Quinze minutos antes do show do Radiohead começar, eu tive que sentar na lateral da escada do setor de cadeiras da Jeunesse Arena pra voltar a respirar direito. As horas anteriores tinham sido um pouco decepcionantes. Descobri depois de viajar algumas horas até o Rio para ir ao Soundhearts Festival, em que a banda se apresentou nesta sexta (20), que o credenciamento de imprensa ficava no Nível 1 de cadeiras ao invés da pista — uma das algumas consequências das mudanças de local e data que o festival sofreu num período de um mês foi que a quantidade de ingressos vendidos para a pista do Parque Olímpico, onde o show aconteceria originalmente, não caberia na pista da Jeunesse. Por conta disso, muitos espectadores tiveram que ser movidos para as cadeiras.
Eu cheguei às 20h30, bem na hora de ver o Flying Lotus, que foi mais uma das decepções da noite. Já tinha visto ele tocar em 2014, no Audio Club em São Paulo, que foi logo antes do lançamento do You’re Dead. Mas esse show não foi nada como o outro, em que ele até saiu de trás da mesa de som pra invocar seu alter ego rapper Captain Murphy. Ontem, no Rio, a apresentação parecia um DJ set glorificado, com umas projeções meio cafonas que ele já tinha usado naquele show passado em São Paulo. Aquilo deixou mais claro que o Soundhearts Festival não era, na real, um festival: o conjunto de shows foi assentado apenas para abrir para o Radiohead, a atração principal da noite.
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Depois de saber que eu veria o show das cadeiras, minha animação diminuiu consideravelmente, mas isso não quer dizer muita coisa — o Radiohead é minha banda preferida desde os meus 14 anos, e eu nunca achei que fosse poder ver um show deles. Depois das duas partes da turnê do A Moon Shaped Pool, uma em 2016, logo após o lançamento do álbum, e uma em 2017 depois da edição comemorativa de 20 anos do OK Computer, eu tinha certeza que teria que esperar pelo menos até o próximo disco pra ter alguma chance de assistir um show da banda no Brasil. E, considerando que estamos falando do Radiohead, dava pra colocar mais uns cinco ou seis anos aí na conta.
Quando a banda anunciou que viria ao Brasil, em dezembro do ano passado, eu me senti até honrada por não ter que esperar mais que nove anos pra eles voltarem. No último show deles aqui, que aconteceu durante a turnê do In Rainbows em 2009, eu ainda não tinha idade o bastante pra ter ido, mas quem teve — grande parte das pessoas que eu conheço que tiveram, pelo menos — se lembra da apresentação como uma das melhores que já viram. Dessa vez, o Radiohead tinha algumas desvantagens para si: o AMSP, disco que de certa forma eles vieram divulgar com esses shows aqui, não é tão memorável quanto o In Rainbows; o setlist da banda ficou um tanto quanto estático nas duas últimas turnês; e o local e data do show ter mudado tantas vezes certamente não ajudou o público que iria a ficar tão pilhado quanto poderia para a apresentação.
Mesmo assim, com todas as expectativas a favor e contra a banda nesses últimos nove anos em jogo, o Radiohead subiu ao palco nessa sexta (20) para tocar “Daydreaming” e ganhou aquele público nas três primeiras notas de piano tocadas pelo Jonny Greenwood na introdução da faixa. Momentos antes desse começo, eu estava correndo tão desnorteada quanto o Thom Yorke no clipe dessa mesma música pelos corredores internos da Jeunesse depois de voltar do banheiro, desesperada de perder alguma música. Cheguei a tempo, e o fraco que eu senti nos joelhos foi aumentando a cada faixa que eles decidiam tocar (e chegou ao seu cume em “All I Need”, durante o primeiro bis, em que eu agachei no topo da escada do setor de cadeiras por achar, de verdade, que não conseguiria mais ficar em pé).
Ver aquelas músicas que eu ouvi tantas vezes na última década da minha vida ao vivo foi um sentimento curioso. Eu as conhecia de cabo a rabo, recitava quase todas as letras de cor, mas muitas delas pareciam tomar outra forma quando tocadas ali, bem na minha frente. “Idioteque”, uma das que eu mais esperei durante o show e que só foi dar as caras também no primeiro bis, me surpreendeu não apenas porque o Thom Yorke conseguiu fazer boa parte das 15 mil pessoas presentes na arena lhe acompanhar no falsete do refrão, mas porque a batida abstrata da faixa ganhou ainda mais nuances com as duas baterias da banda — o mesmo pode ser dito sobre “Feral” e “Bloom”, do King of Limbs, turnê em que a segunda bateria apareceu originalmente. “Nude” ganhou um tom mais sensual do que já o era originalmente, e “Identikit” ficou, literalmente, um rock de arena com aquele refrão grandioso.
Foi um tanto absurdo assistir a metamorfose que a banda sofria no palco a cada faixa que eles tocavam. O setlist, que misturava faixas de quase todos os álbuns (exceto o famigerado disco de estreia Pablo Honey), obrigava o quinteto a trocar de instrumentos e pular mais de uma ou duas décadas de faixa em faixa — a sequência “Let Down”, “Bloom” e “Reckoner” é bom exemplo disso. Era como se uma banda diferente subisse no palco a cada música tocada: a pose séria e o vocal tocante de Thom Yorke, que sentava ao piano durante “Pyramid Song”, era substituída pelas jogadas de cabelo de Jonny Greenwood e Ed O’Brien durante as guitarradas de “Bodysnatchers”, meio que como se eles estivessem brincando de banda de rock.
Durante a semana que precedeu o show, eu fiquei minuciosamente analisando os setlists que a banda tinha tocado na América Latina nas apresentações anteriores às do Brasil, tentando adivinhar por alguma matemática sem lógica alguma quais seriam as “surpresas” que eles tocariam no Rio e em São Paulo. Eu desencanei dessa ideia logo nos primeiros momentos do show, — àquela altura, qualquer música que eles tocassem me emocionaria — mas nada poderia ter me preparado pra ouvir “True Love Waits” nos momentos finais do show, já no segundo bis, que o Thom Yorke tocou sozinho no palco, apenas com o violão, coisa que não acontecia desde 2003. Mas nada poderia ter me preparado, também, para ouvir os solos de guitarra de “Paranoid Android” ao vivo, ou de ouvir a plateia cantando o “For a minute there / I lost myself” de “Karma Police” mesmo depois da banda ter saído do palco pela última vez.
O Radiohead é uma banda que, por várias razões, comove. Talvez mais que a média. Impossível saber com certeza. Mas o estereótipo do fã de Radiohead — que, inclusive, eu vi sendo preenchido de perto por um cara que cutucava uma mulher à frente dele a todo momento pra falar sobre a música que estava tocando — existe por alguma razão, e talvez eu, que me encaixo tão perfeitamente nesse estereótipo, só tenha entendido essa razão por completo enquanto segurava o choro entalado na garganta em alguns momentos de ontem.
O Radiohead não é uma banda, são várias. A cada momento do show eu sentia uma emoção diferente evocada pelas também tão diferentes músicas que a banda costurou num setlist de alguma forma coeso — a euforia era a maior delas, mas houve espaço pra ternura, alegria, um sentimento de solidão no mundo sem igual (que, mais do que ninguém, o Radiohead sabe emular perfeitamente) e a sensação de que eu estava presenciando toda a beleza do planeta. Mas mais do que tudo, eu me senti sortuda por poder ver um show montado de forma tão dedicada e aproveitar da sensação de ser tirada da vida real para um mundo que só um show como esses consegue construir. Daqui pra frente, I feel my luck could change.
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