O racismo corporativo à brasileira e como você faz parte dele

. Imagem ilustrativa. Foto: Felipe Larozza/VICE originalmente feita para esta matéria

“Eu não aguento, vou falar: TIRA ISSO!”

Eu ouvi atônita. Em mais de 15 anos de carreira profissional juro que demorei alguns segundos para entender o que ela havia dito.

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“TIRA ISSO!”

Ela repetiu com olhar de desprezo diante de toda a equipe que ficou muda.

“TIRA ISSO!”

“Isso” a que a general manager se referia eram minhas tranças. E como um vento gelado que vem trazer o terror do inverno glacial, ela me discriminou, abertamente ordenando que retirasse minhas tranças (“Prefiro seu cabelo como antes”) e saiu andando falando ao celular como se dar ordens e constranger pessoas publicamente fosse algo corriqueiro em sua vida. E assim terminaria mais um dia de trabalho, mais um dia de racismo e discriminação dentro de uma corporação. Mas dessa vez não, dessa vez seria diferente.

O mercado livre e o mercado de escravos

Eu havia sido recém-contratada para trabalhar na área de negócios de uma empresa internacional líder em comunicação corporativa. O ambiente na empresa, apesar de agradável pela relação com os colegas, sempre se mostrou bastante aberto a declarações racistas e preconceituosas. Já nos primeiros dias, ouvi do meu gerente direto que “para alguns eu era apenas uma negrita e teria que me provar para as outras pessoas”. Mesmo para os padrões brasileiros do racismo velado, do preconceito com um sorriso, achei muito agressiva a fala dele, mas o que eu poderia dizer na minha primeira semana de trabalho num local onde 90% dos funcionários eram brancos? Prossegui, mas sempre de olho em como as relações se davam naquele ambiente que mais parecia uma repartição pública, não lembrando em nada as start ups e empresas digitais onde já havia trabalhado.

Durante os quase três meses em que trabalhei nesta empresa, fui chamada de diversas formas e eventualmente pelo meu nome: nega, morena, moreninha, globeleza, mulatona. Fui objetificada e resumida pela minha cor sempre que possível. Me senti muitas vezes em pleno século XVIII num mercado de escravos sendo julgada pela minha aparência (“olha o corpo dessa mulher, também, sendo dessa raça”). Não me surpreenderia se tivesse meus dentes examinados por uma das colegas que demonstrava um misto de incômodo e admiração pelo fato de eu ser preta e estar ali sentada ao lado dela.

Quando eu trancei meu cabelo, desde o primeiro minuto fui colocada em uma situação de stress pelo gerente — o que me chamou de negrita, lembra? Ele disse que a general manager da empresa não iria gostar e que diria algo porque, segundo ele, ela era uma pessoa muito preconceituosa. Achei estranho o gerente se comportar daquela forma, parecia muito incomodado com minhas tranças (“Quanto tempo você vai ficar assim?” “Você já teve outros empregos com esse cabelo?”). Era uma situação limite que me gerou muito mal-estar e sentimento de não pertencimento. Como pessoas que perguntam se “você lava seu cabelo?” ou “você é macumbeira?” podem de fato aceitar a sua cultura?

Eu estava tensa e sozinha. A que ponto chegamos em que uma profissional graduada e com experiência teme ser destratada por causa do seu cabelo? Não era para me proteger do racismo que meus pais de deram uma excelente educação? Será que nada nem ninguém pode impedir que eu seja humilhada simplesmente por ser preta e usar meu cabelo como uma mulher preta? Alguém está me ouvindo?

O que acontece depois que conseguimos os empregos

O Brasil é uma país de extrema desigualdade social e isso se reflete dentro das empresas onde há poucos profissionais pretos ocupando posições de gerência e diretoria. Nos níveis mais qualificados há pouca diversidade étnica e cultural, o que garante um ambiente homogeneizado e propício a preconceitos.

No nosso já conhecido racismo brasileiro existe uma cultura que favorece esse tipo de comportamento ofensivo quando se pode falar o que bem se desejar no ambiente profissional, baixo a olhares dissimulados de gerentes, diretores e até presidentes que tratam o comportamento como natural, algo aceito e até esperado dos funcionários. Vai dizer que você nunca presenciou uma frase ofensiva ou uma risadinha machista ou homofóbica no seu escritório? Aposto que você não fez nada, não é mesmo?

Nas grandes corporações onde o ambiente deveria ser “neutro” e a diversidade é um valor almejado, o clima muitas vezes se assemelha a locais de socialização como bares onde se fala sobre um pouco de tudo. “Eu tenho nojo de X”, “Y para mim é tudo estuprador”, “Z não são como nós”* seguidos de ” É apenas minha opinião!” eram frases que eu ouvia quase que diariamente.

