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Sim, 1997 teve outros filmes que não eram ‘Titanic’

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US.

1997 foi um ano e tanto para o cinema: Boogie Nights. Jackie Brown. O Doce Amanhã. Mera Coincidência. Amores Divididos. Gênio Indomável. Tempestade de Gelo. Amistad. Melhor É Impossível. Gattaca. E muitos outros, culminando com o que se tornaria o filme de maior bilheteria de todos os tempos: o muito esperado, às vezes vilipendiado, mas impossível de parar Titanic. Cada semana trazia outro filme marcante – às vezes dois ou mais, se arriscando, contando histórias poderosas, introduzindo novos talentos e reafirmando a habilidade dos produtores. Vamos relembrar esses filmes, examinando não apenas os méritos particulares de cada um, mas o que eles nos dizem sobre a indústria de 20 anos atrás, e para onde o cinema vai agora.

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Em seu livro publicado com anotações de um antigo diário, Theft By Finding, David Sedaris escreve sobre, no dia 5 de outubro de 1997, assistir o longa de Morgan Freeman e Ashley Judd Beijos que Matam, um dos grandes sucessos daquela temporada. “Sentei ao lado de um estranho e 20 minutos depois estávamos cutucando um ao outro e revirando os olhos”, ele escreve. “Pra piorar, tive que ver outra prévia de Titanic. Quem eles acham que vai assistir esse filme?”

É muito Sedaris compartilhar essa previsão besta, mas ele não foi o único. O sucesso sensacional de Titanic e sua onipresença cultural nublam o fato de que, meses antes da estreia, o filme tinha todas as marcas registradas de um fracasso: uma produção que ultrapassou o prazo e o orçamento, obrigando o estúdio a remarcar a estreia (marcada originalmente para 2 de julho, mas eles precisaram de mais tempo para completar os efeitos especiais). Naquele outono, parecia improvável que o filme fosse recuperar o investimento de US$ 200 milhões. Era muito mais fácil apostar que quem levaria o Oscar daquele ano seria Steven Spielberg ou Martin Scorsese do que o diretor de Aliens e Exterminador do Futuro 2.

E sim, o filme começa com um típico longa do James Cameron, inicialmente uma aventura de caça ao tesouro num navio afundado, com uma equipe estilo Aliens. Mas logo depois, enquanto o capitão de Bill Paxton fala animado demais sobre o navio, um subordinado responde “Você fala muita merda, chefe” – uma fala que vai direto no coração do filme, juntando ação contra romantismo descarado.

A brincadeira meramente estabelece um cenário, pensado para colocar a envelhecida Rose (Gloria Stewart) no meio deles para contar a história do afundamento do Titanic. Mas primeiro eles contam a ela, através de uma animação de computador dos aspectos técnicos do desastre – um toque maravilhoso de eficiência narrativa, permitindo que o público saiba exatamente o que está acontecendo durante as sequências do afundamento mais tarde (e mais importante, o que vem depois).

Mas primeiro, romance: o Jack de Leonardo DiCaprio e seu amigo com sotaque Chico Marx conseguem entrar no navio depois de uma mão de sorte no baralho, o que é importante; o momento “rei do mundo” dele na proa do navio depois pode parecer ridículo, mas tinha algo de sincero ali, um senso de escapada, de possibilidades ilimitadas até onde a vista alcança. (A mesma noção ressoa em Gênio Indomável.) Ele conhece a Rose de Kate Winslet num encontro cuidadosamente escrito, e logo de começo, a química deles é eletrizante – sem dúvida o filme teria flopado se não fosse pelo calor das cenas do desenho nu (censura 13 anos!) ou do carro com os vidros embaçados.

Mas o amor deles é impossível, não só porque Rose é noiva (do vilão de desenho animado Billy Zane), mas porque eles são de mundos diferentes. Titanic não tem muita finesse quando o assunto é política de classes, o que está presente não só em como os passageiros ricos tratam o Jack (“Fale sobre suas acomodações de terceira classe, Sr. Dawson”), mas na “nova rica” Molly Brown (interpretada por Kathy Bates, que entra no filme chutando a porta). Cameron se deleita em intercalar o pessoal pomposo do salão de jantar com a diversão mais terrena dos passageiros de classe mais baixa no porão do navio; a sequência é meio paternalista, mas funciona.

