“É muito perturbador ser humano hoje em dia”: Susan Meiselas

Estrada para Aguilares, El Salvador, 1983. © Susan Meiselas/Magnum Photos.

Em uma das salas de exibição do Instituto Moreira Salles na Avenida Paulista, São Paulo, a fotógrafa norte-americana Susan Meiselas conversa com educadores, montadores e curadores para acertar os toques finais de sua exposição Mediações, que começa hoje (15). A fotógrafa, nascida em Baltimore (EUA), se juntou à agência Magnum em 1976, e veio ao Brasil esse mês para participar da montagem da exibição, que faz um apanhado de seus trabalhos mais importantes, cobrindo desde conflitos na América Latina e Central, a causa curda no anos 1990 até uma imersão em um clube de sadomasoquismo nos Estados Unidos.

É sobre os recentes ataques do exército da Turquia contra o povo curdo na Síria que começamos a conversar. Meiselas entrou em contato pela primeira vez com os curdos em 1991, quando registrou as valas comuns decorrentes do genocídio curdo promovido por Saddam Hussein. O seu trabalho não esgotou aí, passando seis anos fazendo a curadoria de fotografias e histórias de curdos dos últimos cem anos. “Agora, mais uma vez, estamos aqui,” diz a fotógrafa sobre os recentes bombardeios da Turquia contra o Curdistão.

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Ao longo de quase cinco décadas, a fotógrafa cobriu diversos acontecimentos históricos que envolvem insurreições populares e evidentes abusos de direitos humanos na América Latina e Central, como foi o caso da Revolução Sandinista ocorrida na Nicarágua entre 1979 a 1990 — onde fotografou um combatente jogando um coquetel molotov improvisado em uma garrafa Pepsi, imagem que se tornou um símbolo histórico da revolução.

No entanto, a exposição vai além das zonas de conflito e também aborda outros trabalhos da fotógrafa como a série Carnival Strippers de 1976, um dos seus trabalhos inaugurais no qual acompanhou por um longo período dançarinas de striptease de caravanas nos EUA. Ao invés de focar apenas em obter belos registros, Susan também colheu depoimentos das dançarinas e as mostrou os negativos para que elas pudessem escolher as suas favoritas. Esse tipo de relação mais profunda entre a fotojornalista e quem está sendo fotografado é definitivamente uma marca do estilo de Meiselas, fazendo com que o espectador se envolva mais com o assunto. Para a fotógrafa, balancear essa relação entre a fotografia e quem está sendo fotografado não é nada fácil. “Claro que seu coração fica partido em muitos pedaços ao se deparar com essas histórias,” conta.

A exposição traz também uma seleção do seu trabalho de 1992 sobre mulheres vítimas de violência doméstica que moravam em abrigos dedicados a acolhê-las. Com depoimentos colhidos pela polícia, desenhos e filmagens dessas mulheres mostrando seus quartos, a fotógrafa conta como é preciso ir além de apenas registrar e sim criar uma colaboração e empatia com quem está na frente das lentes. No começo dos anos 2000, também se debruçou em um clube de sadomasoquismo na Europa, buscando entender a complexa relação entre dor, prazer e troca de poder, o que se tornou a série Pandora’s Box.

Aproveitamos uma pequena pausa na exposição para conversar sobre seu trabalho, a exposição e a relação das redes sociais com o fotojornalismo. Susan Meiselas: Mediações é uma retrospectiva do trabalho da fotógrafa e traz uma série de impressões e outros elementos sobre as histórias que registrou ao longo de quase cinco décadas. Antes de desembarcar no Brasil passou pela Fundació Antoni Tàpies, em Barcelona, pelo Jeu de Paume, em Paris, e pelo SFMOMA, em São Francisco, com curadoria de Marta Gili (diretora da École Nationale Supérieur de la Photographie, em Arles, na França), Pia Viewing (curadora do Jeu de Paume) e Carles Guerra (diretor da Fundació Antoni Tàpies).

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Susan Meiselas. Crédito: Chien-Chi Chang -Magnum Photos.

VICE: Você passou mais de uma década documentando a causa curda e registrando suas histórias para que elas não fossem apagadas. Como você se sente acompanhando as notícias agora sobre a ofensiva da Turquia contra o povo curdo na Síria após a retirada das tropas americanas?

