Na infância, era complicado fazer amigos. O jeito introspectivo e feminino virava alvo fácil para piadinhas e bullying pesado. “Isso me fez desde muito cedo passar meu tempo sozinha entre os quadrinhos da Marvel, muitos lápis e papéis”, conta a historiadora e cartunista Luiza Lemos, mulher transexual criadora da HQ online Transistorizada, lançada no Facebook em setembro deste ano.
A publicação retrata a história da autora, que foi designada homem ao nascer. Depois de sair do armário (literalmente) ainda de barba, a personagem cavalga um unicórnio cor de rosa em direção à liberdade, adaptada para a casa da mulher de seu melhor amigo, que a ajuda a debutar num universo de maquiagens, bijuterias, saias e vestidos. “Estou radiante. É como se eu estivesse me vendo pela primeira vez”, relata a Transistorizada quando encara a si mesma no espelho após a transição.
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Carioca, foi ainda criança que Luiza começou a fazer os primeiros rabiscos. Mas, depois de enfrentar o mundo enquanto mulher trans, uma seca criativa pairou sobre sua imaginação. Seus personagens masculinos já não a satisfaziam mais. Daí veio o estalo. “Decidi expor a minha própria história do jeito que sabia fazer, em quadrinhos.”
Com licença poética, a personagem vivencia um universo regado por nuances lúdicas. Os fatos narrados são coisas que realmente aconteceram com Luiza, mas não exatamente da maneira descrita. “Eu nunca cavalguei um unicórnio cor de rosa pra ir na casa dos meus amigos, mas ela, sim”, brinca. O próprio armário na qual ela se tranca com medo de assumir sua identidade de gênero funciona como metáfora.
Não é exatamente a primeira vez que a história de uma mulher trans vira quadrinhos no Brasil. Sua xará, a professora de filosofia Luiza Coopieters, que virou notícia em 2015 quando foi demitida da unidade escolar em que lecionava assim que assumiu sua nova identidade de gênero, virou tema do quadrinho online Minha professora é trans. E daí?, com texto de Julia Zanolli e arte de Alexandre de Maio. O principal ponto de diferença entre as histórias é que Transistorizada é autobiográfica.
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Durante a produção, Luiza navega entre o analógico e o digital: começa com o storyboard no papel e depois utiliza um software livre. Sua ideia é levar o projeto para pessoas que desconhecem ou não entendem o universo das populações T (transgêneros, transexuais e travestis). No começo, ela publicava as tiras em grupos LGBT do Facebook e recebia muitos elogios. Já em outros grupos nerds e de apaixonados por HQs, a coisa mudou. “O que posso dizer é que não tem sido tão amorzinho (risos). Fui, inclusive, banida de um grupo após publicar uma tira que falava sobre transgeneridade e lesbianismo”, dispara. Apesar disso, o retorno dos leitores tem sido positivo. “Tenho ganhado algumas curtidas e compartilhamentos, e o mais interessante, perguntas sobre a questão trans — o que achei muito legal.”
Para a autora, o foco é levantar o debate e criar visibilidade, palavra citada em muitos momentos da entrevista. “Por mais que se fale na questão trans no Brasil, 90% das travestis e mulheres trans do país ainda se encontram na prostituição”, pontua. “Precisamos ocupar os espaços que não são considerados nossos; precisamos estar nas faculdades, nas empresas, no comércio, produzindo quadrinhos, música, plantas de edifícios, livros.”
Por enquanto, a publicação acontece principalmente na página oficial da Transistorizada no Facebook e também no blog. No futuro, o plano é publicar uma versão impressa. “A Transistorizada tem me dado muita alegria, assim como o próprio processo de transição”, detalha a cartunista, que se despede citando uma música da Mc Xuxu: “Um beijo pra quem é de longe, um beijo pra quem é daqui, um beijo pra quem é do bem, um beijo pras travestis”.