Aí, aos 98 minutos, vem o golpe: “Icebergue à frente!” De repente esse é um filme do James Cameron de novo: cinematográfico, tenso e visceral. O afundamento acontece basicamente em tempo real, com pausas de calma durante a tempestade (depois do impacto, mas antes do navio começar a afundar), e mostrando os músicos (“Bem alegre, como se não houvesse pânico”). A outra metade não é, pela maioria das definições, um filme de ação – mas nesse ponto, Cameron claramente se sente empoderado para confiar nas coisas emocionais, para “falar merda”. Então ele nos dá as cenas de partir o coração das despedidas nos botes salva-vidas e a imagem que ficou mais tempo na minha cabeça: um casal idoso, deitados lado a lado na cama, abraçados enquanto a água sobe embaixo deles.

Os efeitos do afundamento são muito críveis, assim como o trabalho dos dublês, com passageiros pulando do barco e caindo como moscas enquanto o navio tomba. Mas o que fica da sequência é a voz do padre liderando as orações dos passageiros presos no navio e a Rose pedindo para o bote salva-vidas voltar – assim como seu amor perdido.

Hoje, não é legal dizer que você gosta de Titanic – e, honestamente, é difícil dizer que uma coisa que tem ligação com um sucesso da Celine Dion é legal. E claro, Titanic é brega e óbvio – mas a sinceridade das emoções e o poder de seu espetáculo continuam, particularmente quando os dois elementos se juntam às majestosas imagens finais: uma visão de sonho onde o navio é trazido de volta de seu túmulo aquático não só para sua antiga glória, mas como uma versão melhorada de si mesmo. Com todos os passageiros reunidos no salão de jantar, onde Jack pode receber sua Rose com um beijo que não precisa mais ser em segredo.

Talvez 1993 tenha sido o ano de maior triunfo de Steven Spielberg, quando ele lançou os dois maiores blockbusters de sua carreira (e de qualquer outra), com Jurassic Park e seis meses depois A Lista de Schindler, que finalmente deu a ele o Oscar de melhor direção. Em 1997, houve uma tentativa de replicar a fórmula, bem descaradamente mas com menos sucesso: naquele verão saiu O Mundo Perdido: Jurassic Park, um dos filmes de menor sucesso dele, e o longa sério Amistad, que foi recebido com indiferença. E de fato, Amistad tem seus problemas – mas também tem duas das sequências mais vívidas da filmografia dele.

A primeira sequência abre o filme: um close impossivelmente próximo do olho de Cinque (Djimon Hounsou), enquanto o som de sua respiração enche a trilha sonora. Seus dedos tiram um prego do chão de madeira molhado e leva até suas correntes, e quando ele consegue se libertar, ele começa uma rebelião de escravos no navio, uma imagem capturada principalmente pelos feixes de luz acima deles. É um jeito ousado de começar um filme, violento e visceral – e Spielberg supera isso cerca de uma hora depois com uma reencenação da Middle Passage que trouxe os escravos africanos para os EUA. É um retrato de barbárie, caos e horror inimaginável.

Spielberg não tinha filmado violência assim antes, com tanta intensidade e medo, mas faria de novo – apenas seis meses depois em O Resgate do Soldado Ryan. As outras duas horas de Amistad não se comparam com essas sequências, e (talvez felizmente) Spielberg não tenta. No final das contas, o filme é um drama de tribunal onde várias partes lutam pelo destino dos “bens”, ou seja, Cinque e seus colegas escravos.

Para Amistad, Spielberg juntou um elenco matador de grandes atores, incluindo Morgan Freeman, Stellan Skarsgård, Nigel Hawthorne, Dave Paymer, Pete Postlethwaite, Paul Guilfoyle, Jeremy Northam, Chiwitel Ejiofor (em seu primeiro filme) e Anthony Hopkins como um Jonh Quincy Adams meio bocó. Mas ele errou escalando Matthew McConaughey, que está contemporâneo demais no papel do advogado oportunista Baldwin.

