Até o momento já foram mais de 20 mil casos de ebola no oeste da África, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde, e milhares de mortes. Mas onde tudo começou?
Pesquisadores creem que o “paciente zero” do surto atual tenha sido um garoto de dois anos em Meliandou, uma vila na Guiné, que morreu em dezembro de 2013. Como ele foi infectado? Fabian Leendertz, chefe de Epidemiologia de Microorganismos Altamente Patogênicos do grupo de pesquisa do Instituto Robert Koch, na Alemanha, fez parte de uma equipe que tentou determinar a fonte da epidemia de Ebola pouco depois do início do surto. Em um artigo publicado no periódico EMBO Molecular Medicine, ele e seus coautores sugerem uma possível causa: uma árvore oca cheia de morcegos onde talvez o menino tenha brincado.
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O resultado é frustrantemente inconclusivo, já que a árvore foi queimada antes mesmo de a equipe chegar até ela, impossibilitando-os de provarem que os morcegos que ali viviam portavam a doença. Mas Leendertz crê que isso é o mais próximo de uma resposta a que chegaremos.
MOTHERBOARD: Começando do começo: como se dá a tentativa de traçar a origem deste surto?
Fabian Leendertz: Seguimos as duas hipóteses clássicas de como o vírus poderia ser transmitido de animais para humanos. Na maioria dos surtos do ebola, não houve transmissão direta do hospedeiro até onde sabemos (do hospedeiro suspeito, morcegos, para humanos). O que ocorreu foi que grandes símios e outros animais selvagens – especialmente gorilas, mas também chimpanzés e outros – contraíram o vírus do hospedeiro e aí temos uma grande epidemia em meio à vida selvagem.
Sempre houve um declínio na população, especialmente de grandes símios selvagens, antes da epidemia em humanos. Então, para investigar essa possibilidade, fomos às duas das principais florestas no sul de Guiné onde sabemos que ainda existem chimpanzés e outros animais, e repetimos o monitoramento que a Wild Chimpanzee Foundation fez há muitos anos para ver se havia menos chimpanzés ou antílopes ou qualquer queda na população, ou para até mesmo encontrarmos carcaças [se possível]. Durante esse processo, contudo, descobrimos que a população de animais selvagens seguia estável no geral e não houve nenhuma grande queda ou qualquer fenômeno observado nas áreas em que há densidade alta de vida selvagem.
Enquanto estivemos lá, as autoridades de saúde nos informaram quem era o primeiro caso e onde esse garoto vivia, então dividimos a equipe. Deixamos o pessoal do monitoramento prosseguir com seu trabalho na floresta, e eu levei três veterinários da minha equipe e uma antropóloga até a vila em questão e passamos mais de uma semana lá conversando com as pessoas, tentando descobrir quem eram os caçadores ali, como caçavam, e o que havia de especial naquela vila, Meliandou. O que ficou claro é que não se trata de uma vila remota no meio da floresta que é o que vem à mente quando se pensa em ebola.
NÃO SE TRATA DE UMA VILA REMOTA NO MEIO DA FLORESTA QUE É O QUE VEM À MENTE QUANDO SE PENSA EM EBOLA.
Não é esse o caso mesmo; trata-se de uma vila comum em uma área desmatada, sem árvores por perto, só os anciões da vila que ainda se lembram de quando chimpanzés e outros animais maiores perambulavam por ali, há muito tempo. Então trata-se de uma paisagem africana moderna. Isso também nos levou a excluir a hipótese do amplificador de vida selvagem. Perguntamos a eles como a doença poderia ter se alastrado – de onde ela veio?
Você sugere que a origem pode ter sido uma colônia de morcegos – qual a evidência que sustenta isso?
As pessoas na vila caçam morcegos como em qualquer outro vilarejo do oeste africano; mata-se morcegos oportunamente pois eles têm muita carne e são uma presa fácil. Se há um grupo de morcegos em meio à bananas e cocos, eles os matam e levam para casa. O mesmo acontece em Meliandou, mas não com as crianças – adultos fazem isso. Logo, ficamos imaginando como o paciente zero poderia ser uma criança, e nossa antropóloga também investigou isso e pôde confirmar que o primeiro caso realmente poderia ter sido este garoto. Então como estas crianças entram em contato com os morcegos?
Ela entrevistou várias crianças, e nós as observamos, e brincamos com elas, e também percebemos que estas crianças também caçavam morcegos. Elas pegavam alguns pedaços de pau e ficavam cutucando tetos tentando agitar morcegos pequenos – insetívoros que moram nestes locais. E quando eles caíam no chão, elas o matavam, colocavam em espetos de madeira e os assavam no fogo. Logo, elas também eram expostas aos morcegos.