Susan Meiselas: Pessoalmente, é aterrorizante estar no mundo assistindo essas notícias e lendo sobre na internet, depois de contar muitas e muitas histórias sobre a diáspora dos curdos, onde pessoas foram forçadas a deixar a região sem saber qual seria o destino delas. Os bombardeios não têm interrupção, apesar de governos terem se posicionado a respeito, apesar de protestos terem acontecido no mundo inteiro e nada disso está impedindo essa invasão da Turquia. Então, é muito doloroso e surreal. Fui ao Curdistão pela primeira vez em 1991, logo depois do presidente encorajar o levante dos curdos e os iraquianos contra Saddam Hussein e, claro, os Estados Unidos não os protegeram na época. Agora, mais uma vez, estamos aqui. Então, em 1991, mais ou menos 80 mil curdos tiveram que se mudar para a Turquia e o Irã, fui ao norte do Irã na época em que cerca de 4 mil aldeias foram destruídas a mando de Saddam para tentar erradicar o povo curdo. Documentei as valas comuns e não imaginaria que alguém tentaria fazer isso tão cedo, mas agora isso voltou acontecer na Síria. É difícil dizer o que significa ser um documentarista ou um cidadão global, mas as ameaças são horríveis porque são dois homens que possibilitaram que isso acontecesse. Um deles é o Trump, ao remover as tropas, e Erdogan agindo sobre seu desejo de controlar as fronteiras.

Agora com os ataques contra o Curdistão sendo noticiados por todos os veículos e causando reações nas redes sociais, gostaria de saber como é sua relação com as redes sociais e se é possível ter um bom relacionamento com elas?

Bom, recebi um e-mail de um jovem fotógrafo que está lá documentando tudo isso e ele me mandou diversas imagens que ele tinha acabado de fotografar, coisa de minutos. As imagens eram de um protesto realizado por civis curdos carregando os caixões com pessoas que acabaram de ser mortas por causa dos bombardeios. Ele me perguntou onde ele poderia publicá-las. Fiquei chocada ao ver as fotos. Ele também não queria publicá-las no Instagram ou no Facebook, o que ele queria era poder mandar essa foto para um lugar onde essa imagem afetaria mais gente do que as pessoas que o seguem nas redes sociais. Por um lado, entendo que o Instagram pode inspirar seguidores através de ambientes ou assuntos diferentes, no entanto nós acabamos nos perdendo por conta da “viralidade” dos conteúdos proporcionados pela plataforma. Acho que é um tempo difícil para conseguir entender o que é ser um cidadão global e ter conhecimento de coisas que você não pode fazer muita coisa para ajudar.

Recentemente vi um artigo descrevendo seu trabalho em zonas de conflito como “um olhar feminino sobre guerras” ou trazendo “sensibilidade” nas suas imagens. Esse tipo de descrição não é muito incomum quando falam de mulheres que documentaram zonas de conflito. Você se incomoda com essa classificação baseada no gênero do fotógrafo?

Essa é uma questão bastante difícil, de qual seria o “olhar feminino”. Essa questão talvez não caberia na série Carnival Strippers, porque acredito que seria muito mais difícil para um homem para se infiltrar dia e noite nos camarins por vários anos, o que foi o que fiz ao viajar com elas e fazer esses registros de áudio delas. Mas acredito que há um tipo de troca de poder envolvida quando olho para homens olhando para mulheres.

Claro que você é quem você é, você é definida a partir de suas próprias experiências, de ser ignorada, de não ser levada a sério como fazem com outras pessoas, isso te gera motivações diferentes e te faz ver coisas diferentes. Sempre acho essa questão difícil. Porém, quando estou fazendo a curadoria de histórias que encontrei, como fiz com as do Curdistão, definitivamente acabo evidenciando histórias femininas. E são histórias fortes, como a de Margaret George que foi uma guerrilheira assíria e cristã que se juntou aos curdos nos anos 1960. Ou pequenas histórias, que também são importantes, como o relacionamento entre uma mulher inglesa cujo marido liderava as tropas inglesas na região da Mesopotâmia com as mulheres locais. Quando você está fazendo esse tipo de curadoria, pode destacar essas diferenças. Já quando você está fotografando, está filtrando intuitivamente e intencionalmente o que está ali.

“Estar presente em um lugar define quem você é em diversas formas.”

É importante então contar histórias através dos olhos de outras mulheres?

Acho que dar mais voz às mulheres foi muito importante para fazer a série com as strippers, de ouvir o que elas pensam sobre si mesmas e não o que outras pessoas projetam sobre elas. E isso foi realmente muito importante quando fiz meu trabalho sobre mulheres vítimas de violência doméstica em que tive que escutar muito silenciosamente a história de mulheres que tiveram suas vidas completamente interrompidas.

Para documentar essas histórias você acha que o fotógrafo precisa criar empatia ou é melhor manter uma certa distância sobre o assunto?