O roteiro de David Franzoni conta muitas histórias: a luta de Cinque, as atualizações de Baldwin, a última comemoração de Adams (e sua avaliação do legado do pai). Talvez histórias demais, especialmente sobre os heróis brancos. Mas Hounsou está incrível, e seu discurso para Adams (“Vou chamar meus ancestrais… porque neste momento eu sou a única razão para eles terem existido”) inspira o ex-presidente a entregar uma grande oratória nas passagens finais.

“O estado natural da humanidade”, ele insiste, “é liberdade… e a prova é até onde um homem, mulher ou criança vai para reganhar a sua quando ela é tomada. Ele vai quebrar suas correntes. Ele vai dizimar seus inimigos. Ele vai tentar e tentar e tentar contra todas as chances, contra todos os preconceitos, voltar para casa.” Amistad pode não ser a sequência espiritual de A Lista de Schindler que devia ser, e pode não ser o primeiro, ou quinto, ou décimo filme que as pessoas vão mencionar quando o nome do diretor surge. Mas tem mais momentos de arrepiar que os melhores trabalhos de muitos diretores, e isso diz muita coisa.

O conceito-chave articulado no discurso de John Quincy Adams – até onde uma pessoa vai para voltar para casa – ressoa com as passagens de encerramento de Kundun de Martin Scorsese, que mostra o décimo quarto Dalai Lama (Tenzin Thuthob Tsarong) olhando por um telescópio para a cidade que ele acabou de deixar para trás enquanto letras declaram que ele pretende voltar um dia. Quando Bob Dylan explica como a letra de “Like a Rolling Stone” deu ao documentário de Scorsese No Direction Home seu título – que sua vida inteira foi uma busca por um lar que não estava lá – ele dá a chave que abre não só seu próprio trabalho, mas a de seu biógrafo cinematográfico também. “Lar” é uma perspectiva elusiva, e em muitos casos, impossível de obter.

Kundun parece o mais longe possível de um “Filme do Martin Scorsese”, mas carrega a chave temática e preocupações filosóficas de toda sua filmografia: a importância do ritual (a linha que conecta filmes “típicos” de Scorsese como Caminhos Perigosos e Taxi Driver até coisas como A Época da Inocência), a noção de líderes religiosos como divinos e totalmente humanos ao mesmo tempo, ver esses líderes não como representante mas como reflexões (“como a lua na água; quando você me vê, e eu tento ser um bom homem, você vê a si mesmo”). E como seus trabalhos mais explicitamente religiosos, A Última Tentação de Cristo e Silêncio do ano passado, ele olha com admiração para aqueles que se colocam nas mãos do destino, e confiam nesse destino (e nessa fé) para guiá-los.

“O que posso fazer?”, pergunta o Dalai Lama. “Sou só um garoto.” Mas ele tem que saber o que fazer, lhe dizem, porque ele não é um garoto mas uma alma reincarnada. A crença no coração do Budismo, que cada Lama de sucesso é a nova incarnação dessa manifestação humana de Buda, deu a roteirista Melissa Mathison o maravilhoso truque narrativo de um personagem principal que descobre sua história junto com o público.

Mas a falta de ceticismo cercando essa noção em Kundun é uma de suas melhores qualidades. Mathison e Scorsese são, se não crentes, artistas que contam sua história como crentes, e o filme pode ter sofrido comercialmente porque os dois, sendo de fora, escolheram contar essa história de dentro; não há um suplente para o público branco – nenhum Brad Pitt como ponto de entrada, como Jean-Jacques Annaud fez em Sete Anos no Tibet, que saiu antes naquela mesma temporada.

Kundun é um dos filmes menos vistos do diretor, mas vale a pena procurar. É um longa desafiador – episódico na narrativa, às vezes muito emocional, resistindo sempre à tentação se tornar uma narrativa convencional (eles poderiam ter focado na batalha bombástica de bem contra o mal com o governo Chinês, digamos, ou feito um final estilo Grande Escapada para o exílio do Lama na Índia). Em vez disso, Scorsese conta sua história com a fotografia belíssima de Roger Deakins e a trilha sonora original de Philip Glass, uma combinação de imagem e som que dá ao filme uma sensação de arte não-narrativa, tipo Koyaanisqatsi. Em outras palavras, não é exatamente Os Bons Companheiros. Mas não é todo diretor que consegue criar trabalhos tão divergentes quanto Os Bons Companheiros e Kundun.