Como sobrevivi a um câncer na cadeia

O sangramento começou em abril de 2013 e não parou mais.

Quando cheguei a Unidade Woodman no ano anterior, passei por uma série de exames durante o processo de registro: exames de sangue, avaliação psicológica e um exame pélvico. Após as atividades iniciais, as coisas foram avançando mais lentamente. Fiz outro exame pélvico dois meses depois. Quando meu segundo Papanicolau mostrou células com crescimento anormal, me disseram que eu seria informada de qualquer novo passo – se eu precisasse de mais tratamento. Achei que o Departamento de Justiça do Texas* seria responsável pelo meu tratamento médico. Confiei que o sistema cuidaria da minha vida, uma tarefa em que eu obviamente tinha falhado. Quando fui transferida para a Unidade San Saba, acabei esquecendo da minha saúde ginecológica, como fiz por anos.

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Até que o sangramento começou. Quando isso continuou por um mês, fiz uma requisição pedindo uma consulta com o assistente médico, a coisa mais próxima de um médico de verdade na equipe da prisão. Ele fez outro exame pélvico e disse “Estou vendo que o sangramento está sendo causado por uma grande lesão no seu cérvix”. De repente lembrei daquelas células anormais de nove meses antes.

“O quê?”, ele disse, surpreso. “Por que eles não te trataram quando descobriram?”

“Me diz você”, respondi. Ele me garantiu que eu deveria esperar ser transportada com outras prisioneiras doentes para o hospital em Galveston nos próximos dias. “Essas coisas levam tempo para se tornarem um câncer”, ele disse. “A menos que você esteja livre.” O humor dele me desarmou e eu ri em voz alta. Ele disse que eu entraria e sairia do hospital em um dia, provavelmente.

Isso me fez sentir melhor no momento. Mas não era verdade.

Cada dia em que não era chamada para a transferência médica, eu me sentia mais e mais ansiosa. Duas semanas depois, pedi outra consulta. Mais duas semanas se passaram antes de me sentar na mesa de exames coberta de papel da unidade médica da prisão. O quase médico não sabia da minha requisição, ele disse. Ele tinha me chamado para falar sobre os resultados do meu exame de laboratório. “Seus exames mostram HSIL”, ele disse. Quando perguntei o que isso significava, ele respondeu “Lesão intraepitelial escamosa de alto grau”. Não era exatamente uma explicação, mas entendi que era má notícia. Com uma expressão sombria e sem oferecer nenhum alívio cômico, ele disse que eu deveria ir para Galveston o mais rápido possível. Ele fez um pedido para agilizar meu transporte. Eu deveria ser transferida nos próximos dias, ele disse.

“Já estou esperando há um mês!”, implorei. “Só mais alguns dias”, ele prometeu.

Mais alguns dias passaram, aí mais algumas semanas. Entre a espera, o sangramento e a incerteza, o stress atacou meu estômago. Tudo que eu comia me deixava enjoada. Tentei me acalmar fazendo visualizações de cura. Tentei aceitar o que eu não podia mudar.

Mas eu estava determinada a conseguir tratamento para a minha condição. Voltei ao médico várias vezes no mês seguinte. Toda vez eu tinha esperança de finalmente conseguir tratamento. Mas nunca chamavam meu nome para a transferência.

Exatamente quatro meses depois que o assistente médico me disse “dias” pela primeira vez, fui não para o hospital em Galveston, mas para a Unidade Crain em Gatesville, para ver um ginecologista da prisão. Esperei que o choque que vi no rosto da enfermeira e dos médicos durante meu exame pélvico gerasse alguma ação. Ouvi o que eles estavam falando para o guarda fora da minúscula sala de exame.

“Os exames dela indicam uma condição séria que precisa ser abordada imediatamente”, o jovem médico disse. “Não podemos fazer uma biópsia porque o tumor está sangrando muito. Você pode colocá-la num ônibus para Galveston daqui?”

“Logisticamente pode não ser possível”, foi a resposta do guarda. “Vou verificar.”

Fui mandada de volta para San Saba sem nenhum comentário. Dessa vez tive certeza que estaria no próximo transporte para Galveston. Meu estômago estava revirado enquanto eu esperava pelo anúncio dos nomes às 10 da manhã daquele dia.

Quando não fui chamada, fiquei confusa, indignada e desanimada. Como eles podiam me deixar continuar assim? Fiz outra requisição médica. Eu sabia que algo estava desesperadamente errado. Eu estava com medo e estava enfurecida. Vou morrer na prisão por uma condição que poderia ter sido corrigida por um procedimento ambulatorial de 15 minutos meses atrás? Alguém ia perceber? Eu esperava que dias melhores ainda estivessem por vir. Eu esperava uma nova vida sóbria depois que saísse. Eu viveria tempo suficiente para isso?

