Matéria originalmente publicada no Waypoint.
Há muitas histórias para contar sobre antigos jogos online – já virou até um gênero específico de reportagem. Mas o que acontece quando um MMO volta do mundo dos mortos? É o mesmo jogo que os jogadores amavam, ou se torna algo diferente? Os jogadores conseguem concordar com o que estão ressuscitando, e por quê?
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Por quatro horas por dia durante boa parte da minha adolescência, eu jogava um jogo pouco conhecido chamado Meridian 59. Era o primeiro do tipo – um RPG multiplayer online 3D gigante. Era tipo o elo perdido entre MUDs de texto e EverQuest ou World of Warcraft.
Nesse caso, o apocalipse veio em 31 de agosto de 2000. Naquela noite, Meridian 59 foi desligado. Para honrar o evento, meus amigos e eu cometemos suicídio no jogo para chegar à fase do submundo. Demos uma festinha no fogo do inferno.
Os servidores do jogo eram numerados de 101 a 109, e foram desligados nessa ordem. Minha casa era no 108. Enquanto a gente dançava na festa, as notícias tristes vinham pelo chat. “Meu deus, desligaram o servidor 106”, um jogador lamentou. “Perdemos o 107”, disse outros alguns momentos depois. Aí, com um simples aviso de “desconectado”, tudo acabou.
Mas de certa forma, Meridian 59 está de volta – agora com código aberto – ressuscitado por fãs numa missão quixotesca para popularizar algo que poucas pessoas gostavam para começo de conversa. Um desses servidores acabou de lançar Biskalane, uma expansão criada por fãs que acrescentou algo que Meridian 59 não via desde 1997 – uma nova região para explorar.
Mas a expansão veio depois de um longo debate dentro da comidade do Meridian 59 de código aberto, sobre o que exatamente significava preservar e continuar a desenvolver o jogo. Um jogo pode significar algo inteiramente diferente para cada pessoa, e o que sobrevive é menos o original e mais as ideias de diferentes grupos do que era o Meridian 59 – ou pelo menos o que os fãs achavam sempre que deveria ter sido.
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Acontece que para salvar Meridian 59, os desenvolvedores amadores tiveram que matar o jogo que eu amava. Eu gostava do jogo porque ele ofuscava os números que fazem MMOs virarem corridas pelo máximo e mínimo. Ele era opaco – um traço muito anos 90 – no sentido em que escondia coisas de você, mantendo o foco em aventura e mistério. Ele te desafiava a inventar suas próprias teorias sobre como o jogo funcionava.
Quando você atacava um monstro, seus gritos de dor cada vez mais altos diziam o quanto ele estava ferido, mas não havia números de danos ou barras de vida nos inimigos. O jogo também nunca dizia quanta experiência você precisava para subir de nível.
Isso levava os jogadores a desenvolver várias teorias sobre como jogar da maneira ideal. Muitos insistiam que você ganhava poder mais rápido se sofresse mais danos. Alguns jogadores até pararam de usar armadura por causa disso, tomando surras memoráveis em nome de sua fé, como um culto berserk no MMO. Acontece que a teoria estava errada, mas o mistério dava a Meridian 59 uma autenticidade única.
Mas nos novos servidores do Meridian 59, esse pilar fundamental do design foi derrubado. Os números antes escondidos foram desmascarados.
Quando ataquei um monstro no jogo agora, fiquei sabendo que tinha provocado oito pontos de dano. Quando o monstro morreu, recebi 72 pontos de experiência, e a barra de experiência me mostrava a matemática de quanto ainda faltava para subir de nível. O design está mais moderno, e pode parecer que essa é uma mudança pequena, mas não parece mais o Meridian 59 exatamente. Sofri com as mudanças nos sistemas básicos, como os números expostos e uma variedade de pequenas atualizações que fazem o jogo parecer mais um MMO moderno.
Falei sobre isso com o líder criativo – que atende pelo nome de “Gar” – da expansão Biskalane e administrador do servidor de jogadores (chamado simplesmente de 103). Perguntei se ele sentia que alguma coisa tinha se perdido com as mudanças, mas ele não se arrependia de nada. “Acho mesmo que algo se perdeu com a atualização, mas a era das mecânicas misteriosas acabou com os anos 90”, ele disse. “Não dá para voltar atrás.”
Não comprei esse argumento, mas um outro me convenceu, só um pouco. “Como somos de código aberto, todos os números e equações são de conhecimento público, mas só para programadores que sabem o que procurar”, ele apontou. “Considerando tudo, provavelmente é melhor dar ao jogador comum acesso direto a esses números, ou ele pode se irritar com o processo de peneirar o código online.”
“Um dos maiores conflitos na nossa equipe nos primeiros dois anos foi sobre manter o ‘ Meridian clássico’ ou seguir em frente”, lembra Gar. “Eventualmente, os meridianitas entraram para criar seu próprio servidor, o que acho que era inevitável dada a própria natureza do código aberto.”
