Capa por Hank Londoner.
Numa noite escura de fevereiro, Jeremy Frommer, um ex-operador da bolsa de Wall Street que se tornou empresário e financista, estava acompanhando um leilão de lotes abandonados com sua filha, uma fã do programa “Storage Wars”. Eles compraram todas as unidades exceto uma. Depois disso, ele dirigiu até um armazém em Long Island — sozinho — para encontrar o comprador russo que tinha dado o lance maior por aquela última unidade.
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Quando Jeremy chegou ao armazém, ele viu o conteúdo do lote comprado pelo russo espalhado pelo chão: utensílios domésticos, lixo, cerâmicas. Por um momento, ele ficou desapontado. Ele esperava que o conteúdo do lote fosse algo de imenso valor: o restante de uma coleção única que Jeremy tinha descoberto na unidade de armazenamento vizinha. Mas não estava lá.
Então, ele notou as caixas, empilhadas perto das latas de lixo. As caixas estavam cheias de slides. O russo “pensou que os slides eram lixo e não deu a mínima para eles”, Jeremy me contou. Numa negociação rápida, ele comprou o lote inteiro por US$2 mil em dinheiro, colocou tudo em sua caminhonete e dirigiu sem fôlego até o posto de gasolina mais próximo para verificar as caixas. Era o tesouro que ele estava procurando: as fotografias pessoais de Bob Guccione, magnata editorial e chefão do império Penthouse.
O total das aquisições de Jeremy naquele dia formavam uma porção substancial de coisas abandonadas de Guccione: centenas de slides, fotografias e cartas pessoais. Raridades dos anais da Penthouse. Um rolo da versão japonesa do filme Calígula, a cinebiografia pornô dionisíaca que Guccione produziu em 1976 com muitas dificuldades. E o item final era um número de telefone, que levou Jeremy ao verdadeiro grande prêmio com um credor em Phoenix: todo o patrimônio de Guccione.
Que Jeremy comprou também.
Hoje, Jeremy e seu sócio, o produtor Rick Schwartz, possuem um artefato de mídia único no mundo — a Coleção Guccione. Isso é o trabalho de uma vida do artista/pornógrafo e milionário incompreendido que escalou até o topo da indústria editorial por 30 anos, até que sua companhia, a General Media Inc., falisse em 2003.
Bob Guccione pode ser mais conhecido pela Penthouse, mas ele era um homem renascentista. Entre suas realizações menos reconhecidas estão a publicação e design da Omni, uma revista canônica de ficção científica, produção de filmes, coleções de obras de arte, a luta pela liberdade de expressão, investigação e exposição de escândalos públicos, pintura e a atuação como patrono de centenas de escritores e artistas. Em certo ponto, ele foi o dono da maior residência particular de Manhattan — uma propriedade de mais de 8.220 metros quadrados na East 67th Street, equipada, entre outros luxos, com uma coluna de mármore de quase quatro metros esculpida à sua imagem e semelhança.
Guccione figurava como uma das mentes mais interessantes do século XX, mas, apesar de sua imagem pública de libertino de camisa aberta coberto de correntes de ouro, ele era quase um recluso patológico. Ao contrário de seus colegas mais famosos da indústria, Guccione não era um homem público; sua casa, longe de ser um grande cenário de festas como a mansão da Playboy, era, segundo relatos, um reino vazio.
A Penthouse começou como uma revista de classe. Os nus, no começo, muitos fotografados pelo próprio Guccione, eram românticos, cobertos por sombras e luz caravaggianas, difusas como se uma meia-calça tivesse ficado presa na lente do fotógrafo. Isso porque Guccione apreciava fotografia, fetichizava o design e se considerava um artista. Ele pintava e gostava de gastar seu dinheiro com pinturas — Mondiglianis, Picassos e várias obras de arte impressionistas.
Nos anos 1990, fotos e revistas sensuais se tornaram mais difíceis de vender para um público acostumado com obscenidade gratuita on-line. A Penthouse foi forçada a arrancar a meia-calça da lente. A iluminação mudou; os atos sexuais se tornaram mais explícitos, a luz ficou mais brilhante, mais forte, mais parecida com a fluorescência lúgubre de uma sex shop do que com o foco suave e pictórico da imagética da revista. As modelos começaram a mostrar mais. Os fotógrafos “esqueceram como é trabalhar com filme”, disse-me a assistente de longa data de Guccione, Jane Homlish. “Tudo ficou muito duro, grosseiro, frio… Não conseguimos manter o padrão de beleza artística.”