Acredito que você precisa achar esse meio-termo. Achar esse espaço entre a empatia para se relacionar com a história e o distanciamento para conseguir trabalhar com clareza e sem se emocionar demais. Claro que que seu coração fica partido em muitos pedaços ao se deparar com essas histórias. Não consigo dormir direito por causa das notícias sobre o que está acontecendo agora no Curdistão. É surreal estar montando uma exposição sobre a história desse povo, especialmente no Brasil as pessoas estão começando a conhecer a história do povo curdo recentemente por causa dos últimos acontecimentos. Se isso acontecesse semana que vem, nós não estaríamos falando sobre isso.

O que foi importante na hora de selecionar o que entraria pra essa exposição?

Trabalhei bem próxima dos curadores em Barcelona e em Paris para escolher quais trabalhos entrariam para a exposição, houve muita reflexão sobre a noção de um relacionamento através de um fotografia. O que costumo dizer é que a fotografia é um encontro. A fotografia é uma expressão do começo de um encontro. Existe uma questão muito complicada que tento resolver sobre essa natureza problemática na documentação, ao abrir o espaço para colaborações. Essa exposição é minha tentativa de abrir um espaço para pensar sobre esse processo de documentação.

“Às vezes não é tão importante que eu tire a foto, mas sim que faça algo que mostre o que está escondido.”

Muitos fotógrafos falam da questão complicada de fotografar pessoas que estão à margem da sociedade e da possibilidade de explorar suas histórias ou roubá-las sem ter essa intenção. Como lidar com esse dilema?

Não sei se teria algum conselho para dar sobre isso, mas acho que os fotógrafos precisam descobrir qual é a motivação deles por trás das câmeras, se a conexão é real e ou se ele está ali só porque acredita que essa dor precisa ser registrada para um outro tipo de propósito. Realmente tento achar uma conexão com o que está acontecendo do outro lado da lente. Existem questões de acesso, claro, às vezes alguém está controlando o seu acesso a um certo lugar, porém é importante que as pessoas queiram que você esteja ali. Você precisa estar aberto a um encontro. Porque não é fácil. Esse tipo de encontro pode afetar você também, você está ali também, afinal. Estar presente em um lugar define quem você é em diversas formas.

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Pôster original do ponto de ônibus para a série Arquivos do abuso, São Francisco, Califórnia, EUA, 1992. © Susan Meiselas/Magnum Photos.

Você já esteve em situações em que quis largar a câmera e simplesmente parar com tudo que estava registrando?

Sim e teve momentos que realmente parei. Um amigo meu foi morto e no dia seguinte muitas pessoas voltaram para fotografar, não fui e tudo bem. Você não precisa explicar aos outros como se sente, mas é perturbador. Você precisa procurar um ponto de reencontro, às vezes você precisa se distanciar mais. Muitas vezes me senti compelida a voltar aos lugares em que estive porque fico compelida a saber o que aconteceu e o que está acontecendo. Ao mesmo tempo, vejo muitos trabalhos de pessoas que estão nesses lugares e sinto que não preciso estar ali. Por que o que significa você estar ali? Às vezes, assimilar é o suficiente. Assimilar que fotografias não precisam ser feitas, quando já estão em um lugar fazendo elas.

O processo de curadoria talvez seja uma forma de entender que nem sempre é preciso que eu mesma esteja fotografando. Isso ficou muito evidente quando fiz o trabalho sobre violência doméstica, fotografando mulheres que foram vítimas de violência e descobri que a polícia já estava colhendo depoimentos. Esses depoimentos colhidos pela polícia começaram a compor uma colagem na minha mente para mostrar ao público o que está acontecendo por trás das cenas às quais não tem acesso. Então, às vezes não é tão importante que eu tire a foto, mas sim que faça algo que mostre o que está escondido. É mais como se você coloca. Os relacionamentos que você cria com as pessoas.

“Acho que importa mais respeitar um processo ou o diálogo que uma fotografia traz quando falamos sobre essa questão de se apropriar de uma imagem.”

Essa colagem que você mencionou diz muito sobre os diversos elementos que você traz ao seu trabalho, colhendo áudios e vídeos ao invés de focar só na fotografia. Quando você percebe a necessidade de trazer mais recursos?

O exemplo mais clássico disso é o que mostro na série 44 Irving Street que começou de forma bem natural para mim. Fotografei uma vizinha que não conhecia muito bem na casa em que costumava viver e quando trouxe a fotografia de volta queria saber se elas se viam de forma diferente que minha câmera as viu. E esse foi meu primeiro instinto, que elas sabem uma coisa que eu nunca saberei. Que elas sabem como é se sentir ao ser vista dessa forma. Então comecei a elaborar isso em diferentes abordagens. Acompanhando as strippers, comecei a trazer as folhas de contato para elas analisarem e escolherem quais fotos elas mais gostavam de si, mas foi através dos depoimentos delas que consegui expandir minha compreensão sobre suas perspectivas. Definitivamente isso consegue criar uma forma diferente dessa triangulação entre a fotografia, o fotógrafo e o espectador.

