As estradas do leste da Ucrânia estão repletas de entulhos de guerra: bloqueios, crateras, tanques e caminhões camuflados. Volta e meia, uma camionete Mitsubishi L200 com uma chamativa pintura em padrão geométrico de camuflagem dá as caras. É o polêmico Batalhão Azov. A estampa de guerra, marca registrada do Azov, cobre caminhões e jipes de transporte e anuncia a chegada do batalhão prestes a lutar em tanques personalizados e blindados.
O Motherboard conversou com alguns soldados Azov e descobriu onde são construídos os “tanques Mad Max”, como os soldados se referem aos seus transportes bélicos. (O apelido cinematográfico se deve ao estilo da construção: assim como nos filmes, os membros do grupo erguem seus transportes a partir de sucatas e peças descartadas.)
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Fomos conferir a linha de montagem dos Azov em uma antiga fábrica de tratores, no subúrbio de Kiev, onde o Grupo de Engenharia da agremiação mantém uma sede. No andar de cima do galpão da frente, encontram-se um trator enferrujado e uma roda de engrenagem com a foice e martelo estampados. Embaixo, uma grande bandeira Azov.
Um guarda e um amigável pastor alemão nos dão boas vindas. A fábrica de tratores foi abandonada anos atrás. O terreno foi destinado a um desenvolvimento residencial, mas acabou vítima de papelada burocrática e invasores.
O membro do Azov e capataz da fábrica, Bogdan Zvarych, conta que o grupo se mudou para o estabelecimento no começo do ano, depois que a polícia pediu a ajuda do batalhão para esvaziá-lo. “Estava cheio de criminosos. Havia pessoas com armas, drogas, fazendo falsas bebidas alcoólicas”, disse. “A polícia comum não conseguia entrar aqui, era muito difícil.”
Ao perceber que tinham esbarrado com a oficina ideal, os Azov assinaram um contrato de aluguel e se instalaram por ali.
“Antes, preparávamos os nossos caminhões em garagens comuns ao redor de Kiev. Esses veículos blindados e foguetes antitanques estavam dando sopa na garagem de um cidadão”, ele ri. “Esta é a nossa realidade, a realidade da Ucrânia.”
O orçamento do exército ucraniano entrou em queda depois que o país deixou a União Soviética, em 1991, tendência que só se reverteu recentemente. Quando as agressões separatistas começaram no leste, em março de 2014, a força de defesa do país totalizava 150 mil membros (dentro de uma população de 45 milhões), dos quais apenas 5 mil estavam prontos para combate.
Para amenizar a lacuna, voluntários se organizaram rapidinho, formaram batalhões e partiram para a frente de guerra.
A maioria dos batalhões voluntários, Azov incluso, foi incorporada à força de defesa ucraniana. Quase todos operam anonimamente com uma estrutura de comando própria — “somos todos irmãos”, afirma Zvarych. Cada grupo possui programas próprios de recrutamento e treinamento e, no caso do Azov, tanques próprios.
“Somos o único batalhão voluntário com uma fábrica de tanques própria”, nos contou Zvarych, de peito estufado.
O Azov tem uma reputação controversa. Em grande parte por causa de seu fundador, um supremacista ariano, e de uma queda por simbologia nazista. A insígnia do batalhão – que muitos membros tatuaram no antebraço – é o símbolo do Wolfsangel modificado sobre outro favorito nazista, o símbolo do Sol Negro. Muitos membros do Azov riem do rótulo de neonazi e enfatizam que a Rússia é o único inimigo. Contudo, a reputação gerou consequências graves para o batalhão, incluindo a exclusão do programa americano de treinamento militar.
O Azov e outros batalhões voluntários até têm tanques fornecidos pelo governo, mas Zvarych deixou claro que eles podem tomá-los de volta a qualquer momento. O mesmo não se aplica aos tanques Azov, que pertencem ao batalhão por completo, das esteiras à torre.
Zvarych nos convidou para entrar na oficina, onde uma pequena equipe de soldadores aprendizes, engenheiros e rapazes que trabalhavam lá desde que a fábrica produzia tratores concluíam sua criação mais recente, o “Azovette”.
O batalhão tem uma frota de veículos blindados diversos, inclusive um caminhão de lixo modificado que chamam carinhosamente de “”Pechyvo”, termo ucraniano para “biscoito”. Agora eles estão tentando transformar um trator de fazenda – que no passado era um tanque – de volta em tanque.
