Parece um programa gótico, mas não é. Os 22 cemitérios públicos de São Paulo podem ser ótimos destinos para quem é fissurado em história, apreciador de obras de arte e também para quem busca encontrar uma estranha calmaria cada vez mais impossível de achar na metrópole. Pensando no Dia dos Finados, passeamos por dois cemitérios importantes da cidade para entender a simbologia da morte que enfeita túmulos de famílias paulistas das mais diversas classes sociais. “Ostentação” é a palavra de ordem mesmo desta para melhor nos dois locais que visitamos: o Cemitério do Araçá e o Cemitério São Paulo, ambos na zona oeste da cidade.
No Araçá, aquele que fica bem em frente do Hospital das Clínicas, fomos guiadas por Michelangelo Giampaoli, antropólogo e assessor técnico do Serviço Funerário de São Paulo que cuida da parte de conservação do patrimônio cultural dos túmulos. O italiano radicado no Brasil passa seu expediente circulando pelos cemitérios da cidade para catalogar as esculturas históricas que compõem a chamada arte tumular. O antropólogo também acredita que esses lugares deveriam ser vistos como espaços públicos para todos os cidadãos e não só como destinos tristes e que devem ser evitados a todo custo.
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A morte é apenas um detalhe quando se circula no terreno gigantesco de 222.000 m² do Araçá, que exibe pequenas curiosidades da morte e também partes importantes da história do país. Há jazigos de portugueses, italianos, japoneses e libaneses – indicativo claro da imigração para o Brasil. Lá também descansam pessoas famosas como Cacilda Becker e Assis Chateaubriand e há ainda o gigantesco memorial da Polícia Militar, que conta com um mirante onde é possível ver quase todo o cemitério. Bonito mesmo.
Durante a visita, Michelangelo mostra alguns dos túmulos já tomados pelo passar do tempo, que começam a ganhar uma coloração mais esverdeada por causa do musgo e dos efeitos do clima afetando até materiais mais nobres como os mármores carrara, bronze e granitos pesados que ajudam a montar a sua estrutura.
O desgaste também tem mão humana. Muitos túmulos tinham portais, nomes e placas afanados por causa do bronze. Outros tinham vasos menores e detalhes florais também arrancados. “Os góticos são os que menos me preocupam em cemitérios porque eles são os que mais respeitam os jazigos”, explica o antropólogo enquanto observa um túmulo que teve sua placa de identificação arrancada.
Naquela que é chamada pelo antropólogo de “Avenida Paulista” do Araçá, os túmulos mais suntuosos reinam em ótimas condições. fazem, obviamente, da parte mais rica do cemitério. Não há nada mais comum para as famílias cheias de dinheiro mostrarem a vida próspera que tiveram por meio dos jazigos que muitas vezes são maiores do que apartamentos onde vivem nós, reles mortais. “Os túmulos carregam lembranças da morte, além de terem um valor ético e estético – mostrando os valores da família e também o poder aquisitivo que ela possuiu por meio dos jazigos.”
O cenário de riqueza prevalece no Cemitério São Paulo – conhecido como Necrópole, na Cardeal Arcoverde. Há a presença massiva de obras de grandes escultores como Victor Brecheret (que assina o Monumento das Bandeiras, que ganhou novas cores recentemente), Galileo Emendabili (fez o Obelisco em memória da Revolução de 32) e Bruno Giorgi. A historiadora de arte Vanessa Beatriz Bortulucce, que também ministra um curso de arte tumular no Museu de Arte Sacra, nos acompanhou pela Necrópole de São Paulo, que abriga mais de 140 mil sepultamentos desde sua abertura em 1926. “Todos os espaços são importantes para entender a história e a cultura: estradas, ruas, avenidas, residências, fábricas, tudo nos informa acerca de uma sociabilidade específica, de práticas comuns, das relações que as pessoas estabelecem com o público e o privado”, explica a pesquisadora.
“Com os cemitérios não é diferente: eles nos falam de uma época, como aquela sociedade entendia a morte e o luto. Eles também nos ajudam a compreender a distribuição de poder e de riqueza, de status e de poder entre os indivíduos, uma vez que os túmulos se esforçam para deixar isto bem claro.”
No dia da nossa visita pelo São Paulo, véspera de Finados, havia uma presença massiva de floricultores contratados por famílias abastadas para decorar os jazigos em memória dos familiares mortos. BMWs e Mercedes também circulavam adiantadamente as estreitas ruas da Necrópole para evitar o tumulto previsto no dia seguinte.
Ambos cemitérios não só abrigam jazigos como também contam com milhares de árvores que expandem suas raízes sem preocupações em direção a túmulos esquecidos, abrigando passarinhos, gatos gordos que circulam entre as lápides e um cheiro de flores mortas que compõem o clima tranquilo.
