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Wilfred Gadelha Conta a Bonita História do Metal Pernambucano

As origens do metal em Pernambuco remontam à década de 1970, quando uma primeira geração de bandas alinhada ao heavy metal tradicional e ao hard rock começou a arranhar uns riffs. Foi assim até mais ou menos o final dos anos 80. 1987 marca o impacto do thrash metal sobre esse cenário em evolução e, em 91, surge o representativo Decomposed, mais tarde Decomposed God, um dos grupos que abriram caminhos para o fortalecimento de subgêneros mais agressivos e novidadeiros aos padrões da época como o death e o black metal. Esse é apenas o ponto de partida do livro Pesado – Origem e Consolidação do Metal em Pernambuco, do jornalista Wilfred Gadêlha. O recorte que a obra faz sobre essa expressão cultural foi construído a partir de mais de 150 entrevistas com músicos, donos de loja e casas de show, fanzineiros, produtores e personagens relevantes do rock no estado.

Não se sabe exatamente quando a primeira banda autoral apareceu, mas a primeira banda de metal, o Herdeiros de Lúcifer, que fazia cover, estreou nos palcos em dezembro de 1983. Nos dois anos seguintes, as coisas já estavam caminhando a todo vapor, com a chegada de bandas como Arame Farpado, Fire Worshipers, Cristal, Kromo, a inauguração da loja Mausoleum – a primeira especializada em metal – e o consequente surgimento de uma nova geração de conjuntos, na maioria thrash, tipo Cruor, Storms, Putrefação, Cérbero, Necrófago, Necrópsia, Mosh, The Ax, Dark Fate e Psych Acid.

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O gabarito do Wilfred para colocar toda essa história na ponta do lápis é o mais confiável possível. Além da extensa pesquisa de campo, sua percepção sobre os fatos é enriquecida pela própria experiência pessoal no meio banger, que começou em 1990 com a organização de um evento que tinha Necrópsia, Devotos do Ódio, Anti-Sistema e Decadência Humana no lineup. Depois, editou o fanzine Psicose e acabou virando baterista do Dark Fate. Wilfred também tocou batera no grupo de thrash Cérbero e foi vocalista do Datiloscopia, de Goiânia, sua cidade natal, antes de assumir os vocais do Cruor entre 2008 e 2014 e ensaiar por uma ano e meio com o Câmbio Negro. Atualmente, ele toca no Will2Kill.

Noisey: Pegando o próprio título de seu livro, onde está a origem mais remota do metal em Pernambuco?
Wilfred Gadêlha:
Como todo movimento musical, não dá para definir um início propriamente dito. Mas as origens do metal daqui de Pernambuco vêm da década de 70. Claro que não havia internet e mp3. A coisa era na raça, com LPs sendo adquiridos na base do sacrifício. Quem tinha, emprestada ou gravava pros amigos. Mas tinha um cara aqui, Humberto Brito, que virou uma espécie de guru dos proto-headbangers pernambucanos. Ele conseguia discos de Black Sabbath, Uriah Heep, Rush e outras bandas e revendia para a meninada. Depois, com o avançar dos anos, ele proporcionava Motörhead, Venom e Iron Maiden. Além disso, uma rede de lojas se formou na cidade e no interior: Mausoleum, Metalmorphose, Evil Eyes, World Rock, Vinil Alternativo, Oficina Armorial, Blackout, Rock Xpress e Abbey Road, entre tantas.

Como surgiu o projeto de documentar a história do metal pernambucano em livro?
Da minha experiência como jornalista, veio o livro. No Diário de Pernambuco e no Jornal do Commercio, entrevistei dezenas de bandas: Iron Maiden, Metallica, Helloween, Destruction, Overkill, Morbid Angel (que tinha entrevistado em 1991, quando era zineiro), The Haunted e tantas outras. Participei de duas pesquisas culturais com os pesquisadores Daniela Maria Ferreira e Amílcar Bezerra, que iniciaram essa peregrinação pela memória metálica local. E ano passado lancei Pesado. Estamos trabalhando em alguns projetos que serão divulgados quando estiverem mais robustos.

As cenas punk e metal em Pernambuco começaram a rolar mais ou menos na mesma época? Quanto um estilo influenciou o outro ao longo dos anos? É justo separar historicamente a caminhada desses dois ritmos na região?
É interessante isso. As duas primeiras bandas de metal e punk, Herdeiros de Lúcifer e Câmbio Negro, são de 1983. No início punks e bangers não se batiam. Chegou a haver confrontos e tal, mas com o passar dos anos, ambas as “tribos” – odeio essa nomenclatura – entenderam que o público era mais ou menos o mesmo. Alguns músicos, como Cláudio Munheca (guitarrista do Câmbio Negro e, depois, Herdeiros de Lúcifer), Zeca Aranha (baterista do Cruor e do Realidade Encoberta) e Pedrito River (ex-Caco de Vidro e Câmbio Negro) fizeram esse movimento de tocar o outro estilo e as coisas se acalmaram. Então, por volta de 1989, 1990, era comum ter bandas de metal e HC juntas no mesmo evento. Ambos os estilos se influenciaram mutuamente. Era comum uma banda como o Dark Fate (da qual fui baterista), que era death-thrash metal, tocar cover de Ratos de Porão ou DRI. Hoje há movimentação similar: há muitas bandas na fronteira entre metal e punk. E isso é salutar, pelo menos sob a minha ótica.

