Esta matéria foi originalmente publicada na VICE Canadá.
No começo, o filme parece exatamente o que o governo norte-coreano queria: uma linda propaganda que mostra como os norte-coreanos são trabalhadores, harmoniosos e felizes.
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Mas isso não é o que Vitaly Mansky imaginou para Under the Sun, um novo documentário que chega aos cinemas da América do Norte neste mês. O diretor, nascido e criado na antiga União Soviética, passou mais de dois anos negociando acesso ao Reino Ermitão para poder criar um documentário que dá ao ocidente um vislumbre da vida de uma família norte-coreana comum.
Em vez disso, ele rapidamente descobriu que não só o governo ia escrever o roteiro do filme inteiro, mas que uma equipe de oficiais locais também ditaria locações, personagens e supervisionaria todas as cenas.
“Filmamos em lugares difíceis, mas nunca imaginamos quanto controle eles iriam impor”, disse Simone Baumann, uma das produtoras do filme da Alemanha.
O filme acompanha Zin-mi, de oito anos, e seus pais enquanto ela se prepara para se juntar à União das Crianças da Coreia do Norte. Mas o controle que o governo queria do filme era total. Então Mansky se voltou para táticas mais dissimuladas.
Ele deixou as câmeras rodando entre as tomadas, capturando os oficiais supervisores enquanto eles emergiam dos bastidores para dirigir seu filme. E assim, a cortina caiu.
“Isso realmente coloca em dúvida outros documentários que dizem ter sido feitos sem interferência nenhuma”, disse o jornalista e professor Robert Boynton. “Não sei mais se acredito nisso.” Boynton entrevistou Mansky intensivamente com ajuda de um tradutor para o New York Times e já falou com vários defensores da Coreia do Norte para seu livro, The Invitation Only Zone, sobre o sequestro de cidadãos japoneses no país.
No filme, inspetores do governo aparecem no apartamento da família. Eles estão na fábrica onde a mãe trabalha para garantir que os empregados estejam tão joviais e companheiros quanto deveriam. E quando um veterano norte-coreano esquece de mencionar a União das Crianças num discurso para uma sala cheia de estudantes, os guias entram em cena para preencher o silêncio constrangedor. Às vezes chega a ser cômico.
Mas também é incrivelmente bizarro ver estranhos vestidos de preto entrando no enquadramento dentro do apartamento de uma família modesta, dizendo como eles devem comer seu jantar.
Essa cena em particular, que acontece logo no começo do filme, dá uma ideia do que está por vir: um retrato arrepiante, trágico e fascinante da vida sob a bota do Grande Irmão Kim.
Apesar das origens e experiência de Mansky filmando em ambientes restritivos, algumas coisas ainda o surpreenderam. “Ele nunca esteve num lugar onde as crianças não olhavam para a câmera”, disse Boynton. “Em poucos momentos uma criança decide mostrar a língua para ele. Mas ele ficou chocado com o quanto elas eram controladas.”
Para conseguir a filmagem, Mansky usou alguns subterfúgios básicos: “Foram coisas simples como os norte-coreanos não saberem que algumas câmeras continuam gravando mesmo quando a luz vermelha não está piscando”, disse Boynton. “Eles achavam que podiam monitorar o que era gravado assim, mas não podiam.”
Ainda com ajuda de alguns subterfúfios, Mansky também tinha que entregar o vídeo para aprovação depois de cada dia de filmagem. Mal sabiam os inspetores que a câmera estava gravando a mesma filmagem em dois cartões de memória. A equipe entregava um deles e fazia a cópia do outro. Os oficiais deletavam o que não aprovavam e não sabiam sobre as outras cópias.
Mansky chegou a contratar uma especialista russa em coreano e a treiná-la para ser a responsável pelo som no filme, então ela podia dizer sobre o que os oficiais do governo estavam discutindo. “Ela era nossa espiã”, ele disse a Boynton.
Assim acompanhamos a doutrinação de Zin-mi na escola, na vida em família e nas aulas de dança, enquanto os colegas de trabalho dos pais são obrigados a parabenizá-los pelo sucesso da filha com ainda mais entusiasmo.
A Coreia do Norte acabou sabendo sobre o filme quando ele chamou a atenção em festivais. O regime fez uma queixa oficial ao governo russo, que tinha financiado a produção. Mas mesmo sob pressão, Mansky se recusou a tirar o nome do governo russo dos créditos.
Críticos do filme, incluindo um ex-ministro da cultura russo, dizem que lançar o título coloca a família em perigo. Mas Boynton disse que Mansky estava “muito preocupado com a família”. “Ele editou o filme sempre tentando protegê-los”, e só usou cenas que não os afetariam negativamente.
“É difícil para a Coreia do Norte julgá-los”, disse Baumann. “Os oficiais apreciaram o trabalho que eles fizeram. Tudo segundo o script. A mãe disse numa entrevista que esse foi o primeiro trabalho de atuação da filha, e que ela foi ótima.”
Depois que o filme saiu, Zin-mi se tornou uma espécie de celebridade em seu país. A mídia norte-coreana disse que ela foi vista entregando flores para Kim Jong-Un depois do 7º Congresso do Partido dos Trabalhadores em maio.
Quanto ao destino dos inspetores, Mansky disse a Boynton que não se preocupa. “Eles são parte do aparato de propaganda”, disse Boynton. “As pessoas [na Coreia do Norte] são punidas e recompensadas constantemente. Não acho que eles vão morrer de fome num gulag.”
Outros, como a organização canadense de direitos humanos JAYU, questionaram o valor geral do filme se ele só mostra “o que já sabemos” sobre a Coreia do Norte.
Mas Boynton contesta essa ideia. “[O que sabemos é] constantemente tirado de nós. É como uma dessas bonecas russas. Você abre uma e tem outra dentro, e outra e outra.”
E para Boyton, o filme é o mais perto que chegamos de saber o que realmente se passa na Coreia do Norte. “O filme é tão preciso que questiona retratos anteriores que vimos do pais”, ele disse. “O papel do artifício, da pompa e do teatro é enorme. Mansky é o primeiro que realmente entende isso. A realidade é uma não-realidade.”
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Tradução: Marina Schnoor