Música

Raízes do Brasil: Faz 20 anos que o Sepultura lançou o ‘Roots’

Cultura indígena, escravidão, herança africana, o seringueiro e ativista Chico Mendes, ditadura militar, candomblé, o cineasta Zé do Caixão, Amazônia, brazilian jiu jitsu, começa ao sons de grilos e termina em uma misteriosa faixa instrumental escondida. Esses são apenas alguns dos temas presentes nas 16 músicas do disco Roots, sexto álbum da banda brasileira Sepultura e que completa vinte anos. Lançado no dia 20 de Fevereiro de 1996, o trabalho saiu pelo selo da gravadora Roadrunner (originalmente holandesa mas que, desde 2006, é uma divisão da Warner Music) e a produção assinada pelo norte-americano Ross Robinson, à época ainda em início de carreira, mas que hoje é reconhecido por sucessos com nomes como Korn, Slipknot, At the Drive-In e Limp Bizkit.

Formada em meados da década de 80 em Belo Horizonte, a banda atravessava boa fase, com repercussão internacional positiva de seus álbuns anteriores, Arise (1991) e Chaos A.D. (1993), e alcançava reconhecimento e reunia multidões também no Brasil, com apresentações marcantes como a do Rock In Rio II, em 1991 e, também, no Hollywood Rock, em São Paulo, em 1994 — ocasião em que o Sepultura foi inserido no lineup após um abaixo-assinado dos fãs brasileiros.

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Para gravar Roots, entre o segundo semestre de 1995 e o início de 1996, os integrantes do grupo se viram em uma jornada criativa que envolvia a inserção de elementos brasileiros no pesadíssimo e econômico thrash metal que o grupo já desenvolvia. A reportagem do Noisey ouviu alguns personagens ligados à produção do disco, que comentaram esse processo e, também, o momento histórico de destaque que a obra teve, com altos números de vendagem e presença dos singles em diversas paradas internacionais.

Para contar essa história estão Andreas Kisser, guitarrista do Sepultura, Ross Robinson, produtor, Carlinhos Brown, músico brasileiro convidado e Antonio Coelho, o Toninho Iron, presidente do fã-clube do Sepultura há quase 30 anos.

Um olhar para o interior do País

ANDREAS KISSER: Sem dúvida, o Roots é um trabalho que características que começaram a ser formadas já no Arise, quando fizemos a turnê fora do Brasil e foi onde percebemos que poderíamos usar um pouco mais da influência da nossa própria música nos sons — algo que a gente ignorava, até aquele momento. Essa turnê que passou pelo mundo todo, Austrália, Europa, América do Sul, foi uma abertura geral das influência e percebemos que poderíamos incorporar elementos únicos do Brasil, como a percussão, por exemplo. Já no disco Chaos A.D. isso apareceu bastante na faixa Kaiowas que têm uma forte influência da música brasileira, da região Nordeste e sertaneja. A explosão desse processo veio com o Roots em que focamos nas nossas próprias raízes, africanas, dos escravos e, também, indígenas.

CARLINHOS BROWN: O Roots significa para a música brasileira a ideia de que a raiz é um lugar de que nunca se cai e de que é uma antena focada para lados desconhecidos. Cabe a nós captarmos o melhor disso.

TONINHO IRON: A banda conversou muito com a gente (fã-clube) para a produção do Roots. Envolvendo pesquisas de tema nos arquivos sobre os assuntos abordados, os nativos, o Chico Mendes. A grande surpresa foi o poder das músicas. E elas são diferentes uma da outra. Cada música tem sua alma.

A viagem à tribo indígena

Em 4 de Novembro de 1995, pequenos aviões aterrissaram na Aldeia Pimentel Barbosa, localizada no município de Água Boa, Mato Grosso, para iniciar uma interação cultural com índios da tribo Xavante. O encontro foi registrado em vídeo e exibe uma relação de respeito e admiração por parte da banda para com os nativos. Durante a gravação, o vocalista Max Cavalera declara: “Ao invés de ir para Disneylandia, todo mundo devia vir aqui, conhecer isso primeiro, para depois viajar para outros lugares”. Com o corpo pintado, os quatro músicos interagiram com os índios, participaram de danças típicas e tocaram instrumentos. Na presença do produtor musical do álbum, foi gravada a música Itsári, que reúne cantos dos nativos e seus instrumentos a uma melodia de violões.

