O autor (no canto direito) com o assassino de Gaddafi (do lado dele, o careca de lenço).
O dia em que conheci o assassino de Gaddafi já tinha começado de um jeito louco. Por uma cagada nossa, tínhamos entrado de carro na terra de ninguém entre duas milícias tribais que estavam lutando há dias. Tiros começaram a pipocar por cima do carro enquanto a gente desacelerava. Achamos que íamos morrer e ficamos surpresos por isso não ter acontecido.
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De volta ao hotel, fui direto ao frigobar pegar uma garrafa da horrível cerveja líbia sem álcool. “Ei!”, gritou um rebelde careca espalhado no sofá como um produtor arrogante de Hollywood prestes a prometer me transformar numa estrela. “Lembra de mim? Te conheço de Sirte.” Eu me desculpei e disse que nunca tinha estado em Sirte. Ele ficou puto e insistiu: “Te conheço de Sirte, a gente era amigo. Você me conhece. Eu matei o Gaddafi”. Olhei para ele e para a pistola na mesinha de centro e falei: “Ah sim, claro, qual o seu nome mesmo?”.
Ahmed Ali Muhammad al-Swayib é um filho de Bengasi de 35 anos, seus pais são de Misrata — a cidade mais afetada pela guerra, cujo centro ficou em ruínas depois de meses de sítio. Como muitos voluntários de Bengasi, Ahmed viajou ao oeste para lutar em Misrata. Mas diferentemente de muitos, ele não voltou correndo quase imediatamente para a relativa paz de Bengasi. Ao invés disso, ele lutou até o clímax da guerra em Sirte como atirador da brigada Leões do Vale de Misrata.
Eu já tinha visto esse cara antes, percebi. Careca, cara de louco, um olho meio torto, ele era o personagem principal de um vídeo feito momentos depois do assassinato de Gaddafi. No vídeo, um grupo de rebeldes cercava Ahmed, beijando sua cabeça e o proclamando assassino de Gaddafi. “Eu vi quando ele fez”, um deles dizia. “Eu vi esse cara matar Gaddafi com suas próprias mãos agora pouco.” Ahmed sorria timidamente e depois erguia suas pistolas no ar — os verdadeiros instrumentos que sintetizam a justiça líbia. Olhei para a pistola na mesa e para a pistola na cintura de Ahmed. As mesmas armas do vídeo: FN Five Sevens.
Mesmo num país cheio de armas, essas pistolas são muito raras. Fabricadas pela FN Herstal da Bélgica, só 360 foram mandadas para a Líbia, todas destinadas à Brigada de Elite 32, comandada pelo filho de Gaddafi, Khamis, ou para a guarda pessoal do ditador. O único lugar para se achar uma dessas era perto de Gaddafi. Tudo parecia bater, então me sentei com o cara para conversar.
Mas havia um problema: Ahmed não queria dar uma entrevista. Sua situação era complicada. Ele estava ficando num hotel três estrelas em Trípoli que não conseguia pagar — outra pessoa estava pagando as contas para ele — e nós dois sabíamos que aparecer publicamente como assassino de Gaddafi seria uma passagem só de ida para Haia. Claro, eu disse, nada de entrevista. Então liguei a função gravador de voz do meu Blackberry e o deixei em cima da mesa perto dele enquanto conversava com seu amigo.
Muhammad Juma al-Shoshni tem 25 anos, é de al-Khoms e afirma ter matado um dos filhos de Gaddafi, Mutassim. Nas suas palavras: “Éramos quatro observando o quintal de uma casa depois do combate. O pessoal do Gaddafi veio e começou a atirar na gente. Matamos dois e o terceiro disse: ‘Me deixe viver e conto um segredo. O primeiro cara no quintal é Mutassim’.”
“Mutassim começou a atirar com uma pistola quando vasculhamos o quintal. Acertamos — só de raspão — na garganta dele, que se rendeu. Levamos ele até um pequeno quartel e perguntamos: ‘Por que você está matando o povo líbio? Veja o seu pai. Antes vários carros cheios de pessoas seguiam ele, pessoas que diziam como ele era grande. Agora milhares estão levando ele à morte’.”
“Ele começou a discutir com a gente e me deixou puto, então eu disse para ele recitar a chahada — a declaração de fé muçulmana. Eu disse: ‘O povo líbio nunca vai te perdoar, mas talvez Deus tenha piedade de você’. Mas ele simplesmente sorriu e tocou o lenço mágico que tinha no pescoço, do tipo africano. Eu até coloquei minhas mãos na cabeça dele e disse: ‘Esse é o Alcorão, a última coisa e a primeira coisa’. Ele só sorriu e tocou aquela coisa demoníaca no pescoço, então atiramos nele. Depois pegamos aquele lenço e queimamos.”
Muhammad Juma al-Shoshni (vestido todo em jeans), que afirma ter matado Mutassim, filho de Gaddafi.