Depois do episódio agressivo e grotesco protagonizado pela general manager da empresa, fui procurar a gerente de RH. Esperava ter aquele conflito mediado e que a agressora ao menos se desculpasse e que o caso fosse reportado para a matriz, pois se tratava de agressão grave cometida dentro da empresa. Mas infelizmente nem todos os profissionais conseguem ter empatia e agir de forma humana, são apenas engenhos de uma grande máquina empresarial. Além de não ter havido nenhum pedido de desculpas ou mesmo um sinto muito (como pregam as cartilhas de comunicação corporativa sobre resolução de conflitos), ainda tive que ouvir da general manager o clássico “você que é racista”, já que ela era casada com um “descendente de negros” (“se eu fosse racista não teria me casado com quem me casei”) e ainda a ver se apropriando do poder-ser racista (“se eu fosse racista você não passaria daquela porta”).

Para continuar a cadeia de humilhações, ela chamou toda a equipe (“ninguém será demitido se falar a verdade”) e perguntou: “alguém acha que eu sou racista?”. Diante da gerente do RH, a general manager afirmou que a partir de agora as pessoas seriam investigadas antes de serem admitidas na empresa “para não criarem problemas”. Foi realmente chocante e deplorável. Depois, soube que a empresa com sede nos EUA já tem histórico de discriminação no escritório brasileiro contra seus empregados, e que inclusive a general manager em questão já foi reportada para a sede norte-americana sem nada acontecer.

Depois dessa reunião, onde a general manager disse, entre outras coisas, que a estratégia da empresa era contratar “pessoas bonitas”, foi iniciada uma investigação interna com os presentes no dia do fato. Como previsto, quando os trabalhadores são expostos à sua vulnerabilidade, meus colegas de equipe, aqueles que me viram sair chorando, ficar triste no trabalho e ter crises de dor de estômago depois do ocorrido, ficaram do lado da empresa dizendo que não houve racismo, afinal, a general manager tratava todos mal igualmente. Não culpo esses trabalhadores e nem gostaria de estar no lugar deles que dependem de viver em um ambiente tóxico para sobreviverem. Empatia é para poucos, as pessoas comuns se acovardam diante das situações de injustiça e foi o que aconteceu.

É difícil para pessoas que só usam a cultura preta para se apropriar ou “curtir” terem um lastro de empatia quando algo assim acontece. É divertido ir no pagode, frequentar os terreiros de umbanda, dizer que é preto por dentro porque ama a Beyoncé, mas assumir o racismo da general manager seria assumir seu próprio racismo. As mesmas pessoas que me mandaram mensagens de apoio em um dia, no outro deram seu depoimento e resumiram o caso a apenas uma fala rude de uma pessoa que não gostou do visual da outra. Eles desconsideraram que uma mulher preta de tranças está longe de ser apenas um visual, um look. É uma expressão de identidade cultural e respeitar isso é fomentar a diversidade na empresa.

Processos e relatos

Quando eu percebi que nada iria acontecer e teria que conviver com a atitude opressiva de algumas pessoas, fui procurar um advogado e denunciar a general manager. Também criei a página e a hashtag #tiraisso para contar a minha história e dar voz para que outras pessoas pudessem dividir suas experiências. Nós somos alvos de comentários depreciativos, isso quando não temos nossas características físicas e culturais negadas ou embranquecidas para sermos aceitos dentro da corporação. Precisamos falar sobre isso. Ouvi relatos muito parecidos com os meus e histórias que me entristecem apenas de lembrar.

Alguns dias depois, quando a página viralizou na internet, fui informada que meu contrato não seria efetivado por “questões de desempenho” e fui literalmente escoltada para fora do escritório com mais de 50 pessoas assistindo a cena deplorável. E tudo isso porque eu apenas quis ser quem eu sou, uma mulher preta.

Esta história ainda vai continuar por algum tempo, pois as ações judiciais estão em andamento. Muitas mídias, inclusive internacionais, noticiaram o fato e profissionais e clientes cobram uma atitude da empresa. Mas o que me deixa triste é saber que alguns de meus colegas riram de mim, e agora estão livres para discriminar quem eles quiserem.

Mas algumas perguntas seguem sem resposta

Como é possível uma empresa de comunicação corporativa errar em todos os aspectos de sua própria comunicação interna? Será que acharam que discriminar uma jovem profissional preta na frente de mais de dez funcionários não iria dar em nada? Que sistema é esse protege um profissional de cometer uma agressão deste tipo e ter a certeza de que não será punido?

Ou será que a empresa subestimou todos os movimentos pretos e feministas que lutam contra situações como esta? Será que pensaram que eu iria me calar e que a comunidade preta e as mulheres aceitariam uma profissional preta seja escoltada para fora de seu local de trabalho sem reagir? Será que não entendem que os tempos são outros?

Eu recebi uma notificação extra-judicial me ameaçando de processo por contar a minha história e compartilhar as histórias de outras pessoas que sofrem todos os dias apenas por quererem fazer o seu trabalho e ser quem elas são. TIRA ISSO!, disse ela mais uma vez através de seus advogados agora para tirar minha página do ar. Será que pensam que irão me calar dessa forma?

Tudo isso só o tempo dirá. Mas certamente, nada mais será como antes.

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