e se tornar conhecidos dos mafiosos de alto escalão – quase um teste de elenco para posições de poder e liderança.

Por alguns meses, a VICE Itália acompanhou as hashtags, músicas e usuários relacionados com um pico dessas postagens. Descobrimos que jovens mafiosos estão cada vez mais preferindo o TikTok ao Facebook, e os membros mais velhos dos clãs estão seguindo o exemplo.

A presença da Camorra no TikTok oferece uma janela para mudanças maiores na estrutura da máfia. Deixando claro, a Camorra não tem uma lista de membros e não é possível provar que esses jovens no TikTok estão realmente envolvidos. Parcialmente porque no passado, ser um camorrista era como um direito de nascença, com novos recrutas vindo de algumas famílias principais. Mas hoje, aspirantes a mafiosos estão rapidamente ganhando medo e respeito com amostras de violência nas ruas. Esses jovens gangsteres também postam sobre armas e os espólios da vida no crime nas redes sociais, desviando da tendência tradicional da máfia de evitar os holofotes. 

A Camorra é uma organização criminosa especializada em tráfico de drogas e humano. Ela também fez dinheiro com contratos ilegais de construção e coleta de lixo em Campania. Organizado em pequenos grupos hierárquicos conhecidos como clãs, o grupo é tradicionalmente liderado por famílias que controlam territórios específicos, com os clãs e as áreas controladas levando os sobrenomes dos chefões. Geralmente formados lentamente com o tempo, os clãs da Camorra “se estabelecem quando uma família ganha uma posição de autoridade em certos setores do tráfico”, disse o professor Luciano Brancaccio num livro em italiano sobre o assunto. Para continuar no controle, ele explica que as famílias precisam gerenciar a violência “racionalmente”, minimizando mortes e conflitos violentos para evitar que os moradores locais se voltem contra elas.

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Desde o começo dos anos 2000, prisões de líderes mais velhos dos clãs aumentaram, levando garotos e jovens adultos a tomar o lugar deles. Esse jovens mafiosos se tornaram conhecidos por atos aleatórios de violência. Um relatório de 2019 da Direzione Investigativa Antimafia chama essas gangues de “academia Camorra”, por funcionar basicamente como treinamento e processo seletivo para futuros líderes. O relatório também destacou que muitos desses garotos não têm laços de família com a máfia, mas “agem com a mesma violência”.

Muitos dos vídeos dos jovens Camorristi no TikTok os mostram se gabando sobre armas, tatuagens, carros, motos e outros itens de luxo com trilha sonora de músicas neomelódicas ou traplódicas (uma fusão de trap e neomelódico) em dialetos locais. Uma das músicas mais populares, “Paradies Rmx” de Bl4ir, é sobre crescer num bairro barra pesada. O refrão chiclete é “Se os guardas passarem / me avise”.

Nenhum dos vídeos mostra explicitamente crimes sendo cometidos. Mas os temas, hashtags e músicas recorrentes implicam orgulho em estar filiado ao crime organizado. “Melhor morrer que trair”, diz a legenda num dos vídeos que parece ser de uma gangue de jovens camorristi. Em outro, um garoto fala sobre seu “irmão” na cadeia, escrevendo: “A prisão não vai pará-lo”, com emojis de corrente e corações pretos. A hashtag “paranza”, ou “gangue mirim”, é usada em muitos TikToks que mostram adolescentes andando de moto ou fazendo pose.

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Alguns dos emojis mais comuns deles são o de leão (um símbolo de força e agressividade), armas e homens dando as mãos como um símbolo de fraternidade. Emojis de olhos também são populares, representando o ditado napolitano “Aquele que conhece o jogo fica calado”, ou o código de silêncio seguido por membros da máfia e pessoas que moram nas áreas controladas por ela. Outros TikToks são sobre a vida dentro e fora da cadeia. Em um deles, um usuário celebra um amigo que acabou de ser solto, o descrevendo como um comandante da piazza (praça) – gíria para bocas de drogas.

O relatório de 2019 também destacou como clãs tradicionais estão tentando usar o potencial das gangues de jovens dando mais poder e território a elas, enquanto evitam qualquer violência que possa prejudicar sua imagem. Em 2015, o líder de gangue de 19 anos Emanuele Sibillo se rebelou contra o chefe da Camorra local e foi assassinado. O caso atraiu atenção negativa, e desde então o clã vem usando as redes sociais para reabilitar sua imagem, com os esforços agora focados no TikTok.

O exemplo mais descarado desse rebranding vem do clã Amato-Pagano. No começo dos anos 2000, uma guerra mafiosa explodiu no bairro de Scampia em Nápoles, um epicentro do tráfico de drogas da Itália. O clã Amato-Pagano supostamente traiu o clã Di Lauro e se tornou conhecido como “os separatistas”.

Desde então eles se repaginaram como “Gli Spagnoli” (os espanhóis), um apelido que vem do líder do clã Raffaele Amato, que passou um tempo como fugitivo na Costa del Sol da Espanha. Muitos dos vídeos que encontramos eram marcados com os emojis da bandeira espanhola e de coroa. Em um deles, uma procissão de scooters acelera pelas ruas em um dos territórios históricos do clã nos subúrbios de Nápoles.

Marcello Ravveduto, professor de História Pública Digital na Universidade de Salerno, disse que a máfia usar o TikTok para espalhar sua mensagem faz sentido. “Muitas vezes esquecemos que o crime organizado e as redes sociais têm um coisa importante em comum: uma rede de contatos”, ele disse. E enquanto a visibilidade da Camorra no TikTok cresce, também cresce o número de recrutas.

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