Este artigo foi originalmente publicado na VICE UK.
Nos últimos 12 anos a Faixa de Gaza tem estado sujeita a um cerco brutal, quase ao estilo medieval. Um cerco imposto por Israel depois da eleição do governo do Hamas, em 2006, com o objectivo claro de levar a cabo uma “guerra económica“: bloquear todas as actividades económicas em Gaza e, como consequência, virar a população contra os dirigentes.
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Para atingir este fim, as importações foram restritas àquilo que os burocratas israelitas consideraram necessidades básicas humanitárias, enquanto as exportações foram praticamente proibidas. Ao mesmo tempo, o número de autorizações de saída emitidas a habitantes de Gaza foi drasticamente reduzido. Enquanto a sua economia sufocava e as condições de vida decaiam a pique, as pessoas de Gaza, cercadas por terra, mar e ar, estavam impossibilitadas de fugir. Aliás, Gaza transformou-se – nas palavras do ex-primeiro ministro britânico, David Cameron – num “campo de prisioneiros“.
No que respeita aos reclusos deste campo de prisioneiros, Gaza é uma das áreas mais densamente povoadas no Planeta, com aproximadamente dois milhões de pessoas amontoadas num espaço estreito ao longo da costa mediterrânea. Mais de 70 por cento da população de Gaza são refugiados – pessoas que, em 1948, foram expulsas das suas casas à força e os seus descendentes. Esta terça-feira, 15 de Maio, assinala-se o 70º aniversário da sua perda existencial e do tormento permanente. Mais de metade da população de Gaza são crianças com menos de 18 anos. Estas realidades humanas devem ser confrontadas honestamente e não serem disfarçadas por detrás de abstracções mais confortáveis. As desgraças pelas quais Israel e os seus aliados estão a fazer as pessoas de Gaza passar, são sofridas primeiramente pelas crianças.
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Em 2015, a taxa de pobreza em Gaza chegou aos 39 por cento, apesar de 80 por cento da população receber ajuda humanitária, enquanto a taxa de desemprego chegou aos 43 por cento – provavelmente a mais alta do Mundo. O desemprego jovem, desconcertantemente nos 60 por cento, é o mais alto da região. Em 2008/9 e 2014, os ataques militares israelitas de larga escala deixaram mais de duas mil e 500 pessoas mortas – maioritariamente civis, incluindo 900 crianças – e cerca de 24 mil casas destruídas.
Mais especificamente, a capacidade do território de suportar habitação de larga escala foi destruída. Cerca de 96 por cento da água canalizada em Gaza já não é potável e o único aquífero da região está no limiar da contaminação irreversível. As Nações Unidas alertaram em 2015 para o facto de que Gaza poderá estar inabitável em 2020. O líder do departamento de inteligência do exército israelita concordou com este alerta e as Nações Unidas actualizaram o relatório em Julho de 2017 considerando a primeira versão demasiado optimista.
Nas últimas sete semanas, as pessoas de Gaza mobilizaram-se às dezenas de milhares para protestar contra o o destino que a humanidade, em consciência e com conhecimento de causa, lhes deu. Segundo fica claro nas avaliações da ONU, os palestinianos em Gaza estão a sofrer não só pelos seus direitos, mas também para impedir a sua extinção colectiva. A “The Great Return March”, como é conhecida, tem sido esmagadoramente não violenta, incluindo marchas pacíficas, reuniões e protestos passivos.
Face à provocação extrema por parte de Israel, nem um único tiro foi disparado pelos Hamas ou por qualquer outra facção palestiniana, não obstante as crescentes tentativas desesperadas por parte do governo israelita e dos seus propagandistas para tentarem retratar os protestos como uma ameaça militar, Israel não sofreu uma única baixa.
Não se pode dizer que Israel tenha respondido com gentileza. No decorrer do que a Amnistia Internacional descreve como “ataques assassinos” contra “manifestantes que não constituem uma ameaça iminente”, as forças de Israel já tinham até ao dia 10 de Maio morto 40 palestinianos, incluindo cinco crianças e ferido seis mil e 800, incluindo dois mil com munições reais. Na maioria dos casos fatais que a Amnistia Internacional analisou, umas vítimas tinham sido atingidas no tronco, cabeça e peito, enquanto outras tinham sido atingidas por detrás.
