A vida depois que você trai os Hells Angels

Faz uma década que Dave Atwell não desfaz, de verdade, suas malas.

Desde que o ex-sargento de armas dos Hells Angels do centro de Toronto entregou seu clube à polícia, ele nunca mais se sentiu realmente em casa. É uma reviravolta triste, que as únicas pessoas com quem Atwell consegue realmente conversar agora são aquelas que antes ele evitava a todo custo — jornalistas e policiais.

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“Cara, só de poder falar sobre isso assim significa muito para mim”, Atwell me disse depois ligar para o meu celular de um número bloqueado.

Isso é uma coisa que poucas pessoas percebem sobre o programa de proteção à testemunha: isso anda de braços dados com uma solidão quase permanente.

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Atwell está no programa depois de que se tornou informante da polícia dentro do Hells Angels no final dos anos 2000 — ele era membro do mais alto escalão do clube. Atwell e o jornalista veterano Jerry Langston acabaram de lançar um livro, The Hard Way Out, que destaca suas experiências no clube. No livro, ele fala sobre vender cocaína, ser promovido de uma gangue (Para-Dice Riders) para os Hells Angels, se tornar um membro em tempo integral, e como e por que ele trocou de lado.

Por sete anos, Atwell foi o sargento de armas do ramo de Toronto do clube, o que significa dizer que ele era responsável pela disciplina e o homem que se certificava de que tudo estava em ordem. Ele também era figura central na movimentação de cocaína do HA em Toronto. Quando o respeitado Angel recebeu acusações sobre vender drogas, decidiu que queria sair da gangue. O que não era uma missão tão simples assim. O grupo esperava que ele cumprisse pena e depois voltasse alegremente ao trabalho. Mas, Atwell começou a ver o clube e seus irmãos de um jeito diferente: os motoqueiros e os Hells Angels não eram uma família, eles estavam nessa “por si mesmos”.

“Eu estava preso, não por grades, mas pelas limitações que o clube colocava sobre mim e [na] minha vida”, diz uma passagem do livro.

Então Atwell aceitou um acordo que permitia que ele escapasse do mata-leão que o clube tinha sobre sua vida. Especialistas em segurança gravaram em segredo o que estava acontecendo no ramo dele do Hells Angels, o que foi fundamental para realizar uma grande apreensão de drogas. A operação acabou depois de 18 meses, quando o HA sentiu cheiro de x-9. Como estamos falando do Hells Angels, é claro que membros do grupo confrontaram Atwell e seus contatos acharam que era perigoso demais continuar.

“Eu estava preso, não por grades, mas pelas limitações que o clube colocava sobre mim e minha vida.”

As informações que Atwell deu à polícia levaram a 31 pessoas com laços com os Hells Angels, 169 acusações (nem todas resultando em condenações) e apreensão de US$3 milhões em drogas, junto com US$500 mil em dinheiro e outro meio milhão em propriedades. Julgamento após julgamento, por anos, Atwell teve que comparecer ao tribunal e olhar seus ex-irmãos nos olhos durante o dia, e se acostumar com sua vida no programa de proteção à testemunha à noite.

Do momento em que trocou de lado, a pessoa que Dave Atwell foi por quase 50 anos estava morta. Dali em diante, a transição para o programa de proteção à testemunha não seria fácil — sua vida inteira tinha sido construída ao redor dos patches que ele usava em seu colete, e agora eles tinham sido arrancados.

Atwell, claro, não pode falar livremente sobre sua situação atual ou mesmo o processo necessário para começar sua “nova vida”. O que ele disse é que isso veio com uma quantidade inesperada de formulários e papelada, e muita espera. Os policiais no programa estão ali para proteger a testemunha em questão, mas também se certificar de que o programa não seja responsável por testemunhas que estraguem tudo ou reincidam no erro. Atwell disse que “é estranho falar sobre proteção à testemunha porque tem muita coisa interessante nisso, mas falar seria prejudicial para minha segurança”. Uma coisa que ele disse sobre o programa é que quando entra, você perde qualquer domínio sobre sua vida.

“Os caras da proteção à testemunha não te pedem nada, eles mandam”, explicou Atwell. “Você não tem que dar sua opinião. Eles dizem ‘Se você quer que a gente te proteja, cale a boca e ouça. Suas opiniões te colocaram nessa, então pare de pensar — nós fazemos isso por você”.

“É uma vida solitária, estar sempre mudando e não ter qualquer estabilidade.”

“Suas opiniões te colocaram nessa, então pare de pensar — nós fazemos isso por você.”