ROSS ROBINSON: Estávamos em um pequeno avião, que balançava bastante por causa de uma tempestade. Na minha aeronave estavam o Max e a Glória (esposa do vocalista e empresária do Sepultura à época). Nos fones de ouvido, escutava algumas músicas de motivação. A um certo momento, estava rindo com os pilotos quando me virei e vi Max rezando para que o avião pousasse com segurança. Essa viagem mudou minha vida e expandiu meu cérebro de uma maneira maravilhosa. Eu serei sempre grato a esses caras por terem me levado lá, sempre…

ANDREAS KISSER: Fizemos essa gravação na tribo com os índios Xavantes, que foram os que deram mais condições para que pudéssemos realizar esse trabalho. Nós conquistamos a confiança da gravadora (Roadrunner) para fazer o que quiséssemos para o álbum. Se a gente quisesse ir para a Marte, eles nos mandariam. Aliás, o Sepultura sempre teve essa liberdade de criação, de não ter gente de fora dando palpites nos trabalhos.

Sobre as montanhas em Malibu

Ao gravar Chaos A.D., a banda se reuniu em estúdio na Inglaterra e utilizou até as ruínas de um castelo medieval. Para Roots, o destino escolhido foi Indigo Ranch, estúdio munido de aparelhagens clássicas, localizado em Malibu, na Califórnia. A ousadia de gravação ficou por conta de uma sessão externa produzida nas alturas, em um cinzento cânion. O resultado dessa experiência aparece em detalhes sonoros e de percussão de diversas músicas do disco.

ROSS ROBINSON: Meus discos favoritos foram feitos nos anos 70 e, alguns deles, no próprio Indigo Ranch. Eu trabalhei em alguns materiais nesse estúdio antes do Roots e, por isso, me senti confortável e confiante que seria algo grande, tanto sonoramente, quanto espiritualmente.

ANDREAS KISSER: Em Malibu, nas montanhas, a parte ordenada da gravação era a distribuição dos microfones feita pelo Ross, com cabos gigantescos para a captação. A nossa parte, da banda com o Carlinhos Brown, foi a mais improvisada, não havia nada programado. Havia apenas o propósito do momento. Foi fantástico e o som produzido pelo Brown ao arrastar um galão d’água vazio foi a base que originou a música Ratamahatta.

ROSS ROBINSON: O Korn estava começando a se sair bem… Mas Roots foi o álbum que solidificou minha carreira como produtor musical. O Sepultura estava no seu auge e o fato de eles terem confiado em um novo produtor para um álbum tão importante para a banda simplesmente bagunçou minha mente. Creio que a autenticidade de meu amor pelo grupo brilhou logo nas nossas primeiras reuniões juntos. Eu preferia ter morrido a desapontá-los.

ANDREAS KISSER: O Ross Robinson, no estúdio, era como um quinto membro da banda. Ele ia atrás das loucuras com a gente, seja na escolha do estúdio — totalmente vintage — ou na gravação em cima do cânion, em Malibu. Muito foi feito no estúdio, no entanto, chegamos com um material que havíamos produzido durante alguns meses, em Phoenix (Arizona). Foi um mês de gravação e a duração de três a quatro semanas para a mixagem. No estúdio nosso processo sempre foi muito rápido. Não tínhamos muita paciência. Como no Chaos A.D. e no Arise, no Roots a parte musical foi o começo de toda a criação. E depois vamos vendo onde se encaixa a voz e, por último, vinham as letras. Claro que, em alguns casos, já havia um rascunho.

Influência para um novo metal

Além de Carlinhos Brown, que trouxe características mais brasileiras ao álbum, Roots tem participações marcantes em outras faixas, como em Lookaway, que traz Mike Patton, vocalista do Faith No More, o DJ Lethal e um iniciante Jonathan Davis, vocalista do Korn. Ross Robinson, a partir dessa gravação, passaria a trabalhar com outras bandas de um gênero que mescla peso, hardcore e hip hop, movimento que recebeu o nome de nu metal.

