Na minha sanha incomensurável de chapar com orçamento curto — e tentando obedecer aos quesitos da onda orgânica (quer dizer, crack não vale), resolvi descobrir se é possível transar seu próprio goró de forma barata e natureba. O mais óbvio foi ir atrás da típica receita de cadeia, a assim chamada maria-louca. Descobri que fácil não dá pra dizer que é, nem rápido. Mas fica bom. Além do que, isso aqui é praticamente um serviço de utilidade pública, já que se você for pela receita de maria-louca que tem na Internet (Wikipédia, derrr), é certeza de se fuder de um jeito feião.
Daí que fui atrás do João Wainer, e ele me colocou em contato com a Sophia Bisilliat, que indicou o Twin, que acionou seu amigo Isaac. O João fotografou extensamente a Casa de Dentenção de São Paulo, AKA Carandiru, onde a Sophia fez trabalho voluntário por mais de 20 anos e o Twin cumpriu parte de sua pena. “Fiquei [preso] no total uns dez anos, última vez tirei oito, entrei em 96 e saí em 2004, mas antes disso estive naquela megarrebelião, a chacina do Carandiru, em 99 tive lá de novo. Foram dois 157 e um 155. Quer saber do quê? Eu só roubava relógio, na rua, a pé mesmo”, contou o Twin, que trabalhou na enfermaria do pico ao lado do médico Drauzio Varella. Já seu amigo Isaac, que cumpriu pena na Baixada Santista, tem a manha no preparo da beberagem, conhecimento adquirido durante “15 anos de cadeia, fora os negocinhos por aí — tenho homicídio, tenho 157, tenho tráfico, tenho várias coisas”. “Fazer maria-louca é artesanato, e como você aprende artesanato? Com os mais velhos. Tinha pessoa tirando cadeia de 20, 30 anos, conheci muitos Bandidos da Luz Vermelha — ele não foi o único. Então eles passam experiência pra gente. Tem vários lugares onde eu passei, mas a experiência é uma só — o sistema é um só. Eu sempre fazia, porque como é que vai sobreviver naquele lugar? É que nem o pessoal que ficou na mina soterrado dois meses, só que lá não tem prazo — se você arruma alguma coisa lá dentro, fica mais ainda.”
Pegamos essas credenciais em São Vicente, onde o Isaac, a pedido da Sophia, vinha preparando o primeiro estágio da maria-louca pra gente há uma semana. Quando ele trouxe o tamborzinho de plástico, que originalmente continha azeitonas e foi conseguido com um amigo em troca da promessa de uma garrafa do goró pronto, o Twin falou: “Deve estar boa, tá estufadinha”. Antes de abrir, Isaac explicou: “O processo foi esterilizar tudo, lavar as frutas. Aí você coloca água quente, dois quilos de açúcar, arroz cru, goiaba, maracujá, laranja — essas frutas todas cortadas e fermento de pão”. Tudo isso uma semana fechado e já é. Pra chegar ao suprassumo da parada tem ainda outro processo, mas isso já dá pra beber — e vamos por partes, como o câncer.
Com ingredientes novos comprados numa quitanda, nossa receita foi de luxo, mas ela por definição é maleável. Pode levar qualquer combinação de frutas ou até só arroz, e o fermento pode ser pão mesmo. Twin: “Lá eles pegavam do lixo, das frutas que as visitas traziam. Pegavam as cascas e bagaços e vendiam pra quem ia tirar. Lavavam bem elas e colocavam pra fermentar com açúcar, água e fermento. Com mandioca dá pra fazer — tem índios que fazem o mesmo esquema. Lá não tem nada cru, antigamente tinha, de 91 a 94 teve a cozinha, era a melhor safra: era o saquê, só arroz, açúcar e fermento”. Isaac: “Lá dentro, como faz pra esquentar a água? A gente esquenta. Dependendo do sistema que frequentava não tinha arroz cru, vinha cozido e você fazia o recorte, requentava tudo e fazia outra comida. E de fermento, pão. O processo de fazer é o mesmo, não muda em nada”.
Foi abrir o tambor e subiu aquele cheirão de xepa, e o Twin: “O que faz criar esse barato é exatamente quando as frutas entram em decomposição, então elas podem ser reusadas, se quiser, mas se tiver fruta nova é bem melhor”. Todo mundo experimentou, e essa primeira fase tava forte pra cacete. O álcool sobe pelas ventas na hora e bate uma brisa quase instantaneamente. O luxo do arroz cru realmente deu um buquê de saquê no lance. Ficou tão legal que mesmo com o odor de fim de feira emanando do recipiente não paramos de tomar até a hora de irmos embora.