Zvarych nos conduziu ao redor da fera metálica. Apontou para as camadas de blindagem, cada uma com 7 centímetros de grossura, repletas de fileiras de explosivos, projetados para dispersar o impacto de qualquer golpe. A maioria dos projéteis capazes de penetrar os 7 cm de blindagem é de mísseis de carga oca, isto é, cones ocos com projéteis de ponta côncava recheados de explosivos.
Quando são detonados, os explosivos atingem o ápice do cone e o impulsionam para frente. O cone então vira do avesso: um jato centralizado de energia explosiva que impulsiona o projétil para frente, de modo a produzir máximo impacto. Os explosivos da blindagem do Azovette servem para contra-atacar a carga oca; conduzem energia na direção oposta e, assim, o cone não vira do avesso e não concentra a explosão.
A blindagem é espaçada em camadas. Formam-se câmaras que mantêm os danos contidos em sua camada respectiva. Há sete câmaras na parte frontal e três nas laterais.
“Geralmente os tanques têm uma blindagem de 10 ou 20 cm na frente, mas colocamos 1,4 m. Esse tanque aguenta de tudo, até mesmo um grande míssil de avião. Aguenta todo tipo de equipamento moderno, de todos os exércitos”, disse Zvarych.
Ele argumenta que o Azovette é o tanque perfeito e compara seu veículo de 50 toneladas e cinco assentos com o Panzer VIII Maus, o supertanque da Alemanha nazista, um golias de 188 toneladas completamente vedado, de proporções mitológicas, que nunca saiu da fase de protótipo.
As esteiras de um tanque costumam ser o seu ponto fraco. Os engenheiros do Azov então revestiram a base das esteiras com camadas de blindagem. Segundo Zvarych, projéteis precisariam acertar a base três vezes no mesmo ponto exato para atravessar o veículo.
Por baixo de todo a blindagem, está o chassi de um velho tanque de combate T-64, o melhor modelo de tanque soviético, de acordo com Zvarych.
“Os novos tanques, o T-52 e o T-80, não são tão bons”, disse ele. “Os T-64 foram feitos apenas para a Rússia e a Ucrânia, não foram liberados para exportação, pois são os melhores.”
Ao que parece, é bem fácil encontrar um T-64 na Ucrânia. Durante o período de paz no país – da independência, em 1991, até o conflito atual que começou em março de 2014 – os tanques foram usados para outras coisas.
“A fábrica que fez os tanques os legalizou para uso cotidiano. Fizeram escavadoras e equipamentos agrícolas com as esteiras”, disse Zvarych, apontando para o corpo amarelo de um trator que já fez parte de um T-64 e agora está em construção novamente. “Qualquer pessoa pode comprar um.”
“Comprar um tanque do governo custa em torno de 2 milhões de dólares, mas este trator custa menos de 50 mil, e com a ajuda dos nossos engenheiros, conseguimos construir um tanque muito melhor”, disse ele.
O Grupo de Engenharia Azov contém cerca de dez homens trabalhando sob a direção criativa do “professor maluco” do batalhão, Mykola Stepanov.
Stepanov trabalhou 46 anos na Fábrica Malyshev, como engenheiro e vice-diretor. A fábrica, propriedade do governo, era a maior produtora de tanques da URSS e foi o berço do T-64, que agora se encontra na nossa frente.
“Ele consegue criar o tanque que bem entender”, disse Zvarych.
Stepanov estava na área quando fizemos a visita. Ele ficou o tempo todo de pé em uma estação de trabalho, com os óculos na ponta do nariz, quieto e silencioso, exceto por batidas ocasionais do lápis na planta do projeto.
“Para ele, esse é o trabalho dos sonhos. É o nosso cientista maluco”, disse Zvarchy. “É muito mais fácil construir os tanques que ele quer aqui, porque ele não precisa atender grandes reuniões para definir a instalação de cada parafuso.”
Quando Stepanov coloca uma ideia no papel, os engenheiros e soldadores a transformam em realidade. “Se os russos tentassem fazer algo do tipo, levaria 10 anos. Na Ucrânia, talvez 8 anos. Em Azov, leva cerca de seis meses”, disse Zvarych.
Zvarych acredita que o Azovette ficará pronto nos próximos dois meses.