Mas isso também é o tipo de coisa que se encontra em qualquer vila. Todas essas crianças não tem TV, você sabe – elas brincam, vão caçar. É empolgante para elas, e tem toda aquela proteína extra e tal. Então paramos para pensar no que havia de diferente em Meliandou, haveria algum risco excepcional lá? E isso nos levou a descoberta desta enorme árvore, a qual os nativos haviam queimado alguns dias antes de chegarmos. Eles não sabiam que iríamos até lá, então queimaram a árvore. Fizemos algumas pergunta sobre ela, e as crianças costumavam brincar lá porque ficava perto da trilha onde as mulheres vão tomar banho, em um riacho próximo. Ou seja, aquilo costumava servir de playground regularmente. E naquela árvore, disseram, havia uma colônia de morcegos enorme. Quando atearam fogo à árvore – não sabemos o porquê, provavelmente crianças brincando com fogo ali ou algo do tipo – começou a “chover morcego”, como afirmaram. Havia vários.
Ficamos muito empolgados ao saber disso, porque ocorreu algo parecido com o vírus de Marburg, que é meio que irmão do ebola. Há locais em Uganda em que turistas foram infectados apenas ao entrar em uma caverna para observar colônias de morcegos, e então acabaram contraindo o vírus. Logo, se você tem contato com muitos desses animais, o risco maior é do que simplesmente caçando-os individualmente.
Nosso problema naquele momento era o fato de a árvore ter sido queimada – fato que pode ser observado nas fotos contidas na pesquisa – e assim não pudemos capturar nenhum morcego para provar que o vírus estava neles. Fiquei muito desapontado com isso, obviamente, porque seriam excelentes provas. Porém, para confirmar quais morcegos residiam na árvore, coletamos amostras do solo, e há uma forma de encontrar o DNA dos animais residentes em determinada região ao observar o DNA de mamíferos em geral. Assim pudemos confirmar que morcegos sem cauda moravam na árvore, e a espécie se encaixava perfeitamente na descrição dada pelos nativos.
Não é uma grande descoberta como normalmente tentamos fazer; mas isso é tudo que temos agora, então decidimos publicá-la.
ACHO QUE NÃO SERÁ POSSÍVEL DETERMINAR A ORIGEM REAL DA EPIDEMIA
Parece que vocês encararam muitos desafios pelo caminho. Quais as principais dificuldades ao se tentar provar essa origem?
Nunca poderemos provar nada. Nesse caso, acho que não será possível determinar a origem real da epidemia. Digo, fomos lá em abril, apenas dez dias depois da OMS ter confirmado que o ebola havia causado este surto; chegamos lá bem rápido, e três meses depois do começo da epidemia ainda estávamos lá. Se você quer investigar algo agora, estará ainda mais distante da origem, e a memória prega peças, a ecologia muda e tudo mais. Temo que, para este surto, tenhamos chegado o mais próximo possível.
Claro que estamos conduzindo mais pesquisas nesse sentido e estamos investigando a ecologia destes morcegos e retirando amostras de muitos deles, colônias inteiras, para tentar rastrear o vírus nestes animais. Mas esse é um grande desafio, e trata-se de um projeto a longo prazo. Caso encontremos boas evidências do vírus nestes morcegos, claro que isso reforçaria o material que publicamos.
Como você começou a estudar infecções zoonóticas?
Trabalho no oeste africano há 15 anos – principalmente na Costa do Marfim, o país vizinho, no Taï National Park. Minha especialidade são grandes símios, então já lidávamos com o ebola há alguns anos, pois trata-se de um grande problema para estes animais. Tenho gente no local e toda a logística ao lado, então foi fácil chegar lá rapidamente.
O que o futuro guarda para a pesquisa?
Quanto à pesquisa relacionada ao ebola, estamos trabalhando junto a ecologistas para tentar entender o potencial da ecologia de possíveis hospedeiros, especialmente estes morcegos. Estamos marcando todas as comunidades, acompanhando-as pelo que torcemos ser muitos anos, tirando amostras dos animais em busca de traços do vírus – anticorpos – para tentar ir mais fundo com estes estudos.
O que foi feito até agora em grande parte se assemelha ao que já fazíamos: quando havia um surto, corríamos ao local e pegávamos um monte de morcegos e os examinávamos e quase nunca encontrávamos o vírus. Logo, creio que precisemos de estudos mais aprofundados ligados à ecologia, e também para entender como vírus circula entre diferentes regiões.
Tradução: Thiago “Índio” Silva