ANDREAS KISSER: O papel do Ross Robinson foi muito importante nessa cena. Bandas como Korn, Slipknot, Deftones e Limp Bizkit, produzidas por ele, reconhecem o Roots como influência. O Dave Grohl (Foo Fighters) comentou também e várias bandas que vieram a seguir. Isso é espetacular, ver um produto tão orgânico e espiritual.

ROSS ROBINSON: Roots foi importante para o gênero metal como um todo. O sentimento por trás de cada faixa é o que importa — e não o gênero.

Reflexos do lançamento do disco

TONINHO IRON: O Roots deixou o Sepultura no topo da pirâmide. Quando o álbum foi lançado eu já tinha contato com a banda há quase dez anos, desde o Schizophrenia (1987). Em meados da dédaca de 90, na época do lançamento, nós chegamos a ter duas mil pessoas cadastradas no fã-clube, com carteirinha e tudo mais.

ROSS ROBINSON: Certamente foi uma época muito boa! Eu aprendi muito com esses caras. Ainda era muito novo, estava começando na produção musical. Eu não sabia o que estava fazendo, mas me sentia extremamente confiante naquilo que eu não compreendia, o que fez com que uma música de grande qualidade viesse ao mundo. Não posso tomar toda a responsabilidade pelo que foi feito, simplesmente aconteceu e ficou bom demais.

ANDREAS KISSER: Foi tão difícil fazer (o álbum), mas tudo valeu muito a pena. É fantástico lembrar de tudo isso quando você o escuta. A nova geração e aqueles que vierem depois vão ouvir um álbum primordial na discografia, um disco que tem ares clássicos, como das bandas que admirávamos na década de 70.

TONINHO IRON: Bem no início, o disco não foi tão procurado por aqui (na Galeria do Rock). Já o lançamento mundial pela Roadrunner foi bem vasto e, conforme ele foi ficando mais comentado, não demorou muito para estourar. Chegava a faltar o disco nas lojas da Galeria, de tanto que procuravam. Alguns comerciantes não estavam botando fé (nas vendas), afinal, em termos de popularidade, o que estava em alta era o grunge. O negócio foi fenomenal! Nunca havia acontecido nada igual. E o Roots foi espetacular, um disco que quebrou muitas barreiras e que abriu muitas cortinas.

CARLINHOS BROWN: O Roots, mais que um álbum, afirma a espiritualidade na música, como um conteúdo a mais, que transcende a letra e a melodia. O que está gravado demonstra nossa capacidade de futurar o que queremos para o País. Podemos ser vikings ou culto de terreiros. É o momento contemporâneo e a miscigenação dizendo que já temos autenticidade.

ANDREAS KISSER: Foi uma época fantástica. Por um lado, foi um momento espetacular da carreira. Mesmo nos ensaios, não deixávamos ninguém interferir no conceito, fazíamos as coisas entre a gente e nos concentrávamos em fazer o disco. Em botar o foco apenas na arte. Foi um processo de dois opostos, de um lado o momento criativo, fantástico, do outro, o caos. Não soubemos administrar.

O vocalista Max Cavalera anunciou a sua saída do Sepultura no final do ano de 1996. Para a produção desta reportagem, nem o vocalista, que no momento excursiona com a banda Soulfly pela Europa, nem o então baterista, Iggor Cavalera, toparam participar. O baixista Paulo Jr. estava em viagem e também não foi entrevistado.

Recentemente, os irmãos voltaram a ser notícia com o anúncio de uma provável turnê do Cavalera Conspiracy nos EUA, comemorativa aos vinte anos do disco Roots. Segundo a assessoria do grupo no Brasil, ainda não há confirmações de datas ou detalhes sobre shows.

O Sepultura fará dois shows no SESC Pompeia, nos dias 26 e 27 de Março. O Soulfly desembarca no Brasil em abril e fará show em São Paulo no dia 10, no Audio Club.

O Marcelo Daniel é, além de ilustre cidadão e Pirajuí e Homem Benigno, uma das poucas coisas que ainda valem a pena no Twitter.

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