Na nossa conversa, Atwell não podia falar sobre sua rotina ou nada do tipo. Mas falou sobre a solidão intensa que faz parte de sua situação. Na vida pessoal, o ex-membro dos HA tem que mentir para todo mundo que conhece ou não revelar nada de seu passado a ninguém.

“O que você pode fazer? Só posso imaginar como é me aproximar de alguém”, me disse Atwell. “Se alguém se importa com outra pessoa, seja um amigo, um relacionamento platônico ou uma pessoa íntima do sexo oposto, você só pode ir até certo ponto antes que a pessoa pergunte ‘Bom, o que aconteceu antes disso? De onde você vem?’ Não posso compartilhar nada disso com ninguém.”

“Se me importasse com alguém, eu ia querer saber essas coisas sobre a pessoa. Não porque sou intrometido, porque é uma coisa de preocupação com o outro no geral — de conhecer realmente alguém”, ele disse.

Mas além de esconder sua história pessoal de outros, há o que Atwell chama da questão “posso trazer alguém para essa vida?” Afinal de contas, o programa é pensado para proteger não só a vida da testemunha, mas a vida das pessoas próximas a ele também. Numa ironia cruel, o fato de ele se importar com alguém o obriga a nunca trazer essa pessoa para sua vida.

Então, por causa disso, Atwell vive uma existência autoimposta sem qualquer tipo de intimidade.

Atwell, claro, também tem ficha suja — em um dos muitos casos em que testemunhou, ele admitiu se encontrar com outro Angel para discutir o assassinato de um policial semanas antes de se tornar testemunha da polícia. Tendo um passado ou não, Atwell foi bem pago para trabalhar com a polícia. No total, ele recebeu US$45 mil pela ajuda.

No entanto, mesmo uma quantia dessas só pode levar uma pessoa até certo ponto, especialmente quando você tem que se mudar com frequência. Você precisa trabalhar, mas nada de maneira fixa e rotineira, você precisa mudar sua rotina — precisa ter cuidado. E você precisa fazer tudo isso sem uma origem, capacitações, sem diplomas, sem referências… e a lista continua.

“Não importa o que aconteça, você sempre se destaca na multidão ou sente que se destaca, seja verdade ou não.”

Para quem espera um trabalho e uma vida pessoal funcional, viver como testemunha é um pesadelo.

“Vamos dizer que isso vá além do julgamento e além da prisão, digamos dez anos depois do julgamento, ou mesmo 20 anos”, disse Atwell. “O que você tem? Você não tem um passado, não tem um currículo, não tem uma identidade, qualquer grupo social, você não pode falar sobre seus parentes ou amigos. Não importa o que aconteça, você sempre se destaca na multidão ou sente que se destaca, seja verdade ou não.”

E isso também vem com o medo e a paranoia de se estar no programa de proteção à testemunha. Você sabe que há um prêmio pela sua cabeça, mas não sabe se isso ainda está na mente da pessoa, ou grupo, que o colocou esse prêmio. Felizmente para Atwell, que já trabalhou com segurança, é uma pessoa mais observadora que o comum. Ele me disse que suas “ações do dia a dia giram” em torno de dois tipos de ameaça — a ameaça de alguém ativamente procurando por você e a ameaça imediata de alguém o reconhecer.

E quanto mais o tempo passa, menores são as chances de Atwell cruzar com alguém que vai reconhecê-lo, mas isso ainda está ali. Atwell sabe que as pessoas que ele traiu pessoalmente ainda podem estar de olho nele, mas que o clube, no geral, provavelmente já seguiu em frente e voltou a se focar em dinheiro.

“O clube tem coisas maiores com que se preocupar – não serem pego”, disse Atwell. “Eles pegaram a situação de eu ter me tornado um agente, aprenderam com isso, e vão tentar nunca cometer o mesmo erro.”

Ainda assim, o medo persiste.

Apesar de tudo, Atwell ainda é mais feliz agora que durante seu tempo como Angel — ele não precisa mais viver uma vida que gira ao redor do patch. Ele ainda tem alguns arrependimentos, mas sente que as decisões que tomou eram certas pela razão certa. Ainda assim, a vida nem sempre te recompensa quando você faz a escolha correta.

“A ironia dessa vida é que todos estamos procurando por um nível de conforto e aceitação — seja com hóquei, um clube ou uma mulher.”

“A ironia é que tudo que quero, nunca vou ter.”

Alguns trechos foram mudados ou removidos para não entregar a localização de Atwell.

Primeira imagem por Ralph Damman.

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Tradução: Marina Schnoor

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