Era 28 de janeiro de 1970. O artista plástico Antonio Peticov, então com 23 anos, estava com dois amigos em seu apartamento, no centro de São Paulo, quando recebeu a visita de investigadores de polícia que, ao vasculharem o armário de seu banheiro, encontraram em sua posse algumas cápsulas de cor laranja. Iniciava-se nesse momento o primeiro processo judicial por posse e tráfico de LSD do Brasil – tema da minha Tese de Doutorado em História Social, defendida em setembro de 2018 e intitulada História social do LSD: os primeiros usos medicinais e o começo da repressão.
Meu plano inicial era pesquisar o papel das drogas no cotidiano dos integrantes da contracultura no Brasil nos anos 1960 e 1970. Durante as pesquisas, descobri a existência do livro Os alucinógenos e o direito: LSD, publicado em 1972 e escrito por Geraldo Gomes, o juiz que proferiu a sentença desse caso. Na obra, em que se destaca o fato de ser esse o primeiro caso relativo à substância no país, não há detalhes dos indiciados, mas a partir dela encontrei o processo completo, com suas milhares de páginas amareladas, disponível para consulta no Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo, o que mudou os rumos do meu trabalho – que tem como fontes também reportagens publicadas na imprensa na época, entrevistas com alguns dos envolvidos e outros documentos, como os produzidos pela polícia política do DOPS.
Videos by VICE
O Brasil vivia naquele momento a fase mais dura e violenta da ditadura militar, que começou com o Golpe de 1964 e endureceu com o famigerado AI-5, de dezembro de 1968. Também a partir de 1968, o governo militar mudou a lei que proibia (algumas) drogas, fazendo com que pela primeira e única vez em nossa história a posse de drogas ilícitas para consumo pessoal tivesse a mesma pena que o seu comércio, o tráfico. Assim como o “incentivo” ou a publicização de opiniões sobre o uso de drogas proibidas, o que hoje se conhece vulgarmente como “apologia”: todas essas condutas eram passíveis de penas de um a oito anos de prisão.
A polícia brasileira não aparentava ter a guerra às drogas no centro das suas preocupações. A tortura, sim, era central.
Além de Peticov, descobri que esse processo também envolveu, e condenou, outros seis réus: Osmar Ludovico, Domingos Proietti, Gibrail D’Ávila Junior, José Gaspar Vaz Ribeiro, o australiano Barry John Holohan e o inglês John Emery, único que jamais foi detido. Houve considerável cobertura midiática, e os trâmites judiciais se deram de forma rápida: por mais que todos tenham sido condenados, no final desse ano de 1970 todos já estavam soltos – os últimos a sair foram Ludovico e Holohan, liberados em indulto de Natal.
Com bastante foco no combate das organizações armadas de esquerda, a polícia brasileira não aparentava ter a guerra às drogas no centro das suas preocupações – a não ser como fonte de renda. A tortura, sim, era central: nesse processo foi instrumento de investigação, de interrogatório de acusados e testemunhas e de acareação (checagem da veracidade dos fatos narrados pelas testemunhas), a ponto de ser possível afirmar que o caso não existiria sem esse tipo de prática.
O plano de trazer o raríssimo LSD para o Brasil
Essa história começou na verdade não com Peticov, mas com Osmar Ludovico e Barry Holohan, que se conheceram no Líbano, por volta de 1968. Ambos estavam presos em uma espécie de manicômio judicial: haviam ido ao país, separadamente, para buscar haxixe que queriam vender na Europa. Quando soltos, Ludovico voltou para São Paulo, Holohan foi para a Califórnia – o plano era trazer para cá o até então raríssimo LSD e vendê-lo para comprar cocaína, que seria levada para a Europa. Holohan, que era sócio de um cassino em Londres e tinha um estilo de vida de “bon vivant”, contou com a ajuda de John Emery, provavelmente financiador da operação, e de quem pouco descobri, a não ser que era um homem de meia idade e distante do estilo de vida hippie que Ludovico e Peticov levavam.
Ludovico foi quem entrou em contato com Peticov, que era um agitador cultural da recém nascida cena hippie da cidade de São Paulo. Cheio das conexões, Peticov ajudou com que o LSD fosse rapidamente escoado entre jovens de classe média e alta em São Paulo. Um comprimido laranja, que era suficiente para três doses ou “viagens”, era vendido por não menos do que o correspondente a atuais R$ 300. Não era barato.
Aí entra em cena um outro personagem: o investigador de polícia Angelino Moliterno, o Russinho, notório integrante dos chamados “Esquadrões da Morte”, grupos de policiais que não só justiçavam bandidos a mando de comerciantes como também controlavam o tráfico de cocaína em São Paulo. Foi Russinho quem investigou e prendeu Peticov. A partir dessa prisão, e recorrendo à tortura sem pudores, a polícia foi atrás dos outros acusados desse processo, e depois formulou sua versão para a Justiça, que a referendou.