“Aí eu deitei no chão e comecei a chorar, meus amigos jogaram água em mim e disseram ‘Allahu Akbar, Allahu Akbar’. Alguns minutos depois, voltei ao normal. Quando estávamos em Sirte, eu acordava e rezava pedindo para Deus fazer meu coração mais forte, e Deus ouviu e me deu essa bênção.”
Tudo isso era muito legal, mas eu queria o Ahmed, e queria filmar ele. Meu motorista estava conversando com o cara em árabe, dizendo “Deus é grande” em alguns momentos propícios e traduzindo pedaços da história dele para mim. “Você sabe quais foram as últimas palavras de Gaddafi? Ele disse: ‘Isso é proibido, eu sou seu pai’. Então ele atirou nele!” E deu uma gargalhada de apreciação. Mas sempre que eu perguntava se o Ahmed deixaria a gente filmar sua história, ele balançava a cabeça, bravo. Muhammad piscou para mim e sussurrou que conseguiria arranjar isso. “Ahmed é um cara legal, mas um pouco louco. Não se preocupe, vou arrumar isso. Mas me diz uma coisa: quanto custa um iPad no seu país?”, disse ele.
No dia seguinte, Muhammad me chamou num canto do lobby do hotel. “Não se preocupe, vou ajeitar isso agora. Você vai conseguir sua matéria.” Ele foi para o quarto para convencer o Ahmed enquanto o cinegrafista arrumava o tripé num canto da sala. Alguns minutos depois, as portas do elevador se abriram e o Ahmed saiu, brandindo sua Kalashnikov como um Scarface vesgo líbio. Ele veio na minha direção, armou o rifle e o espetou no meu peito. Os recepcionistas do hotel se abaixaram atrás do balcão. Muhammad saiu do elevador atrás dele, branco, olhando para o chão. Os segundos seguintes passaram muito devagar.
“Eu não matei esse demônio por dinheiro”, disse Ahmed calmamente. “Matei por Deus e pela Líbia, você entendeu?” Eu tinha entendido. A voz dele estava embargada. “Vou matar o primeiro que tentar me pagar por isso. Vou matar essa pessoa com isso aqui”— ele enfiou o cano no meu peito de novo — “como matei Gaddafi. Você entendeu?” De novo, eu tinha entendido. Lentamente, me desculpei pelo aparente mal entendido. “Foi um engano”, persuadi o cara suavemente. “Pergunte ao Muhammad.” O Muhammad ficou olhando constrangido para o chão. Ahmed abaixou o rifle. O pessoal do hotel se levantou atrás do balcão. E todos nós sentamos e tomamos chá, suco de frutas açucarado e fumamos vários cigarros. Quando eles foram embora uma hora depois, voltei ao meu quarto e vomitei.
Ahmed Ali Muhammad al-Swayib, que afirma ter matado Muammar Gaddafi.
Durante o chá, Ahmed começou a chorar e se desculpou por ter me ameaçado. “Eu fico muito emotivo às vezes”, ele disse. “Tudo está sendo muito difícil. Às vezes não consigo me controlar.” Garanti que entendia como ele se sentia e que não precisava se desculpar. Eu estava em Londres quando Gaddafi foi morto e sempre que os comentaristas jogavam as mãos para cima horrorizados com a brutalidade do assassinato, eu só dava de ombros. Quem quer que tivesse feito isso, eu imaginava, provavelmente era um moleque de Misrata de 18 anos sofrendo de estresse pós-traumático que tinha ido para a guerra sem nenhum treinamento, que viu sua cidade ser destruída, sua família amontoada para se abrigar dos foguetes e seu melhores amigos serem mortos na sua frente. Era um final líbio para uma história líbia com uma justiça final brutal provavelmente merecida.
Mas a verdade, se é que a história de Ahmed pode ser considerada assim, era ligeiramente diferente. Ele era duas vezes mais velho que a maioria dos combatentes de Misrata, era um indeciso antes da guerra e tinha fama de ter mudanças de humor selvagens e perigosas mesmo entre seus camaradas. Talvez ele tenha matado Gaddafi, talvez não. Mas as pessoas no local achavam que sim e que ele estava no lugar certo na hora certa, com aquelas raras pistolas dos guarda-costas para provar. Eu tinha experimentado vividamente sua raiva repentina e seu choro de remorso igualmente inesperado. Se fosse para apostar em alguém que atiraria subitamente num prisioneiro desarmado, eu apostaria em Ahmed.
No dia em que saiu do hotel, ele me chamou de lado e sussurrou no meu ouvido: “Não confie em Muhammad. Ele é um mentiroso. Ele não matou Mutassim, ele só quer dinheiro. Só eu sou o assassino”. Ele parecia dizer isso mais com tristeza do que com orgulho. Alguns dias depois, num café de um hotel bombardeado em Misrata, conversei sobre Ahmed com Hashim, meu antigo contato na cidade. “Quem liga? Todo mundo quer dizer que matou o cara, mas foi um esforço em conjunto. Todos nós fizemos isso — todos os líbios. Foi um final perfeito. Eles foderam com o cara e mataram ele”. E sorriu vitoriosamente.
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