Você encontrou dificuldades ao fazer projetos que envolvem sexo, como foi o caso das strippers e a série Pandora’s Box?

Fiz muita coisa no campo dos direitos humanos, especialmente na América Latina nos anos 1970 e 1980, passando ainda pela América Central. Estava ainda selecionando material sobre o Curdistão quando comecei a fazer a série Pandora‘s Box e muita gente achou estranho estar fazendo aquilo até que contei sobre uma questão que ressoa dentro de mim sobre tortura. Ouvi muito sobre tortura, vi celas de interrogatório, então foi algo bem bizarro e poderoso estar em um lugar onde uma pessoa está escolhendo e insistindo no castigo físico e poder pedir para parar quando fosse suficiente. É uma dinâmica que não existe, claro, com pessoas que foram efetivamente torturadas. Então esse questionamento ressoava dentro de mim de forma bem convincente, perturbadora e complexa. Muita gente não conseguiu entender minha fascinação sobre isso.

Fotografar pessoas que gostam de ser torturadas e os horrores da guerra não acaba sendo uma descoberta sobre a própria natureza humana?

Sim, óbvio, é uma verdade horrível. É isso que falo sobre assistir televisão hoje em dia, por que o que significa assistir televisão, saber de tudo isso que está acontecendo e não poder fazer nada? Não importa quantas pessoas estejam fazendo protestos na rua, não há qualquer contra-força para parar essa questão. É muito perturbador ser humano hoje em dia, é profundamente deprimente.

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Sandinistas nos muros do quartel-general da Guarda Nacional: o homem-molotov, Estelí, Nicarágua, 16 de julho de 1979. © Susan Meiselas/Magnum Photos

Uma de suas fotos mais conhecidas, a “Molotov Man”, tirada durante a revolução dos sandinistas na Nicarágua, virou um meme não muito tempo atrás. O que você achou ao ver uma imagem sua sendo sujeita à diversas interpretações na internet?

Bom, você nunca vai conseguir controlar esse tipo de coisa, exceto quando você faz uma moldura e coloca limites ao redor da imagem. Mas você também pode recontextualizar sua imagem. Posso colocar uma fotografia em uma parede e perceber as múltiplas vidas que ela pode tomar, como foi o caso do “Molotov Man”. Pode soar muito conservador o que vou falar, mas me preocupo em como as pessoas podem se apropriar de um trabalho. No caso de Nicarágua, você vê a imagem em diferentes impressões, mas que estão no mesmo contexto sobre o país. Isso me parece apropriado, mas quando fazem uma piada ou uma reinterpretação daquilo não. Vi um post no Facebook que fizeram colocando a foto do homem segurando o molotov ao lado de um estudante de Nicarágua protestando em abril de 2018, com os dizeres “40 anos depois”. Achei isso fascinante que alguém parou para pensar e fazer isso, porque isso é um diálogo com a história. Acho que importa mais respeitar um processo ou o diálogo que uma fotografia traz quando falamos sobre essa questão de se apropriar de uma imagem.

Uma discussão bem comum no fotojornalismo é se a técnica e o estilo do fotógrafo precisa importar mais do que a “utilidade” da imagem. Isso faz sentido para você?

Às vezes você está mesmo em uma situação urgente. Cresci sem a presença de redes sociais e na minha época a única forma das pessoas verem o seu trabalho era através da publicação em revistas. Não existia essa necessidade de gerar esses milhares de seguidores, já que as pessoas viam essas imagens através das plataformas que publicavam as fotografias. Mas era um tempo diferente. Não acho que o estilo da fotografia é importante, acho que importa mais a clareza dela, o sentimento e o que ela compartilha daquele momento que você capturou, a complexidade e os diferentes ângulos que ela pode oferecer, uma certa ambiguidade. Não é uma questão de estilo, é sobre a dinâmica que ela pode capturar.

Susan Meiselas: Mediações
Data: 15 de outubro de 2019, às 18h, a 1 de março de 2020
Local: IMS Paulista
Endereço: Avenida Paulista, 2424, São Paulo/SP
Horários: Terça a domingo e feriados (exceto segunda), das 10h às 20h. Quinta, exceto feriados, das 10h às 22h
Entrada gratuita

*As fotos de Susan Meiselas foram cedidas pela Magnum Photos e serão apagadas após o término da exposição por conta de regras de publicação da agência.