Esta matéria foi originalmente publicada na VICE Canadá .
Prefácio: Esta matéria não dá nenhum link para artigos ou vídeos que chamam o tiroteio na mesquita em Quebec de farsa, ou usam o tiroteio para propagar agenda xenofóbica.
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Quando uma tragédia acontece, os humanos tendem a mostrar o melhor de si.
Em resposta ao atentado numa mesquita em Quebec, vigílias foram realizadas por todo o Canadá em memória dos seis homens assassinados enquanto rezavam. Mais de $200 mil foram levantados por uma campanha no GoFundMe para as famílias das vítimas, e políticos de todas as inclinações denunciaram o ataque. Mas enquanto a maioria do mundo ainda estava em choque, alguns já começavam a desacreditar o tiroteio como uma operação de “bandeira falsa”, ou usá-lo para propagar sua agenda xenofóbica.
Simplificando, um movimento de teorias da conspiração cercando o atentado de Quebec já começou.
Ainda há muitas coisas que não sabemos sobre o ataque, mas estamos começando a ter uma ideia do que aconteceu. Segundo a polícia, Alexandre Bissonnette, um morador de Quebec de 27 anos, entrou no Centre Culturel Islamique e disparou contra a multidão, matando seis homens. Sabemos que ele chamou a polícia e se rendeu mais tarde naquela noite. Bissonnette foi descrito por conhecidos como um troll da extrema-direita na internet, mas no momento, os motivos por trás do ataque continuam desconhecidos.
Durante o começo da cobertura do caso pela imprensa, trechos de informação foram divulgados rapidamente, sem dar tempo suficiente para confirmação. Era difícil saber o que era verdade, e tanto a mídia de esquerda como de direita foram obrigadas a corrigir relatos anteriores sobre um segundo atirador e outras informações do tipo — muitas delas desmentidas depois. Sabemos, porém, que um homem chamado Mohamed Belkhadir foi preso na cena, mas liberados doze horas depois como testemunha. Belkhadir descreveu o que aconteceu com ele naquela noite para o Toronto Star.
Mas para alguns, esses fatos não foram suficientes.
Os dois meios de comunicação mais importantes propagando narrativas de conspiração, explícita ou implicitamente são o InfoWars e Canada’s Rebel Media. Afora esses meios, outros vídeos produzidos de maneira independente já foram publicados no YouTube “desacreditando” o tiroteio, e milhares de palavras manipuladas foram escritas em blogs pela internet. A administração Trump também usou o atentado como justificativa para a proibição da entrada de cidadãos de sete países de maioria muçulmana nos EUA.
Lenny Pozner, que perdeu o filho no atentado de Sandy Hook e depois fundou o Honr, uma organização anti teorias da conspiração, disse que não estar surpreso com o movimento que se criou ao redor do evento.
“É um movimento social, tudo isso, os padrões são os mesmos. Qualquer evento com mortes em massa é rotulado como conspiração ou farsa, qualquer erro nas notícias é imediatamente usado como evidência de conspiração”, disse Pozner à VICE.
“Eles movimentam [sua base de seguidores] com ansiedade. O termo ‘pornô de medo’ tem sido usado para descrever alguns desses canais do YouTube. É isso que eles fazem, eles incitam medo nas pessoas… geram ansiedade para atrair mais gente.”
O padrinho das teorias da conspiração modernas, Alex Jones, levou Matt Bracken, um ex-soldado da Marinha e “especialista em terrorismo”, para seu programa semana passada. Juntos eles discutiram como o ataque em Quebec é “um perfil clássico de bandeira falsa”. Eles dizem que o atentado foi realizado para prejudicar Trump ou incitar revoltas contra a proibição da entrada de muçulmanos nos EUA.
“Tem algum Dr. Raul X por aí organizando esses atentados”, disse Bracken a Jones. “Não será o último, acredite em mim, não será o último.”
Jones concordou com Bracken e disse que a operação de bandeira falsa foi prejudicada porque Bissonnette não foi morto.
“Isso teria legitimado o caso, tipo ‘ah, olha o que esse simpatizante de Trump fez’ mas ele sobreviveu, o idiota controlado ou facilmente influenciado viveu, você vê isso agora”, disse Jones. “Matt, você tem toda a razão, eles tinham a coisa toda armada.”
Os dois também se focaram em Mohamed Belkhadir, que acreditam estar envolvido porque, se você faz uma bandeira falsa numa mesquita, você usa um muçulmano. Eles também discutiram brevemente a possibilidade de Belkhadir ter radicalizado Bissonnette como terrorista islâmico. Jones e Bracken terminaram sua conversa dizendo que é provável que Bissonnette seja morto na cadeia e que o assassinato seja disfarçado de suicídio –— então Jones, como sempre, passou a fazer a propaganda de seus produtos de bem-estar para os ouvintes.
Pozner, que acreditava em teorias da conspiração, chamou Jones de um dos líderes de um “movimento social de ilusão em massa”.
“Claro, Alex Jones é carismático, ele é um líder e para um movimento social você precisa de algo assim. É quase como um culto, há um comportamento de culto, eles têm algumas regras gerais para seu sistema de crenças. E isso está crescendo, esse movimento social está realmente se expandindo.”