Dois canhões de calibre de 23 mm, de cano duplo, capazes de atirar 3.400 balas por minuto cada, serão instalados no tanque, além de um lança-míssil carregado com 8 mísseis. Dentro, a cabine não tem janelas de visualização. No lugar das janelas, a equipe conta com câmeras frontais, traseiras e laterais no tanque, e opera a torre e as armas com joysticks.
“Lá dentro é como um videogame”, disse um dos soldados Azov.
Zvarych nos conduziu oficina adentro, rumo a um saguão que aparentava ser um cemitério de máquinas. “Podem até ser um lugar feio, mas há máquinas únicas aqui”, disse.
“Usamos bastante equipamento que foi deixado para trás. Na época da União Soviética, faziam máquinas para durar 50 anos”, disse ele. “Ainda são muito bons e muito precisos. Na URSS, tudo era assim. Um carro simplíssimo funcionava. Dá uns trancos, é feio, mas funciona. E vai funcionar por mais 50 anos.”
Além de aproveitar ao máximo máquinas abandonadas, o batalhão vasculhou o estabelecimento atrás de sucatas de metal, e conta com doações de dinheiro e materiais de pessoas físicas e jurídicas ucranianas.
“Temos 1.200 combatentes e cerca de 50 mil pessoas ao nosso redor, trabalhando com o Azov. Há várias pessoas que querem simplesmente nos ajudar”, disse Zvarych. “Todo ucraniano sabe que o governo é inútil. Por isso, as pessoas nos ajudam com mão-de-obra, dinheiro, alimentos e roupas. Elas sabem que, com o Azov, estarão seguras. Com o governo, não.”
Sem dúvidas, a desconfiança em relação ao governo ucraniano é profunda aqui. Em bases militares, cafés e redes sociais, voam enxames de rumores sobre corrupção, incompetência e deslealdade.
“O governo ucraniano não seria capaz de construir esse tanque. Por quê? Porque roubam o dinheiro antes de aplicá-lo”, gracejou Zvarych.
No começo da semana, um soldado contou à Motherboard que, uma vez, ele e seus colegas “libertaram” 40 pacotes de óculos de visão noturna de um armázem do governo. Ele disse que os óculos foram doados à Ucrânia pelos EUA e Canadá como parte dos programas de assistência não letais desses países, mas, segundo o soldado, o governo ucraniano os trancafiou em um armazém a 50 km da linha de frente. Ele especula que o governo pretendia vender os óculos, em vez de repassá-los às tropas. A história do soldado não foi confirmada, mas é uma boa ilustração da pouca fé que os ucranianos depositam no governo.
“Sem brincadeira, o nosso governo não quer que este tanque ganhe vida”, disse Zvarych. Ele comentou que o governo está mais preocupado com dinheiro do que com o povo, uma postura que o Azov não engole. “A blindagem deste tanque custa 100 mil dólares, mas as cinco pessoas que estão dentro dele valem muito mais.”
Zvarych ecoa um sentimento que já ouvimos antes no discurso de soldados ucranianos: o governo não faz por onde. Zvarych disse que, desde que o Azov foi incorporado à força de defesa ucraniana, recebe apoio do governo, inclusive uniformes e armas. Mas, acrescentou, “Geralmente, as armas são uma merda. Tenho uma pistola fabricada em 1960… 1960!” Um soldado de passagem levantou uma pedra e comentou, “isto aqui é melhor”.
A insatisfação do Azov com o governo ucraniano e seus equipamentos é o motivo que os impulsiona a adicionar armas à linha de produção para o futuro próximo. No entanto, apesar do clima Mad Max no estabelecimento, não é uma distopia sem lei, e o Azov ainda pretende derrubar algumas barreiras burocráticas antes de expandir a fabricação de armas.
“Temos muitos especialistas que sabem como uma arma deve ser e funcionar, então quando ´tivermos licença, poderemos fazer nossos próprios tipos de armas”, disse Zvarych.
Então, isso significa que o Azov tem licença para o Azovette e os demais tanques Mad Max?
“Isto é um trator. No que diz respeito à papelada, isto é um trator”, Zvarych disse em um tom ironicamente inocente, “Nós simplesmente acoplamos metais a um trator. Por que precisaríamos de uma licença?”
Tradução: Stephanie Fernandes