Esse primeiro estágio “é um champanhe, pro Natal, pra quem não tem nada, no final de ano você fica lá dentro escutando os fogos ali fora, é uma delícia”, o Twin disse, rindo, “mas pra tirar a cachaça mesmo teria que ter serpentina, fogareiro”. É aí que a parada fica complicada mesmo. Primeiro, o equipamento de destilação. “A serpentina era de cobre. Normalmente era tirada de um bebedouro. De repente sumia a serpentina do bebedouro da sala do diretor, ninguém sabe, manda procurar na cadeia inteira, 8 mil presos, vai achar onde? Aí o encarregado era tirado dali porque sumiu, mas sempre se arruma uma maneira”, conta Twin. Aí ele explicou um dos riscos que pode afligir o fabricante caseiro, e dando um belo exemplo: “Você tem que coar muito bem antes de ferver, o que sai a pinga é só o vapor, você tem que ficar ligado o tempo todo, se ela entupir com um pedacinho de fruta, vira uma panela de pressão sem saída de ar. Tem a serpentina saindo e outra mangueira entrando com ar dentro duma bacia com água. Já vi vários perderem a pele inteira do peito. Eu trabalhava na enfermaria, se explodia, já falava: ‘Pode separar a maca que vai descer alguém’. Teve uma vez que explodiu em dia de visita — porque em dia de visita ninguém vai subir lá, em penitenciária é assim também. É difícil de explodir porque a pessoa fica ligada o tempo inteiro naquilo, então tá pingando, tudo bem. Naquele dia o barraco tava vazio, só o cara que tava tirando lá, mas foi um segundo que ele se distraiu. Ele chegou pra desentupir e bum! A tampa do negócio fez outra boca nele, e aquela água doce fervendo entrou pela roupa, você imagina como ficou o estado do menino. A gente leva pro pavilhão 4, faz os primeiros socorros, aí depois todo dia é um sofrimento: tem que tirar a pele morta, esfregar com água oxigenada. É um sofrimento, não vale a pinga”. [risos]
É, essa parte de destilar é treta. Isaac e Twin estimaram que de 200 litros dessa fermentação saem 20 litros de pinga. Fora a sujeira de fazer lá dentro, não tinha como camuflar o aparato todo. “Não escondia — quando tinha blitz você tirava 30 de isolada”, ele riu de novo, “mas era o uísque de lá, só que muito mais forte que uma pinga como 51. É pra poucos, 250 ml de pinga custariam uns R$ 100, então não é pra qualquer pessoa usar, só pra quem tem um poder aquisitivo maior, que deixou alguma coisa lá fora, e os que tiram. Os que tiram é que têm o privilégio de ter sua garrafona em casa. Se alguém sabia que você tava tirando já falava, separa essa cota pra mim, às vezes até ajudava a comprar as coisas pra fazer, pra ter o privilégio de ter a primeira — a primeira é melhor, depois vai saindo mais fraca. Mas não era pra muita gente não. Tinha coisa mais barata e mais fácil pra usar”.
Inebriados, agradecemos, nos despedimos e voltamos pra São Paulo, onde, alguns dias depois, nos arriscamos na destilação. Prosseguindo nossa manufatura leite-com-pera do barato rústico, compramos a serpentina de cobre, uma panela de pressão e Durepoxi. Furada a tampa da panela, foi só encaixar a serpentina, vedar com o Durepoxi e pronto—não precisa nem da outra mangueirinha pra entrar ar, sendo resfriada, a válvula da panela resolve. Também não precisamos coar a mistura numa meia — é, eles contaram que dentro se faz assim —, mas usamos um pano pra garantir que não ia nada sólido. Fogo mais baixo possível, panela até meio pra fora da boca do fogão, e logo nossa cachaça começou a gotejar. Apesar do gostão (e do cheiro também) de fruta, deve ter sido o goró mais forte que todo mundo ali tomou na vida, eu fiquei louco imediatamente. Ainda bem que não pensamos em medir o teor alcoólico disso, acho que todo mundo ia cagar nas calças pra ingerir. Foi assim — e, bom, melhor não tentar isso em casa.