Na segunda-feira, 14 de Maio, à hora que escrevo, 38 (e a subir) palestinianos tinham sido mortos e mais 900 feridos – 450 por balas vivas – enquanto protestavam contra a instalação da embaixada dos EUA em Jerusalém [o número de mortos entretanto subiu para os 60]. Os manifestantes continuaram comprometidos com a não-violência, mesmo tendo de enfrentar os assassinatos, o que representa um verdadeiro acto de humildade e coragem do colectivo.
A onda de mortes levada a cabo por Israel não foi nem acidental nem resultado de uma iniciativa individual por parte dos soldados israelitas. Quando, como descobriu a organização de direitos humanos israelita B’Tselem, “soldados – incluindo franco-atiradores – dispararam durante horas contra manifestantes”, estavam a implementar a política oficial. Depois da primeira manifestação, o chefe da equipa militar de Israel anunciou que 100 franco-atiradores seriam mobilizados na fronteira. “As ordens são para usar muita força”, alertou. O ministro da Defesa israelita declarou que, “qualquer um que se aproximar da vedação, está a colocar a sua vida em risco” e depois disse que “não há inocentes em Gaza”. “Os soldados israelitas não estão apenas a usar força excessiva”, concluiu a Human Rights Watch, “mas aparentemente a agir sob ordens que garantem uma resposta militar sangrenta a manifestações palestinianas”.
Fiel ao seu manual de relações-públicas padrão, Israel tem justificado a política letal em Gaza com base em auto-defesa. Mas, sob as leis internacionais, Israel não tem direito de usar violência para manter uma ocupação ilegal ou um cerco criminoso. Organizações de direitos humanos de todo o Mundo condenaram o cerco a Gaza como uma “punição colectiva” (Comité Internacional da Cruz Vermelha), “numa violação flagrante da lei internacional” (Amnistia Internacional). Um inquérito do Conselho de Direitos Humanos da ONU, da autoria de um juiz do estado de Nova Iorque, exigia que o bloqueio de Gaza fosse retirado “imediata e incondicionalmente”. Uma exigência que em Abril de 2018 foi reiterada pela maioria do Parlamento Europeu.
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Existem alternativas políticas concretas em linha com a lei internacional disponíveis. No nível mais básico, a melhor alternativa a disparar sobre crianças foi sugerida pelo coordenador especial da ONU para o Processo de Paz no Médio Oriente: “Parem de disparar sobre crianças”. De forma mais lata, há anos que o Hamas tem vindo a comunicar a Israel o seu desejo de firmar um cessar-fogo recíproco de longo prazo para colocar um fim ao cerco ilegal. “As exigências e condições nunca foram discutidas”, relata um correspondente militar israelita, “já que Israel se recusa a falar com o Hamas”. De maneira mais geral, Israel pode acabar com o seu repúdio pelo consenso internacional de uma solução dos dois estados e assim tornar possível uma resolução pacífica para o conflito. Enquanto se recusa a dar esses passos, Israel não pode caracterizar a sua violência em Gaza, ou mesmo na Cisjordânia, como defensiva. Em vez disso, o massacre em Gaza está a ser perpetrado para manter um regime ilegal.
Os palestinianos passam a vida a ouvir coisas sobre os méritos de Gandhi. O esforço em Gaza será visto como um teste sobre a eficácia da abordagem não-violenta; o seu sucesso ou fracasso vai ajudar a determinar o carácter dos futuros esforços para acabar com a ocupação. Mas, como diz, de forma sucinta, a manchete do Guardian: “A não-violência palestiniana exige o não-silêncio global”. As pessoas de Gaza dependem de nós para tornar a estratégia da não-violência viável, no seu momento de maior necessidade.
Se as manifestações em Gaza receberem mostras de solidariedade de todo o Mundo, Israel pode ser induzido a mudar a sua abordagem em Gaza e um futuro melhor para a região pode estar ao alcance. Exactamente quanta pressão é necessária para que as forças israelitas recuem, é difícil prever. Mas, uma coisa é certa: enquanto os habitantes de Gaza tentam escapar do seu campo de prisioneiros, a sua única protecção, a sua única armadura, a sua única defesa contra um muro de franco-atiradores israelitas, somos nós.
Muhammad Shehada é um escritor e activista da Faixa de Gaza. Desenvolve Estudos de Desenvolvimento na Universidade Lund, Suécia, e foi investigador de campo e chefe de relações-públicas no escritório de Gaza do Euro-Med Monitor for Human Rights.
Jamie Stern-Weiner é britânico-israelita e editor de “Moment of Truth: Tackling Israel-Palestine’s Toughest Questions“ (OR Books, 2018).
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