Cheio das conexões, o artista plástico Antônio Peticov ajudou com que o LSD fosse rapidamente escoado entre jovens de classe média e alta em São Paulo
Ao saber da prisão de Peticov, Osmar teria ido se esconder em um sítio com um amigo, Domingos Proietti. Antes, incumbiu outro amigo seu, que já fazia parte dos planos desse pioneiro e mal articulado grupo de traficantes, José Gaspar Vaz Ribeiro, de buscar Barry no hotel em que estava, no centro de São Paulo, e levá-lo até a rodoviária para que partisse para o Rio de Janeiro e evitasse ser preso. No caminho, José Gaspar encontra um amigo seu de bairro, da Pompeia, Gibrail D’Ávila Junior, que tinha carro e para quem ele pede uma carona. Ao chegarem no hotel e buscarem Barry, são cercados pela polícia e presos. Em outra diligência, caem também Domingos e Osmar.
Após alguns dias de sofrimento na delegacia, nos quais até parentes dos acusados foram envolvidos nas ameaças de tortura, os réus foram enviados ao Carandiru. Outras pessoas foram detidas e interrogadas de forma brutal no âmbito da coleta de provas do processo. As defesas tentaram argumentar que, por não constar de nenhuma lista do governo, o LSD ainda não era proibido, e que os depoimentos deveriam ser descartados por conta da violência policial. O juiz Geraldo Gomes rejeitou ambos argumentos, não só afirmando textualmente que o uso de tortura não necessariamente invalida a produção de provas feita pela polícia como chegando a defender os valores da família e a virgindade feminina (!) em sua sentença.
“Ficou deveras demonstrado, nas provas, que todos os réus estavam plenamente conscientes da atividade que desempenhavam, sub-repticiamente, às voltas com o LSD”, declarou Gomes em sua sentença. “Já se denota, inclusive, um certo desinteresse nos meios toxicômanos, pela ‘cannabis sativa’ e outros psicotrópicos. A volúpia se encaminha mais, agora, para o ‘ácido’. Querem o ácido, e, dadas as divulgações deletérias que se têm feito em torno do mesmo, recrudesce a curiosidade e experimentação”, prosseguiu.
“Já se denota, inclusive, um certo desinteresse nos meios toxicômanos, pela ‘cannabis sativa’ e outros psicotrópicos”, declarou o juiz na sentença
Em sua decisão final, o juiz condenou Peticov, Emery, Holohan, Ludovico e Proietti a um ano, nove meses e vinte e oito dias de reclusão, sendo que a pena de Proietti deveria ser reduzida em três meses por se tratar de menor de idade. Além disso, foi estabelecida multa de 10 salários mínimos vigentes. Já José Gaspar e Gibrail foram condenados a seis meses de detenção e multa do mesmo valor. Proietti, José Gaspar e Gibrail receberam o benefício da condicional ou “sursis” e, desse modo, dos sete réus apenas dois permaneceriam presos após a decisão judicial, datada de 22 de setembro de 1970: Barry John Holohan e Osmar Ludovico da Silva, justamente os dois únicos que responderam todo o processo presos.
No período que passou preso na Casa de Detenção, Holohan passou a receber visitas de um pastor amigo do pai de Antonio Peticov, e se converteu ao cristianismo. Chegou a publicar um livro, em inglês, sobre essa história, intitulado The parrot’s pearch, tradução literal para “pau de arara”. Ludovico também seguiu esse caminho, e até hoje vive uma vida voltada para a espiritualidade, tendo três livros publicados sobre a temática.
O artista plástico Antonio Peticov, que participou da fundação da banda Os Mutantes, já tinha conseguido um Habeas Corpus e respondia em liberdade. Antes mesmo da conclusão do processo, obteve autorização para viajar para a Europa, onde trabalhou com Helio Oiticica no início de um exílio que duraria cinco anos. Ele é descrito como “sempre animado” na autobiografia de Rita Lee, que relata que o amigo uma vez a visitou portando “um vidro de maionese Hellmans cheio de Yellow Sunshines”.
Em entrevista, Peticov contou ter chegado em Londres às seis da manhã, carregando apenas uma “bolsinha de roupa e 120 e poucos dólares. Fui lá sem saber meu futuro”. Ao chegar, procurou por Gilberto Gil em sua casa, e não encontrou, procurou por Caetano Veloso e também não, tendo se dirigido então à casa do empresário dos dois, que avisou: “Foi todo mundo pra Ilha de Wight, num festival”. Ele não sabia que não só estavam lá centenas de exilados brasileiros, como que o evento contaria com apresentações de nomes como Leonard Cohen, Joan Baez e The Doors. Não tinha como saber também que essa seria uma das últimas performances de Jimi Hendrix, que morreria apenas alguns dias depois: o festival ocorreu entre 26 e 30 de agosto de 1970, a morte do guitarrista aconteceu 18 de setembro.
Em 2014, Peticov justificou sua prisão durante uma entrevista para Antônio Abujamra: “Apareceu na minha mão uma grande quantidade de ácido lisérgico, que foi, talvez, a invenção mais importante do século 20. Me senti na obrigação de divulgar aquilo”.
A pesquisa completa de Júlio Delmanto está disponível no banco de teses online da USP.
Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube.