Trabalhadores que ficaram isolados na fazenda e sem receber salários. Crédito: STRE/SC.
O ano é 2016 e a escravidão — é difícil acreditar — ainda é notícia: o ambiente de trabalho de 156 catadores de maçã no interior de Santa Catarina passou, em 2010, por uma auditoria realizada por fiscais do trabalho do Estado. Ao levar em conta as condições de abrigo e tratamento dos trabalhadores no local, foram reveladas condições análogas à escravidão.
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Para começar, as carteiras de trabalho (CTPS) recolhidas em 2010 não foram devolvidas aos trabalhadores e, além disso, os funcionários ficaram dois meses sem receber o pagamento, não podendo retornar às suas casas, já que não havia dinheiro para o deslocamento.
Na fazenda inspecionada, foram encontrados nos alojamentos colchões com pregos expostos, sem roupa de cama e cobertores, mesmo que a fazenda se situe em uma das regiões mais frias do país. Os banheiros, por sua vez, não possuíam portas e eram juntos aos quartos, causando umidade excessiva. Também não foram encontrados instrumentos e materiais de limpeza que pudessem ser usados no ambiente.
Registro do alojamento onde os trabalhadores dormiam e descansavam, sem qualquer condição salubre. Crédito: SRTE/SC
Ainda assim, os fatos apontados pelos auditores fiscais não foram suficientes para a juíza Herika Machado da Silveira Fischborn entender que ali havia um caso análogo à escravidão. Em sua sentença, a juíza declarou:
“O fato de reter a CTPS [Carteira de Trabalho] somente causa, na realidade, benefício à sociedade. É cruel isto afirmar, mas é verdadeiro. Vive-se, na região serrana, situação limítrofe quanto a este tipo de mão de obra resgatada pelos auditores fiscais do trabalho que, na realidade, causa dano à sociedade” – e também, “[Os] Trabalhadores são, em sua maioria, viciados em álcool e em drogas ilícitas, de modo que […] gastam todo o dinheiro do salário, perdem seus documentos e não voltam para o trabalho, quando não muito praticam crimes.”
A magistrada do Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina alega que os agentes permitiram que os trabalhadores voltassem “ao ciclo vicioso de trabalho inadequado, vício, bebida, drogas, crack, crime e Estado passando a mão na cabeça”.
Escrito pelos trabalhadores da fazenda. Crédito: SRTE/SC.
Fischborn não só anulou parte da operação dos auditores, como também pediu que a Polícia Federal os investigasse, por acreditar que os auditores “praticaram crime” porque “forçaram, inventaram e criaram fatos inexistentes” — mesmo que tudo esteja documentado em fotos e relatos. A auditora fiscal coordenadora da operação, Lilian Carlota Rezende, relata não ter inventado fatos, e diz que sequer foi ouvida pela juíza, que teria extrapolado as suas funções. “[É um processo] que desde o início me condena de pronto, sem permitir minha defesa”, alega a auditora.
Segundo o artigo 149, do Código Penal, submeter alguém a situação análoga à escravidão — quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto — é crime com pena de reclusão de dois a oito anos, multa, além da pena correspondente à violência.
Contatada pela VICE, o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (SINAIT), com sede em Brasília, através de sua assessoria de imprensa, desaprova a sentença e argumentos da juíza e considera seu posicionamento retrógrado. Também procurado pela VICE, o Presidente da Comissão de Direito do Trabalho de Santa Catarina, o advogado Ramon Carmes, não encaminhou seu posicionamento até a publicação desta matéria.