E justo quando as vendas da revista começaram a tomar uma surra da pornografia on-line em ascensão, Guccione afundou milhões de dólares em investimentos fracassados — desde fusão nuclear até um casino da Penthouse em Atlantic City. Seus negócios nunca se recuperaram. Quando Bob Guccione morreu de câncer no pulmão em 2010, sua riqueza já tinha desaparecido. Sua propriedade de 75 acres às margens do rio Hudson em Rhinebeck, Nova York, teve a hipoteca executada; ele foi despejado de sua infame residência em Manhattan. Mesmo sua família tinha se voltado contra ele. Os vestígios da existência material de Guccione foram espalhados pelo vento, abandonados e tomados por credores. Na época em que Jeremy Frommer adquiriu aquele lote fatídico, a história do magnata recluso caminhava para a total obscuridade.
E ainda poderia estar, se as circunstâncias fossem diferentes. Se Frommer não tivesse notado as caixas de slides junto às latas de lixo naquela noite em Long Island, não haveria a Coleção Guccione. Ou ela poderia ser muito diferente, porque, no final das contas, esse tipo de arquivo nunca pode ser completado — ou objetivo. Pode ser possível comprar todos os cartões de basebol, enfileirar orgulhosamente um conjunto completo de bonequinhos, mas quando o objeto de seu interesse é uma pessoa, não há um fim para a pesquisa, nem uma maneira certa de olhar para o que você está perseguindo. Tudo que Bob Guccione já tocou na vida faz parte do jogo para Jeremy e Rick. A Coleção Guccione é como se aproximar de um fractal: uma busca insana e sem fim por slides de nus, guardanapos de papel, extratos bancários; e histórias. Quantos objetos são necessários para definir a vida de uma pessoa? Para entender a essência de uma pessoa conhecida por poucos, mas que produziu tanto?
Alguns meses atrás, visitei a Coleção Guccione, alojada num armazém atrás de um escritório de suprimentos médicos em Englewood, Nova Jersey, e Jane Homlish, ex-braço-direito e assistente de Guccione por mais de 30 anos, apareceu quando eu enfiava meus braços até os cotovelos num armário de slides artísticos. Uma sexagenária simpática calçando tênis práticos, Jane se iluminou enquanto discutia sua carreira incomum como confidente, colaboradora e assistente de Bob. Por toda sua carreira editorial, Jane teve que lidar com os casos de Guccione, mantê-lo no horário, organizar suas sessões de foto, medir seus humores e bancar a babá das pets que fluíam pelas páginas da Penthouse.
Arrancada dos escritórios da General Media Incorporated quando era somente uma recepcionista de 20 anos, Jane foi jogada numa realidade de grandes propriedades imobiliárias, reuniões editoriais que se estendiam até a madrugada e jantares com Frank Sinatra. Ela foi o primeiro membro do culto a Guccione e, aparentemente, continua sendo sua pregadora mais fervorosa.
“Ele tinha uma mente muito complexa, uma mente muito interessante”, Jane me disse. “Não há ninguém como ele. Ninguém. Eu não teria trabalhado com ele por 30 anos se não o achasse absolutamente fascinante.” Eles deram duro, arranjando cada sessão de fotos da Penthouse de acordo com as sensibilidades eróticas de Guccione, escolhendo cada foto, escrevendo as capas, escolhendo cores e até reescrevendo quadrinhos — mas ele não era um tirano. Para quebrar o tédio, eles brincavam de esconde-esconde na mansão e quando o sol ia nascendo, Guccione preparava para ela um enorme prato de espaguete.
“A gente falava sobre coisas profundas”, contou Jane sobre o relacionamento deles. “Quando ele me contratou, suas primeiras perguntas foram: ‘você acredita em Deus? Qual seu verdadeiro objetivo na vida? Você já pensou sobre a nossa existência?’.” Por causa dessa conexão, Jane era extremamente leal. Quando a internet finalmente colocou a Penthouse de joelhos, foi Jane quem dolorosamente retirou os quadros das paredes para vendê-los. E quando Guccione morreu, ela ficou completamente à deriva, ela disse que foi como acordar de um sonho de uma vida inteira. “Depois de trabalhar com Guccione na casa dele, até as quatro ou cinco da manhã, sete dias por semana, ganhando a vida, isso foi como viver num mundo exterior. Tive muita dificuldade para me adaptar.”
Jeremy e Rick encontraram Jane em algum ponto durante a busca — a letra dela estava por toda a coleção — e a levaram para jantar. O valor de seu conhecimento interno e da sua conexão pessoal ficou imediatamente claro. Jeremy a contratou na hora, como o verdadeiro curador de seus tesouros e o antigo sustento dela. Quando ela entrou no armazém e testemunhou uma parte enorme de seu passado espalhada em caixas, as comportas se abriram. “Chorei como um bebê quando entrei aqui”, ela me disse. “Eu não conseguia parar de chorar. Fiquei me desculpando com todo mundo porque chorava incontrolavelmente.”