Mas Alex Jones não é o único. Alfred Webre, advogado e teórico da conspiração, disse na Press TV (a rede de TV estatal iraniana) que Bissonnette “se encaixa em todos os fatos como um peão da CIA nesse caso”. Webre continuou dizendo na entrevista ao vivo que como Bissonnette tem um irmão gêmeo e seu pai era militar, ele “se encaixava em todos os perfis do MK Ultra”.
Vários outros vídeos e blogs ecoam essa crença de Webre.
A Rebel Media, muito como o InfoWars, também se agarrou à ideia de que Belkhadir tinha mais a ver com o crime que simplesmente ter testemunhado os disparos. Mesmo antes que o nome de Belkhadir fosse anunciado, um vídeo foi divulgado dando a entender que muçulmanos de outra mesquita seriam responsáveis pelo ataque. Quando isso foi desmentido, eles continuaram com uma narrativa similar.
Num vídeo publicado no YouTube, Faith Goldy, a apresentadora, semeia dúvidas sobre a história oficial sob o pretexto de “fazer perguntas difíceis”. Ela foca no fato de que várias testemunhas ouviram o atirador gritar “Allahu Akbar” durante o ataque. Antes de mencionar qualquer coisa sobre Alexandre Bissonnette, Glody fala extensamente sobre Mohamed Belkhadir e insinua que ele tem mais a ver com o assassinato em massa do que a maioria acredita.
Ela também levanta dúvidas sobre os motivos para a demora da polícia em liberar as filmagens das câmeras de segurança fora da mesquita: “quando a polícia revisou as filmagens, por que eles demoraram mais de 12 horas para determinar que Bissonnette era o único suspeito?”
Vários blogs seguem a lógica de Goldy sobre as filmagens das câmeras de segurança, alguns indo ao extremo de acusar a polícia de Quebec de acobertar um ataque da Mossad israelense. Pozner disse que não é difícil para os teóricos da conspiração construir sobre as ideias iniciais com “provas” subsequentes. “Você pode fazer um vídeo sobre teoria da conspiração com seu celular em dois minutos, aí postá-lo no YouTube para o mundo todo logo depois”, disse Pozner.
“Você tem um coletivo com todos os imbecis do mundo colaborando na velocidade da luz com mais ideias loucas e desenvolvendo as ideias iniciais, aí você tem esse movimento social de realidade alternativa. Estamos no meio disso agora, ninguém mais sabe o que é verdade e eles estão questionando toda a mídia mainstream.”
No vídeo do Rebel Media, Goldy escolhe a dedo os fatos que usa e ignora os jornalistas que falaram com conhecidos de Bissonnette e o descreveram como um troll da extrema-direita, em vez disso sugerindo que eles estão pegando essas informações de “likes no Facebook”.
“A mídia mainstream não se preocupa em fazer perguntas difíceis, ficando obcecada com uma narrativa baseada em alguns likes no Facebook dele”, ela diz no vídeo. Ela fala de Bissonnette como um “indivíduo educado e introvertido de uma boa família” que não era violento, depois mostra o vídeo que ele fez para o desafio do balde de gelo da ALS.
O vídeo tem mais de 60 mil visualizações e vem sendo compartilhando loucamente entre a direita alternativa. Num vídeo mais recente, Goldy coloca cinco questões para o público e, novamente, gasta um tempo considerável focando em Belkhadir. No final ela pergunta: “Por que Justin Trudeau está microgerenciando essa situação?”
Os comentários do vídeo no YouTube estão cheios de pessoas dizendo que o ataque foi uma bandeira falsa ou um caso de “violência entre muçulmanos”. A maioria dos vídeos e blogs apresentam teorias diferentes, mas todos insinuam que uma operação de cobertura aconteceu — algo que, segundo Pozner, é parte do curso normal.
“Eventualmente a narrativa se torna mais cristalizada e é repetida. Agora há muitas narrativas diferentes sobre como o ataque foi uma farsa, e isso ainda vai evoluir”, disse Pozner. “As teorias da conspiração geralmente são muito elementares e não se tornam mais complexas.”
A lógica tradicional dita que deveríamos ignorar essas pessoas, que não devemos “alimentar os trolls”. No entanto, Pozner disse que essa tática tradicional não está funcionando e que o “movimento de ilusão em massa” está crescendo. Sendo assim, isso não é um câncer benigno.
Pozner está acostumado a receber ameaças de morte e sempre se certifica de não postar informações sobre sua localização nas redes sociais. É muito provável que esses teóricos da conspiração irão atrás de Belkhadir com a mesma intensidade.
“Essas ideias online passam para o mundo real. Em um evento do tipo, um cara entrou armado numa pizzaria para investigar um suposto cartel de exploração sexual infantil. Essa ficção bizarra acaba se infiltrando no mundo real”, disse Pozner. “A internet tem motivado pessoas a agirem no mundo real, isso não fica apenas online.”
Pozner disse que acredita que a melhor maneira de contra-atacar informações falsas e manipulativas é enfrentá-las de cara, não deixar que elas apodreçam num canto do Reddit, YouTube ou Facebook.
“O melhor jeito de equilibrar discurso de ódio é com contradiscurso, é isso que funciona no enquadramento de liberdade de expressão no nosso país”, disse. “Se você fica em silêncio diante de um discurso de ódio, o que permanece é discurso de ódio.”
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Tradução: Marina Schnoor