“Há uns cem anos, as pessoas visitavam muito mais os cemitérios do que hoje; grande parte dos velórios era feita dentro das casas. Com o passar do tempo, a sociedade foi construindo limites entre o que é entendido por ‘vida’ e o território da ‘morte’. Mas vida e morte são dois fenômenos indissociáveis, que só estão aparentemente e forçosamente apartados”, diz Bortulucce.
Nesse tour, elencamos alguns símbolos mais presentes nos jazigos que explicam como as famílias lidam com a morte e o luto.
Mulher velada: É uma alegoria do luto, da saudade ou da tristeza. Pode representar a viúva sentindo a morte do amado ou apenas a dor da ausência do falecido. Muitas vezes estão com um véu cobrindo o rosto.
Chama acesa: Simboliza a imortalidade, algo que não irá se apagar nem com a chegada da morte.
Crisântemo: É a margarida dos mortos. “As flores também são usadas para serem uma representação de nós que nascemos, florescemos e morremos como as flores”, diz Vanessa.
Ampulheta: Representa a brevidade da vida, o tempo que passa.
Anjos: É o que cuida da alma da pessoa e garantirá também uma boa travessia. Muitas vezes são representados mais eroticamente na forma de mulheres voluptuosas ou com aspectos mais andróginos.
Simbologia cristã: A via crucis de Jesus Cristo, Maria chorando pela morte do filho…Tudo isso é uma forma de mostrar a devoção, já que grande parte dos jazigos são de famílias cristãs. “No Brasil há uma preferência pela Nossa Senhora Aparecida por causa da localização”, conta Giampaoli.
Crianças e anjinhos: Presentes em túmulos de crianças ou natimortos. As balinhas e brinquedos são deixadas como homenagens ao falecido vez ou outra. Botões de rosa também são usados nesses casos de mortes prematuras.
Caveira: É um clássico do século XIX, segundo Vanessa Beatriz. É o Memento Mori (“lembre-se de que você vai morrer”), Nós que aqui estamos por vós esperamos.
Cobra: Símbolo da medicina que foi usado para homenagear a morte de um médico.
Galo: É um animal do amanhecer que espanta a escuridão e que anuncia um novo dia, uma nova vida.
Coroa de flores: É a concretização do círculo da vida até a morte.
Papoula: Flor do sono e da morte, é a planta que dá o ópio e pode simbolizar o esquecimento da dor.
Coluna quebrada: Vida interrompida inesperadamente. Pode representar uma figura forte de um patriarca que se foi. Muitas vezes elas podem vir com ramos de hera esculpidos que representam a fidelidade ou também uma corrente que passa a ideia de força.
Oferendas: Não é necessariamente parte da arte tumular, mas representa um patrimônio imaterial brasileiro. “É onde o sincretismo encontra um espaço para se concretizar”, explica Giampaoli.
Família unida representada nos jazigos: Mostra que houve uma união familiar forte. Se as mulheres estão segurando filhos também é um símbolo de fertilidade.
Portas, Cristo abrindo uma porta ou indicando uma abertura: É a passagem da vida para a morte, mostrando que a morte não é apenas o fim mas também o começo, uma travessia.
Família reunida vendo o ente querido fazendo a travessia da vida para a morte. Foto por Larissa Zaidan/VICE
Fotografias: São a alternativa mais barata para famílias que não podem pagar por esculturas. Segundo Giampaoli, muitas fotografias tumulares são a única que o falecido tirou em vida, dependendo da época. “O gosto pelo retrato fotográfico demonstra tanto uma nova cultura da época, quanto uma forma mais acessível de se registrar visualmente o rosto do defunto. É assim que vemos vários retratos diminutos engastados em molduras de porcelana. A memória se readequa ao gosto fotográfico”, diz Vanessa.
Cruz de madeira com raízes fincadas na terra: A fé cristã consolidada que surge da terra onde estão os restos da pessoa enterrada.
Rosa: É a pureza e também representa o caminho espinhoso traçado durante a vida até a glória maior.
Urna funerária: É a separação do corpo e do espírito, mostra que há uma custódia desse corpo velado e passa a mensagem de segurança.
Alpha e ômega: é o começo e o fim representado pela primeira e a última letra do alfabeto grego.
Borboleta: Ressurreição
Esfinges: “Os egípcios davam grande importância à morte, então é uma forma de prestar respeito à morte sem necessariamente recorrer à simbologia cristã”, explica Giampaoli.
Bigorna: É a forja do universo, representa a construção do universo e que tudo pertence a ele. Também pode ser usada por famílias ligadas à indústria.
Sol: Vida nova, luz.
Coração: É o mais óbvio. Significa saudades, amor.
XP: É o Chi Ro, símbolo de Cristo usado desde dos primeiros anos da Era Cristã.
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