Rick, que começou sua carreira no cinema trabalhando como assistente para Harvey Weinstein na Miramax, vê Jane como uma alma gêmea. “Reconheço nos olhos e nas anedotas dela a ideia de trabalhar para uma pessoa famosa e tudo o que isso implica”, disse ele. “As horas, a devoção, a lealdade, todas as loucuras. Ela fez tudo isso e depois tudo acabou horrivelmente para ele e para ela.” Na época em que Jeremy e Rick a tiraram do rancho de cavalos onde ela trabalhava em Nova Jersey, “ela achou que a história tinha acabado. Ela achou que era o terceiro ato — mas acontece que é apenas o segundo ato”.
Recuperada do choque inicial, Jane parece ter voltado a seu papel natural: a matriarca de tudo o que é Bob Guccione. Foi mais ou menos como se ela tivesse vindo junto com as coisas. Ela se senta com Jeremy, Rick e a equipe deles enquanto eles passam pelo fluxo interminável de slides, cartas, fotografias e coisas efêmeras, colocando tudo em seus devidos lugares na história. Jane parece uma mulher normal de meia-idade, mas tem uma memória impecável até para os detalhes mais escabrosos da produção da Penthouse. Combinada à manutenção neurótica de registros de Guccione (ele era um organizador meticuloso), o legado Guccione vai escrevendo a si mesmo. “Tínhamos todas essas coisas soltas”, disse Rick, “e tudo passou pelo prisma da Jane e saiu arquivado do outro lado”.
Rick e Jeremy têm suas próprias razões para investir e participar de perto do empreendimento. Claro, há muito dinheiro na história, mas a Coleção Guccione se tornou algo pessoal para seus donos. O homem se tornou a baleia branca deles, uma baleia de calça de couro e camisa abotoada só até o meio.
Para Rick, que fez sua carreira no cinema por causa da fascinação inerente pelas histórias de outras pessoas, a noção de desenterrar uma história como a de Bob Guccione — o glamour, o segredo, o impacto, o ambiente — e trazer isso para a nova geração é um desafio irresistível. “Estou interessado em Guccione”, ele me disse, “mas estou mais interessado no legado”. Rick está colaborando com o diretor Barry Avrich num documentário sobre a vida de Guccione que se chamará Filthy Gorgeous e está desenvolvendo uma série de TV sobre a experiência de Jane como uma jovem mulher no centro de um império erótico.
Jeremy, por outro lado, mergulhou de cabeça nos arquivos. “Esperamos que ele ultrapasse os medalhões e o peito peludo”, Rick me confidenciou. Isso se deve parcialmente porque Guccione, com seu olho para o talento criativo e sua imagem paternal, lembram a Jeremy seu próprio pai, que faleceu há 12 anos. “Explorando o mundo de Guccione”, ele me disse, “também olho para meu próprio passado com meu pai”.
Quando você submerge tão completamente na vida de outra pessoa — quando toca as coisas dela, defende seu legado e trabalha com as pessoas que ela amou — é difícil não se apegar. Alguns acreditam que os objetos deixados pelos mortos contêm um certo poder residual. Que eles podem falar. De qualquer forma, Jeremy começou a canalizar o fantasma de Guccione. E ele também é parte da história agora. O terceiro ato.
A Coleção Guccione está repleta de coisas tilintantes — nus inéditos de celebridades, estranhos artefatos culturais, opulentas ilustrações de ficção científica e correspondências malucas — mas, no final das contas, tudo isso não tem sentido sem uma história coesa, uma marca, sem um personagem central. Sem Bob Guccione, ou um mito robusto do homem, essas coisas são só coisas. E por isso é tão importante para Jeremy, Rick e principalmente para Jane, que o homem prevaleça acima de tudo.
Em vida, Bob não teve um grupo coeso de pessoas a seu redor para proteger seus interesses. Infelizmente, ele nunca saía de casa. Ele raramente aparecia nos escritórios da General Media e insistia em criar os layouts da revista — e, frequentemente, as próprias sessões de foto da Penthouse — numa sala de trabalho de sua propriedade ou em sua casa na cidade. Ele confiava em poucas pessoas. Isso resultou em um equívoco geral do público quanto ao homem, nascido de uma desconexão entre sua imagem pública e sua vida particular. Como administradores de seu legado, Jeremy e Rick veem seu projeto multidimensional como uma oportunidade para retificar o silêncio, para abrir a reclusão da vida inteira de Guccione e sua monomania. Quer ele quisesse isso ou não depois de sua morte, eles acreditam numa renascença de Guccione. E queira o mundo ou não, isso está chegando.
“Em sua morte”, Jeremy disse, “vou cercá-lo de pessoas”.
Neste mês superespecial de setembro a VICE vai publicar material selecionado com exclusividade dos arquivos de Bob Guccione — o lendário editor que construiu um império midiático que começou com a revista Penthouse.
Para mais material inédito, viste o site The Guccione Collection, devotado a iluminar todos os cantos do legado de Guccione e criar conteúdo novo no espírito do império Guccione.