Todas as cenas underground têm algumas casas/clubes que acabam funcionando como catalizador do movimento. Como o Garage no Rio e o Napalm aqui em SP. Quais estabelecimentos do gênero fizeram ou ainda fazem história no metal pernambucano?
Na fase mais periférica da cena, entre 1988 e 1992, ninguém batia o Prazeres Futebol Clube, um clube do bairro homônimo, na cidade metropolitana de Jaboatão dos Guararapes. Quem era da cena e não tocou lá, não era da cena. Todo mundo passou por lá. Houve também o Underground Bar, que durou dois anos, mas também foi marcante. Entre 1994 e 2004, o Dokas Hall reinou absoluto. Lá tocaram desde Glenn Hughes, Paul Dianno, Blaze Bailey, Vader e Monstrosity a bandas novatas. Depois, em 2009, abriu o Bomber, um bar que agitou a cena, dando chance à molecada. Hoje, não há uma casa específica pro metal. E isso é um complicador.

Atualmente, quais são as mais representativas bandas de metal de Pernambuco? Rola indicar um top 10 pros leitores ficarem ligados?
Sem ordem de importância: Cruor, The Ax, Decomposed God, Malkuth, Cangaço, Terra Prima, Pandemmy, Realidade Encoberta, Hate Embrace e Inner Demons Rise.

Qual o contexto que marca o auge do metal na região em termos de público, produção e infraestrutura?
Penso que os três fatores que você cita nunca estiveram interligados, infelizmente. Nos anos 80, a afluência de público era muito maior do que hoje. O Cruor fez sua estreia em 13 de novembro de 1987 com 150 pessoas na plateia. Nessa época, a cena se voltou para a periferia e os shows eram constantes e com bom público. Fanzines como Acclamatur, Black Mass, Recifezes, Psicose, que eu editei junto com meu irmão, o Márcio, e o Informativo NE Bangers divulgavam o burburinho que rolava. Hoje, até mesmo bandas de fora não levam esse público. Em 1990, o Câmbio Negro botava 500 pessoas facinho no Prazeirinho. Mas produção e infra eram praticamente nulas. Hoje, nego toca com Marshall, BC Rich e Tama, com divulgação legal, camarim organizado e tal, e dá 100 pessoas. Vai entender…

Você falou dos fanzines que ajudaram na propagação das bandas locais. Entre os títulos em circulação na época, quais exerceram um papel especial?
O Recifezes foi o principal. Era a síntese da época. Punk e metal frequentavam as páginas da publicação. O Acclamatur, que, aliás, voltou a ser publicado, tem um pioneirismo: mostrava, em 1986, a cena underground gringa, com Destruction, Celtic Frost, Necrophagia, Black Task, Slaughter, sem falar nos brasucas como Leaviaethan, Sarcófago, Mutilator e a paraibana Necrópolis, que, por falar nisso, está de volta. Posso citar ainda o Black Mass, que falava mais sobre a cena daqui, o Triste Realidade, que mesclava metal e punk também, e o The Crypt, que era uma vitrine para o underground e o black metal.

Na época do manguebeat, como era a relação dos metaleiros com o pessoal desse, digamos, “movimento”?
Havia um mal-estar entre bangers e mangueboys. Primeiro, porque houve uma falácia divulgada à época de que não havia nada no Recife antes de Chico Science. Mentira. A cena pesada foi uma escola para os manguemos. Muitos deles vieram dessas bandas de metal e punk. Segundo, porque quando o mangue virou febre, as portas se fecharam para os estilos mais ortodoxos – com raras exceções: Devotos, Hanagorik e, olhe lá, Decomposed God. Mas, esse mal-estar vem mais da gente do que deles.

O metal pernambucano é um lance politizado, satanista, for fun, espacial? Existe uma temática ou causas comuns à maioria das bandas?
O fato de, no fim dos anos 80, bandas de metal e punk andarem juntas criou uma certa conscientização entre os bangers. As letras das bandas daqui tendem a ser mais politizadas, falando sobre seca, violência, pobreza e por aí vai. Mas há quem fale de Satã, quem fale de Jeová e quem fale de outras coisas afins.

Pesado – Origem e Consolidação do Metal em Pernambuco custa R$ 25 e pode ser encomendado pelo e-mail pesadoolivro@gmail.com