A raiva me fez agir. Quando não recebi resposta para minha requisição, escrevi uma linha do tempo detalhada dos meus sintomas, consultas, exames de laboratório e das muitas falsas promessas de que eu receberia tratamento “daqui alguns dias”. Inclui os médicos em Gatesville dizendo que eu precisava ir para o hospital imediatamente. No topo escrevi: “Cópia duplicada para ser incluída num processo jurídico em potencial”.

Ah, essas palavras conseguiram atenção rápido. Processos de dentro da prisão são difíceis de ganhar, mas estava começando a parecer – para mim, pelo menos – um padrão inegável de negligência.

Quatro horas depois de colocar a linha do tempo na caixa de requisições médicas, eu estava sentada no pequeno escritório da enfermeira. “Foi bom você ter nos alertado sobre isso”, ela disse, os olhos enrugados de preocupação. “As instruções do médico estavam escritas no lugar errado, então você nem estava na lista de transferência.”

“Estou sangrando constantemente e as coisas só pioram”, eu disse. “Tenho medo que minha vida esteja em jogo.”

Ela me olhou com compaixão. “Trabalho aqui há bastante tempo e nunca vi ninguém passar despercebida desse jeito”, ela disse. Isso deveria me fazer sentir melhor? “Não é assim que operamos normalmente”, ela continuou. “Quer dizer, sei que você quer processar e não estou dizendo que não deveria. Só quero que você saiba que essa não é a norma.”

“Não quero processar!”, eu disse, frustrada. “Quero tratamento médico! Meu objetivo é salvar minha vida.”

Quando o gerente da unidade e o capitão entraram no escritório apertado, me senti exposta e pequena enquanto eles me olhavam de cima, formais e sérios em seus uniformes engomados. Tive um desejo instintivo de fugir, como se tivesse com problemas. Mas fiquei grudada na minha cadeira plástica.

O capitão falou primeiro. “Fomos informados da sua questão com a equipe médica e queremos nos desculpar. Gostaríamos que você soubesse que estamos trabalhando para arranjar seu transporte”, ele disse. “Você deve partir muito, muito em breve.”

Meu queixo caiu. Ele queria se desculpar? Eu nunca tinha ouvido uma coisa dessas.

Naquela mesma noite, uma guarda me acordou de um sono profundo e me instruiu a levar apenas o essencial: escova de dentes, chinelos de banho. “Outro guarda vai empacotar suas coisas”, ela disse. “Deixe tudo aí. Vamos agora.” Ela fechou a porta para os meus pertences, minhas amigas e meu lar pelo último ano.

Fui algemada pelas mãos e pés para uma viagem de sete horas até Galveston. As correntes se arrastavam enquanto eu caminhava até a van. Com cada passo eu me sentia mais leve, meu espírito se enchendo de gratidão por finalmente receber atenção médica. Me distanciei de todo o stress e sofrimento naquele momento.

Três dias depois, fui oficialmente diagnosticada com câncer cervical, e comecei outra jornada longa e árdua de químio e radioterapia. Recebi cuidados excelentes, e respondi bem ao tratamento. O tumor se dissolveu. Me tornei uma guerreira. Primeiro lutei pelos meus direitos, depois pela minha vida. E nunca desisti de lutar.


* Depois de pedidos de comentários, um porta-voz do Departamento de Justiça do Texas disse numa declaração que eles “garantem que todos os 145 mil detentos em nosso sistema recebam cuidado médico de alta qualidade. Além de atendimento médico disponível em todas as nossas enfermarias, os detentos também são tratados na nossa Unidade Hospitalar de Galveston, Texas, e em algumas instalações privadas. Nossa Divisão de Serviços de Saúde monitora constantemente a entrega de cuidado de qualidade e investiga queixas médicas. Devido ao HIPAA não podemos comentar sobre casos individuais”.

Heather Hodges, 46 anos, foi libertada da Instalação Médica Carole Young em Dickison, Texas, em 27 de julho de 2018, depois de cumprir cinco anos por tráfico de drogas. Ela está escrevendo um livro de memórias sobre sua luta com o câncer, e planeja criar uma organização para viciados em recuperação e cães resgatados trabalharem juntos em serviços para a comunidade.

Matéria originalmente publicada na VICE US.

Matéria publicada em colaboração com o Marshall Project. Assine a newsletter deles.

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