Também há um servidor de código aberto mais clássico chamado 105, comandado por um grupo com prioridades muito diferentes. Eles criaram um museu no jogo com conteúdo obsoleto de eras passadas do Meridian 59. Eles colocaram uma interface mais moderna, mas não mexeram nas mecânicas mais centrais do jogo, ou introduziram qualquer conteúdo novo – mas passaram a exibir os números do mesmo jeito que o 103. Mesmo lá, parece que o Meridian 59 que eu amava não era o mesmo amado por outros.
O desenvolvedor do 105, Delerium, me disse que adora o jogo, mas estava mais obcecado com a ideia de que “ele teve muita má sorte em sua história”. Ele não se foca tanto em novo conteúdo ou sistemas, mas em tecnologia e infraestrutura para preservação, tudo com a louca esperança de que esse jogo arcaico será descoberto e amado por gerações futuras de jogadores.
“Quero ajudá-lo a sobreviver e talvez até dar a chance de competir como MMORPGs mais conhecidos um dia, e grande parte do trabalho de infraestrutura que faço é para criar servidores e ferramentas que resistam ao tempo”, ele disse.
Ele também falou sobre a divisão na comunidade entre servidores e bases de dados. “O jogo só tem algumas centenas de jogadores”, ele admitiu, “então talvez não seja ideal, do ponto de vista de comunidade, ter tantos servidores”. Tanto o 103 quanto o 105 têm populações muito mais baixas que os servidores do jogo nos dias de 3DO.
“Por outro lado”, ele acrescentou, “os jogadores podem escolher onde jogar baseado nas adições de conteúdo que preferem”. Ele acredita que ter várias bifurcações num jogo de código aberto é inevitável.
Ainda assim, as equipes do 103 e 105 trabalham juntas em alguns projetos, e compartilham suas conquistas. O que é necessário, porque Meridian 59 tinha ferramentas de desenvolvimento péssimas, especialmente para arte e construção de mundo.
Para mais contexto sobre isso, falei com Brian Green, um dos desenvolvedores que trouxeram o jogo pro 3DO. Ele e seus sócios relançaram o jogo em 2002, mas “nunca foi um grande sucesso”.
Brian lembra as limitações de quando trabalhou com o jogo: “a ferramenta de layout notória era uma versão alterada da sala de edição freeware do Doom. Infelizmente, aquele editor não suportava todas as características do mecanismo do Meridian 59“.
Por causa dessa e outras questões, Brian e seus sócios venderam o Meridian 59 em 2009 para os criadores originais – Andrew e Chris Kirmse – por “uma quantia simbólica”. Em vez de investir mais no jogo, os criadores abriram o código e o entregaram pra comunidade que o gerencia hoje.
Todo mundo com quem falei lamentou o editor de salas também, mas a comunidade fez algo sobre isso que os donos anteriores não conseguiram. “Nos últimos anos, colaboradores como Sha’krune e Delerium fizeram ferramentas imensamente mais fáceis de usar”, me disse Gar. “Criar uma sala foi de uma tarefa árdua de milhares de horas para algo que você resolve em poucas sessões.”
“O editor de sala original era um pesadelo”, acrescentou Delerium. “Ano passado eu transferi o popular editor de mapa do Doom GZDoom Builder para trabalhar com o formato de sala que usamos.”
E fez uma grande diferença. Mesmo com a comunidade fragmentada em diferentes servidores baseados em gostos, claramente há colaboração e respeito mútuo entre as equipes. E o terreno está preparado para um pequeno revival, se eles conseguirem apresentar o jogo a mais pessoas.
Ano passado, um membro da comunidade mostrou o jogo num estande do PAX para recrutar novos jogadores. Também há um perfil no Twitter pro Meridian 59. Dificilmente é uma “blitz de mídia”, mas a comunidade está fazendo o melhor que pode.
E claro, o trabalho com as ferramentas tornou a expansão possível. “O mundo parecia incompleto, então achei que era importante criar uma expansão”, disse Gar. “Levei vários anos para resolver tudo e fazer a equipe embarcar numa ideia tão ambiciosa.”
Quando fiquei sabendo sobre Biskalane, instalei o jogo pela primeira vez em anos. O conteúdo acrescentado – particularmente a nova região – é ótimo. Meridian 59 sempre foi um jogo desafiador, e Biskalane exige muito dos jogadores. O fim de jogo está mais robusto que nunca. E muitos bugs antigos foram consertados.
Mas ainda me vi sentindo falta da experiência clássica do Meridian 59, sem as mudanças. Gar apontou que existem dois servidores rodando o jogo dos criadores, com a base de código clássica e sem modificações. Criei uma conta e loguei nesses servidores clássicos, mas os dois estavam vazios. Todo mundo tinha partido pra nova fronteira do código aberto.
Mesmo assim, passei o final de semana destruindo inimigos. Juntei pilhagens no meu cofre, para nunca serem vistas por ninguém. Interagindo com os personagens não-jogáveis, me senti como o Will Smith falando com os manequins em Eu Sou a Lenda.
O tédio acabou batendo. Parece que o mundo que conheci acabou mesmo em 31 de agosto de 2000, porque a memória que eu tinha de Meridian 59 era só minha; outras pessoas preservaram um jogo diferente em suas lembranças. Derrotado, voltei pros servidores 103 e 105.
Preciso de mais 734 pontos de experiência para subir de nível.